Cuide da sua mudinha de felicidade


Aprumei-me entre as cadeiras apertadas das mesas individuais, da varanda da Padaria Savassi, nas quais tomo meu café matinal.
Aí escuto uma voz feminina, vindo da mesa de trás, fazendo seu pedido.
“Tem pão francês integral?”
- Sim
“Coloque só o queijo de minas na chapa, mas o pão não. E quero leite desnatado e café descafeinado, pode ser?”
- Pode
Pensei com meus botões: se fosse casado com essa estava lascado. rsrs
Eis que ela continua. “E coloque na minha conta um misto quente para esse rapaz da mesa de trás”.
Eita!
Não resisti, e como quem não queria nada querendo, virei-me para ver a cena.
Ela aparentava uns 20 e poucos, e o rapaz estava com expressão de quem tem fome. Daquelas em que os olhos ficam vazios.
Engoli em seco minha crítica ácida, ao mundo diferente dela, dos descafeinizados, desnatados e integrais, e passei a admirá-la.
Que gesto lindo!
Na saída, passei pela garçonete e pedi que ela transferisse o débito do Misto para minha conta. E que dissesse à cliente que já estava paga. Eu queria participar daquilo também, e me redimir por tê-la julgado.
Passei a segunda com vários sorrisos nos lábios, e um coração transbordante de gratidão. Meus pais chegaram em paz, de volta ao seu lar, em Campina Grande-PB.
A festinha do JG e do Tiago foi muito legal.
E o curso que ministrei em Goiânia deu certo, em sua proposta pedagógica e na avaliação dos resultados.
À noite, dirigi-me para a faculdade. Como só as Pós-graduações estão funcionando, as cantinas fecham, não há mercado que justifique sua abertura.
Contudo, estava com fome e procurei um pé sujo de calçada.
Estavam todos fechados, à exceção de um deles, para o qual me dirigi.
Pedi um estrogonofe de frango, e o dono foi aquecê-lo. Acho que fui o primeiro cliente daquele prato.
Durante aqueles longos minutos em que esperei, presenciei duas jovenzinhas vindo em direção à barraca.
Creio que tinham uns 12 anos. Elas perguntaram ao dono o havia para comprar, e ele anunciou solenemente: hambúrgueres, caldos, estrogonofe e lasanha. Elas se entreolharam e perguntaram se não tinha pastel ou coxinha. Não tinha.
Então, uma delas, a mais alta, tomada de coragem perguntou-lhe quanto era o caldo. Ele respondeu-lhe: R$ 5,00.
Elas, de maneira bem tímida, abriram as mãozinhas e contaram as moedas e uma nota de dois reais.
Fecharam as mãozinhas, baixaram a vista, e quando se preparavam para ir embora eu as abordei, e com tato.
Perguntei-lhes se a mãe delas estudava na faculdade. Elas disseram que sim. E que estavam aguardando-lhe fazer uma prova.
Disse-lhes que eu era professor, e que os caldos já estavam pagos. Que para mim era grátis. (tirando onda, eu botei na minha conta, disfarçadamente, num sinal para o dono)
E que elas poderiam comer à vontade, inclusive as torradas. Foi uma felicidade só.
Ouvi um: “Deus lhe pague”. E soltei um: “Quando vocês estiverem na faculdade paguem um caldo para o professor, e estará tudo quites”. Elas sorriram, incrédulas com o gesto.
Voltei para a sala de aula feliz. Daquela felicidade boba, tipo a que sentimos quando ajudamos alguém, sem querer nada em troca.
Poderiam ser meus filhos, com fome, esperando pelos seus pais. Não fiz nada demais. Só retribui o que recebi da jovem do café descafeinizado da padaria. Só dei sequência à corrente de gratidão.
As aulas foram maravilhosas. Cada grupo conduziu uma reflexão, a primeira delas sobre a importância para a qualidade da vida da percepção do bom, belo e virtuoso, e por isso ser grato. Foram tantos depoimentos que eu babava. Teve até o jogo da Adedonha, senti-me criança e ri bastante, e uma dinâmica bem legal para se colocar no lugar do problema do outro, vendo-o de uma outras perspectiva e forma mais positiva de enfrentamento. Foi uma overdose de auto-ajuda coletiva, e das boas.
Na segunda aula, outro grupo refletiu sobre a diferença entre a vocação de um poste de fiação elétrica e uma árvore. Um não cresce mais, e condena sua existência a ligar e desligar, apenas.
Condena-se à rotina das coisas.
Já a árvore, abriga pássaros, insetos, dá sombra, fruto, flor, e segura a terra durante as enchentes, e nunca para de se desenvolver. Não envelhece, renovando-se a cada estação do ano, e que assim devem ser as pessoas. Uauu!!!
Recebemos cada um de nós, do grupo que se apresentava, uma pequena muda da Árvore da Felicidade, aí a alegria foi completa.
O grupo concluiu: Felicidade se semeia, se trata, se espera, se ara, se aduba, se apara e se cultiva. Nunca li tratado sobre a felicidade mais preciso. Falaram tudo.
Era para a aula terminar 21h30min e, pela minha experiência, pelas 22hrs estaria passando pela Av. do Sol voltando para casa. Mas, a aula estendeu-se até as 22h30min, e quase fomos expulsos pela segurança.
Voltando para casa, testemunho bombeiros e policias na Av do Sol, estava um verdadeiro caos.
Soube que às 22hrs houvera tido um grave acidente nela, com colisão frontal e vítimas presas nas ferragens. E os bombeiros ainda trabalhavam para resgatá-las quando passei por lá.
Poderia ter sido meu carro, dado que a colisão foi frontal, com engavetamentos posteriores.
Não sabemos as conexões que a vida vai nos fazendo, os livramentos que vamos sendo poupados, não sabemos a força de nossa voz e gestos, nos ecos e moldagem do infinito.
Não sabemos.
Cheguei em casa morto de cansado, mas muito feliz e com minha mudinha intacta.
JG (7 anos) tossia muito, ele dormia no nosso quarto.
Preparei-lhe uma dose de xarope de tosse seca. Resgatei-lhe da rede. Dei o remédio, e o levei para a sala, deitei-lhe sobre meu peito, numa posição mais vertical, para diminuir o desconforto do liquido que irrita a garganta e faz tossir, e esperei uma meia hora fazer efeito. Perto da meia noite, ele parou de tossir e cochilou no meu peito.
Deitei-lhe em sua cama e agradeci ao bom Deus o momento de intimidade e cuidado que pude ter, a partir daquele acesso de tosse.
Antes de dormir, fui olhar minha mudinha da Árvore da Felicidade e a toquei-lhe suavemente. Ela me sorriu.
Talvez a felicidade seja feita de breves instantes, que estar presente nos possibilita enxergá-los.
O instante quando recebemos a ligação de nossos pais, o de um cafezinho matinal, o de cuidar de um filho, de jogar Adedonha, de contemplar a comunhão de saberes, com olhos de lua cheia, de se doar, de servir, de receber ajuda, da percepção de ter tido um livramento, de sentir-se inspirado por exemplos e de alegrar-se com as coisas simples da vida, como comer um estrogonofe de beira de calçada. Ou, de acariciar frágeis folhinhas de uma muda de Árvore da Felicidade, desejando-lhe bobamente boa noite.

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