Esquecer para lembrar.

Já esqueci de lembrar. 
Agora sou coletivo de lapsos, desencontros.
Um saco de lembranças, adormecidas num porão sujo qualquer, não me faz recordar.
Ou fujo de minhas hipocrísias num jogo de máscaras e espelhos? 
Quem fui, ao longe me acena.
Quem sou, de perto me assusta ou seduz. 
E vivo para contar e inventar a melhor fórmula possível.
E tragá-la, como se desse gole, dependesse te ver:
amada esperança.

Não se acostume com o que te faz infeliz!

Sexta acabei indo almoçar na feira dos importados, para devolver uma gentileza que um amigo fizera e resolver uma pendência dele por lá. Ele trocou seu celular por outro mais moderno, porém da mesma marca. Qual não foi sua surpresa ao perceber que a versão modernosa tinha um encaixe do chip menor do que a anterior. Ou seja, tinham uma incompatibilidade geracional. Coisa comum em humanos, porém em máquinas de gerações tão recentes, não deveria acontecer.
Ou ele perderia todos os dados, ou teria que passá-los via programas especiais para isto, ou manualmente. Alguém lhe disse que na feira dos importados o pessoal tinha um jeito de resolver, uma espécie de adaptador. Ofereci-me para ir lá, e retribuir a gentileza que ele fizera comigo numa outra pendência que eu tinha e ele mediara. Chegando lá, expliquei ao moço que o celular novo tinha "um buraco do chip" menor e que não cabia o chip velho. Ele olhou para o celular, para o chip, abriu a tampa. Sem pestanejar, disse, aqui eu resolvo. Não deu tempo nem perguntar o preço. Ele sacou de um estilete, um prosaico estilete, e foi raspando as extremidades do chip antigo. Tirando aparas, com uma destreza que pensei, "se ele errar o corte vai dá em merda"... De primeira, inseriu o chip na máquina modernosa e pimba, ela o reconheceu e acordou para a vida. Pelos serviços ia "cobrar" R$ 5,00. Mas, como comprei uma capa ele fez "de grátis". Almocei com aquilo remoendo em meu ser. Como precisamos de um estilete daquele em nossa vida pessoal e profissional.
Como tem coisa que acontece conosco e que não nos cabe mais. Que nos desloca. Nos estranha. Que para continuar "operando" da mesma forma, já que não queremos largar o chip velho, precisamos ao menos desapegar um pouco dele, e nos permitir aparar arestas interiores, para nos adaptar a novas realidades. Fiquei pensando como tem coisa em nossa vida que para mudá-las não é difícil. Só precisa do estilete, de quem o manuseie com sabedoria e habilidade e de nossa própria vontade de nos renovar sem perder os valores fundamentais (o chip). Deixando de lado tudo aquilo que está nos impedindo de atualizar nosso "sistema operacional", tornando-o mais eficiente. Gostei muito de vários insights do estilete do chip de celular. Mudar não é nada fácil. Sempre haverá cortes na alma, no nosso mais profundo. Fácil é trocar. Trocar de esposa, de filhos, de chefe, de equipe, de empresa, de curso superior, de lazer, de cinema. Trocar é fácil. Simplesmente deixamos de lado a roupa velha e pegamos a nova. Mas, quando a troca trás consigo nossa história, aí o bicho pega. Não é mais uma simples questão de escolha, do verde para o amarelo, do carro de marca tal, para tal. De ir pra praia ou para ou mercado. Estas são escolhas do tipo, pega o celular novo com seu chip pronto. Não dói tanto. Agora, fazer escolhas, adaptações, sem nos perder pelo caminho. Preservando nossa essência interior e mundo de valores, sem nos corromper ao chamado do novo pelo novo, aí sim, aí dói. Creio que amadurecer como ser humano é permanentemente raspar nossas arestas em busca de um sentido, de um encaixe melhor, num mundo cada vez mais opressivo. O cuidado na raspagem é para que ela não atinja nossos sistemas vitais de suporte à vida. Nossa psiquê, nossa auto-estima. Nessa hora precisamos de autoconhecimento para ponderar se vale o preço a raspagem, ou se não será muito grande o risco de atingir nosso ser de forma irreparável. Vale a máxima que escuto de um amigo um amigo, "pra toda escolha uma renúncia...". Ou seja, será que vale a pena raspar mais uma vez as arestas e recomeçar? Será que não é hora de romper com o modelo antigo, mesmo que seja um choque, um baque, uma perda profunda?
A resposta a esta questão não é simples e é pessoal. Mudar não é simples. Mudar comportamentos, atitudes pior ainda. Mudar relacionamentos, papéis vividos nestes relacionamentos, aí nem me fale. Sabe aquela coisa que carregamos conosco, pode ser uma mágoa, um perdão não dado, ou pedido, aquela postura excessivamente crítica, negativa ou desconfiada. Será que ela não está sobrando em nosso viver? Será que não é isso que está nos fazendo infelizes, deslocados conosco mesmo? Forasteiros de nosso lugar no mundo. Como se a atualização de nosso ser interior, a permanente atualização do "sistema operacional da mãe vida", reclamasse de nós um outro jeito de ser, sem nos perder nesta mudança, apenas aparando nossas arestas interiores para melhor conviver com a situação, aprender com ela, e mudar.
Nessas horas, como faz bem um amigo, um amor, um Deus, até um choque que levamos na vida! Tudo isso pode funcionar como o estilete. Nos fazer tomar coragem e usá-lo para raspar nosso orgulho, vaidade, acomodação, na luta pela nossa felicidade.
Nosso piloto automático que ligamos: não sabemos quando e, por conforto e facilidade, deixamos o mesmo nos guiar, pode estar nos levando a lugar nenhum. Mudar é bom. Não mudar por mudar, mas mudar para contribuir com em tornar este mundo um melhor lugar para se viver: nem que seja na sua família, ou equipe de trabalho. Como bem disse Camões: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o Mundo é composto de mudança". Mudar, sem perder nossa essência, mudar para melhor, faz bem a humanidade. Mas, não é nada fácil.
Passamos muito tempo acreditando que "as coisas são como são, e são o que são. ". E, não queremos pagar o preço do vir-a-ser. Mudar é arriscoso. Poderemos perder o status, posição social, salário, consideração e até as migalhas afetivas que recebemos e que nos dão uma falsa sensação de alimentação existencial. "As coisas são o que são". Outro dia ouvi um grande amigo dizer: "amar é decisão". Não à tôa, um Deus feito carne nos disse que precisamos amar o outro como a nós mesmos. Raspar nosso chip existencial é prova de amor para conosco. Habilita a conexão. Dá vida ao celular novo, como o acontecido quando o rapaz inseriu o chip velho no celular novo. Optar por o chip novo, e desapegar-se do velho, também pode ser uma opção, uma escolha. Tem coisa que não funciona mais. Tal qual "botar remendo novo em pano velho". Quem decide se é hora de raspar, ou trocar de chip, somos nós. Em qualquer decisão, um fato estará presente, estaremos sendo protagonistas de nosso viver, autores e atores, exercitando a autonomia do ser e crescendo, mesmo que indo para trás. Neste domingo ensolarado, lembro as arestas de meu coração que precisam ser raspadas. Coisas que fui aprendendo ao longo da vida e que não fazem mais sentido. Estão desajustadas. Que precisam de minha ação para novamente encaixarem-se no meu viver. Precisam de uma raspagem. "Não se acostume com o não o faz feliz"...

Qual fogo alimenta teus propósitos?



Era uma noite fria, madrugada adentro.  Participava de uma vigília de oração, no alto de um monte gelado. Chovera um pouco antes e tudo ficara encharcado. Encontramos alguns restos de madeiras e fizemos uma pilha para "ligarmos" uma fogueira, para ao seu lado rezar. Logo, logo apareceram fósforos, um galão de gasolina. Encharcamos a madeira e tocamos fogo. As labaredas que dali saiam eram lindas, mas breves. Duravam uns 10 minutos, enquanto o líquido queimava a "derme" da madeira molhada. Quando toda gasolina virou fumaça, o fogo apagou. Olhávamos-nos, frustrados e descrentes com o acontecido.
Mas como?
Como esta gasolina toda, vertida sobre pedaços de madeira, não fora suficiente para que elas por si só ganhassem vida e a autocombustão desejada e duradoura acontecesse.
Alguém soprou baixinho: ainda se tivéssemos uma estopa, uns gravetos. Mas nada daquilo. Estava escuro e não achávamos nada para voltar a acender o fogo. Havia agora só um restinho de gasolina. E já tínhamos percebido que o fogo da gasolina só queimava a periferia, logo logo apagava. Fiquei matutando e lembrei-me que tinha vestido uma camiseta velhinha, sob camisa de manga comprida de flanela, sobre a qual estava um gibão de couro. Fui tirando uma a uma. Despi-me da camiseta velhinha e a doei. Logo a embeberam na gasolina e por dentro espetaram uma estaca, como que uma tocha. Botaram-na no centro da pilha, na parte debaixo. Acenderam-na e pronto. Não bastaram uns 10 minutos e aquela tocha contagiou a todas as madeiras vizinhas, mesmo encharcadas, e o fogo adquiriu vida própria; Era a autocombustão esperada, não mais precisando de "muletas" como a gasolina ou a tocha. Fique pensativo, sobre os propósitos que dão sentido ao nosso viver. Será que alguns deles não mais parecem com aquele primeiro fogo: apático, anêmico, sem sustentabilidade. Fogo falso, fogo que basta um vento para apagar, ou basta que seu combustível superficial seja consumido para que ele feneça.  Creio que os líderes movem-se por aquele outro fogo, o interior, o que uma vez aquecido, tal qual aquela tocha de camiseta velha, ele passa a autogerir seu próprio destino, sua própria motivação, assumindo as escolhas que faz e preparando-se para novas possibilidades que aparecerão.
Quem alimenta seus propósitos?
Gasolina que dá um fogaréu no início, tal qual fogo de palha, e depois apaga por não conseguir penetras nas entranhas da madeira interior de nosso existir, gélida, fria e fechada?
Ou uma tocha interior que não se cansa em impulsionar-nos à frente, que nos faz perseverar nos nossos objetivos. Que rompe tibieza, apatia e incendeia-nos por uma causa, uma vida, um propósito, algo que dê sentido ao nosso vir-a-ser no mundo.
De que motivação você está sendo feito?
De que objetivo seu acontecer neste mundo está sendo aquecido?
Daquele interior, que arde por dentro, que nos toca e eleva remetendo-nos a algo melhor todos os dias.
Os só das exterioridades, das fachadas, das aparências, da mentira, de um vir-a-ser que não é sustentável, que não se garante?
Já me envolvi com muita coisa tal qual o fogo da gasolina em lenha molhada. Queima a gasolina e o fogo apaga.
Quantos projetos comecei a tocar e fui parando pelo meio do caminho, faltou perseverança, faltou convicção.
Faltou coerência. Queira chegar logo na janelinha, mas não queria pagar o preço.
Investir tempo e dedicação na busca dele.
Hoje, alimento o fogo interior. Alimento as coisas que realmente fazem a diferença e que me dão um sentido, uma vocação de ser o melhor para a humanidade e não o melhor da humanidade.
Não uma vocação de santo, puro, bam bam bam.
Tenho um monte de coisa a melhorar.
Só procuro naquilo que dá que tenho alçada de decidir, ser diferente. De romper a cadeia de agressão, frieza, indiferença procurando fazer a minha parte para que o mundo seja melhor.
Todos podem ser diferentes, evitando reproduzir um modelo de sociedade baseado apenas no acúmulo de bens, desumanidade, vaidade e disputa por poder.
Alimento meu fogo de camiseta velha que arde no meu interior. Aproveito enquanto ele arde para acender outras chamas, mais perenes: as chamas dos valores.
Se você tiver algo que lhe acenda por dentro, que lhe dê alegria e esperança, curta de montão.
Aproveite esta chama, mais perene, para que ela molde seu ser e te incendeie por conta própria.
Um dia ela também poderá fenecer, mas já cumpriu a missão: produziu em ti um fogo duradouro.
Bem aventuradas todas as causas e pessoas que nos tocam de uma forma tão profunda, que incendeiam e iluminam as profundezas de nosso interior, fazendo novas todas as coisas.
Bem aventuradas as camisetas velhas, embebidas em gasolina, que viram tochas e aquecem nossa lenha interior.
E só terminam sua missão quando percebem que por nós mesmos, já caminhamos sozinhos.
Já gerimos nossa autocombustão, em prol de objetivos pessoais ou coletivos.
Acho que todos os pais e mães são como aquela camisa embebida em gasolina. Alguns amigos e familiares também.
Para eles, o meu obrigado por ter em algum momento ajudando a acender o meu ser. Em mim ficaram as suas labaredas, a de vocês que me amaram primeiro sem esperar nada em troca.
Não falei ainda da importância do fósforo que acendeu a tocha. Em meu viver, em diferentes ocasiões, este fósforo foi o Espírito Santo.
Que Ele esteja presente no acender de sua chama também.







Encante seu cliente!

Há uns dois anos frequento o mesmo ponto na feira livre de São Sebastião-DF. Fico na esquina de um estabelecimento que vende pastel, caldo de cana e outras guloseimas. Pego sua única mesa, e contemplo extasiado o movimento de feira livre, belo por humano que é. Ao ouvir aquele burburinho de feira livre, acalmo-me e sinto-me parte de algo maior. Já conheço todos do ponto. Ao lado de onde sento, fica a vendedora de feijão verde. À frente, o de frango abatido; ao seu lado, o de queijo. Mais à direita, as vendedoras de CDs piratas. Sempre que chego espero uns minutos e a "nossa mesa" vaga. Enquanto isso, os feirantes me cumprimentam, falam de como está a feira, perguntam da Paraíba, ou de minha máquina fotográfica. O JG vai entrando sem cerimônia nas bancas, recebe afagos..., já é de casa. Ao vagar a mesa, nos sentamos, eu e o JG, enquanto a Cristina vai trazendo as verduras e colocando embaixo dela. Conheço todos os feirantes daquele ponto, já são amigos de eras priscas. Sei quem é avô, avó, quem tem pressão alta, onde eles moram e conheço até seus netos. Na vovó do pastel, implico por brincadeira, com seu café muito doce. Digo, eita que está mel. Ela pacientemente vai tentando, todo domingo, chegar no meu ponto de açúcar. Hoje fui surpreendido. Não é que a matriarca do estabelecimento aproximou-se de mim e deixou uma garrafa. Com um sorriso, ela me disse: esta é especialmente para você se servir. E está sem açucar. Você vai colocando até chegar no seu ponto. Perguntei-lhe, e como a senhora saberá quantos eu tomei? Ela me olhou com ternura e disse, você me dirá. Só isso. Simples, como a abelha confia na flor. Fiquei estupefato com o gesto de tão tamanha fidelização e atenção para com seu cliente.

"Aprendi que são os pequenos acontecimentos diários que tornam a vida espetacular." William Shakespeare

Lares Útero


Andando pelo jardim vi no meu limoeiro esta cena insólita. Uma reunião de lagartas numa folha de limão. Saquei logo da máquina e documentei o encontro, mais parecido com uma procissão. Elas estavam paradas, pensativas. Umas poucas levantavam o focinho em minha direção, como que a dizer: sai daí rapá! Fiquei matutanto o porquê delas terem escolhido aquela folha. O que aquela folha teria de tão especial? Sim, é verdade. Dei uma batida no limoeiro e em nenhuma outra folha havia aqueles espécimes. Só naquela, e frente e verso. Umas 20 em cada face. Estariam com frio? Sentiriam-se protegidas? Fora sua mamãe quem as mandou ficarem ali? O que tinha aquela folha de tão especial? O que a distinguia das outras? Engana-se quem pensou que elas estavam degustando a folha. Não, nem um pedacinho sequer. Estavam apenas sentindo-se amparadas. Fiquei lembrando que também somos assim. Escolhemos nossas folhas-útero dentre várias que se nos achegam. Existem lares-folha-útero-de-limoeiro. Lares que de tão acolhedores aproximam, unem, celebram a vida e são locais de ajuntamento. Conheço alguns. O de minha cunhada e irmão, o de minha ginecologista (é o casal quem engravida), e outros Brasil afora. Eles são como esta folha, locais de encontro, de harmonia, de delicadeza. São lugares para onde vamos e nos sentimos bem, amados, reconhecidos e valorizados. Ali, nos juntamos com tribos das mais diversas, e naqueles lares parece que há uma mágica, uma mística que consegue tudo juntar e nele ser presença, sem destoar, mesmo que sob sua face-folha frequentem tribos das mais diversas estirpes. Mistérios, mistérios da mãe natureza que nos falam. Sempre que receber alguém aqui em casa vou lembrar que posso ser folha-útero. Proteção, carinho, aconhego para quem chega. Qual o destino daquelas lagartas, que por medo do desconhecido juntam-se umas às outras para enfrentá-lo? A vida, a vida é o seu destino. Viver é juntar-se. Viver é comungar valores, criar solidariedades, buscar empatias, tecer uma tribo comum, que nos faça sentido. Quem se junta, até na dor, sofre menos. Ou sofre com, e quem sofre com, dilui o sofrer. Esta foto é uma homenagem aos amigos que de tão acolhedores representam ponto de encontro e mutação em nosso viver. Bem aventurados vocês o são! Obrigado por nos abrigarem em suas vidas.

Crônicas Anteriores