Reconhecer, verbo de "gratidar"

Hoje fomos almoçar no Tradição Mineira, em São Sebastião-DF. Apesar da cozinha mineira, o recinto é eclético e tem a melhor paella, tambaqui, e caldeirada do Brasil.
Sempre disse, quando ali comia esses pratos, que de tão bom mereciam de joelhos uma prece.
Mas, nem sempre tem. Trata-se de um prato caro, para os padrões de self-service, ainda mais de uma cidadezinha do entorno de Brasília, de baixo poder aquisitivo.

Mas, hoje tinha. Que dia mágico. Desde o café com Sr. Valdecir, até um almoço com uma amiga, num cantinho que guardo como referência culinária, apesar de ser "no suburbio".
Hoje a caldeirada estava melhor ainda. E, o tambaqui dissolvia na boca, entremeado por um molho que o lambuzava, e que só o molho era tão bom que dava pra comer com pão.
A amiga que conosco dividia a mesa era a Edna. Ela veio de Londrina nos visitar. Edna é uma grande Chef, daquelas que com simples omelete faz um manjar.
Minhas recordações gastronômicas-afetivas de Londrina passam pela casa da Edna, e sua mama, que tem o mesmo dom. Aliás, elas disputam. Sou um feliz cobaia de seus pratos há 20 anos.
Edna provou o peixe, e fechou olhos. Achei que ela estava estranhando o sabor. Depois, provou a caldeirada.
E, me olhando fixamente, e disse: "que delícia, que mão tem esse cozinheiro(a)!"

Aí, aproveitei que o garçom ia passando e disse-lhe: " você poderia chamar a cozinheira para que possamos elogiar seu prato".
Demorou um século. Nada dela chegar. Até achamos que ela tava muito atarefada, ou era tímida.
Mas, eis que chega perto de nós uma risonha senhora. Perguntamos, "é você quem faz essa maravilha de peixe e caldeirada?"
Ela respondeu que sim.
Chama-se Noélia. Filha de uma família muito pobre, de dez irmãos, a mãe saia para trabalhar e ela bem jovem era quem assumia a feitura da comida da casa.
"E ai de mim se mamãe chegasse e eu não estivesse com o almoço pronto, e bom. Mamãe me ensinou tudo que sei da cozinha, e cozinha melhor do que eu..."

Depois ela explicou o segredo do tambaqui, o seu molho de azeite que o cobre.
Perguntamos se ela cozinha pra fora, nas noites. Ela disse que tem livre de segunda à quinta.
Já deixamos apalavrado uma quinta aqui em casa, será uma paella, uma caldeirada, e dois tambaquis. E para minha família do DF, amigos e o povo da igreja. E tem que ser até natal. Não adio mais festa alguma.
Nem terceirizo meu prazer. E, quer prazer maior do que dividir a mesa e as coisas boas com os amigos?
Hoje meu texto vai pra Noélia, que de suas mãos nascem maravilhas, tal qual os quindins de Dona Benta.
Noélia ficou radiante com nosso gesto, de chamá-la.
Acho que não é comum ela ser chamada.
Creio que a sociedade como um todo anda reconhecendo pouco as pessoas.
E, quando somos reconhecidos, ficamos até sem jeito.
Ela de tão feliz, desatou a falar de receitas, doces, saladas, carnes. De tudo Noélia manja. E sua fala é alegre, mansa e encadeada. Ela ama cozinhar. Disse-lhe que tenho uma história com o tambaqui. Desde que comi um enorme, no Pará, e pela primeira vez soube que costela também é de peixe.
Então ela falou que fará para mim uma muqueca de tambaqui. Fiquei emocionado, e perguntei-lhe como ela faz para tirar as "costelas". Ela me disse que é seu segredo, e que no domingo 10/11 minha moqueca estará lá, esperando-me chegar.
Como é bom criar pontes. Quantos profissionais Noélia estão dentro de nossas organizações fazendo seus manjares e sendo tão pouco reconhecidos pelos clientes.
Reconheçamos! Reconheçamos! Reconheçamos!
Afinal, reconhecer é o efeito colateral de nos sentimos gratos por algo. Reconhecer é a pratica do "gratidar".
Sim meus amigos, gratidão também é verbo. Que pode mudar vida, ou dias. Tenho certeza que mudamos o resto do dia da Noélia, quando ela ficou com nosso gostinho em seu coração.

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