Não é pesado, é meu irmão!



O dia começou com cotidianidades. Levar o JG para cortar o cabelo, comprar água mineral, calibrar pneus do carro.
Então, por termos atrasado muito, proponho ficarmos mais perto de casa.
Ao passar em frente ao Camarão Grill, no início da praia do Bessa 2, o JG nos pede para ali ficar.
Ainda nos diz que a programação do dia será ele quem fará.
Ele se lembra do parquinho aquático que naquele restaurante tem e insistentemente nos pede.
Engraçado, JG nunca pede nada na programação. E nesse dia ele se manifestou.
Atendi satisfeito seu pedido, estacionando no antigo e imponente Clube Médico. Mesmo hoje sendo um conjunto de ruínas. Ele perdeu a batalha contra o mar, que erodiu parte de suas instalações. Nunca pude adentrar naquele local, pela minha condição social, e por se tratar á época de um clube muito restrito à fina flor da sociedade Pessoense, na qual eu não me inseria. Passava pela praia, caminhando, e via os restos de festa e ainda glamour, mesmo no dia seguinte.
Hoje, só escombros, vazios, e árvores que teimam em nascer sobre suas paredes.
Toda manifestação humana de poder, todo acúmulo de bens materiais, de vaidade, dinheiro e arrogância, além das expressões de um orgulho besta, um dia vai virar exatamente o que esse local virou: PÓ! A maré do tempo é imperdoável com os que na vida só plantaram matéria, devolvendo para eles matéria, em forma de 5 palmos abaixo da terra. Já outros, que plantaram amor, apesar dos mesmos 5 palmos, deixarão a eles mesmos nos corações de quem por eles passou, ou foi tocado. Essa é uma sútil diferença, para quem entrar e para quem perder alguém, embarcado na plataforma dos 5 palmos de terra.
Deixando a filosofia de lado, pegamos uma mesa frente ao mar e fui credenciar o JG com a pulseira de acesso ao parque aquático infantil, que fica no interior do estabelecimento.
Tentei amizade com a mesa da direita. Cri cri cri. Só me respondiam com lacônicos monossílabos.
Tentei amizade com a mesa da esquerda, idem.
Então aproveitava as vindas do garçom, o Hugo, e com ele conversava.
Ele contou-me um pouco de sua história, nas frações de minutos em que ele passava na área para deixar algo ou atender alguém.
Há uns 30 anos atrás ele migrou para servir a Marinha no RJ, e por lá ficou. Lá conheceu uma paraibana, que atendia num bar próximo de onde servia, “um reduto de paraibanos”.
Apaixonou-se por ela, e numa noite em que montava guarda, abandonou o Posto para vê-la. Ao voltar, foi descoberto e deram-lhe duas opções: ser expulso, ou pedir baixa. Ele ficou com a segunda, menos vergonhosa.
Saindo do que poderia ter sido uma bela carreira, ele aprendeu o oficio de sua amada, e passou a ser garçom em estabelecimentos do Rio de Janeiro. Até que um dia, ao visitar João Pessoa, comprou ainda na planta um apartamento, na antes de difícil acesso e pouquíssimo valorizada praia do Bessa. Isso aqui era uma mata de cajueiro e ninguém queria fazer morada nas suas poucas avenidas abertas.
Até que os tratores chegaram e abriram o que ficou sendo chamado de Jardim Oceania, um enorme bairro de praia, com mais de 30 ruas.
Hugo me disse que todos chamaram-no de louco. E que ele pagava em dia as prestações d imóvel na planta, até que um dia o prédio ficou pronto. Então eles venderam o pouco que tinham no RJ e vieram para a Paraíba, trazendo seus filhos, bem pequenos.
Aqui fizeram de tudo para sobreviver, e ele passou a ser chamado para atender plantões em bares e restaurantes. 

Hugo me conta que trabalhou muito, em plantões extenuantes que mal dava para ver os filhos crescerem. E que no único dia de folga só pensava em dormir.
Com o dinheiro custeou os estudos dos filhos: um terminou direito e é perito da polícia civil, o outro faz Escola Naval e a menina estuda biologia.
O orgulho dele em dizer que conseguiu criar os meninos com o fruto de seu trabalho de garçom, e a ajuda de sua esposa – “empresaria de biscates”, são de aquecer o mais gélido coração de quem o escuta.
Conta-me que agora não faz mais plantão, não dobra jornada. E que pode finalmente conviver com sua família, nos períodos pós-labiuta. E que, na segunda, é o dia de sua folga no qual ele acender a churrasqueira, que fica na varanda de seu apartamento, chama os familiares e com eles se confraterniza, ao som de uma boa música. A segunda é o seu dia de celebrar, com sua família, a vida.
Hugo consegue uma cadeira de piscinas, daquelas brancas, e ganhou muitos pontos com dona patroa que estava se bronzeando. Ainda me fornece uma preciosa dica, pedindo quatro caranguejos eles saem, naquele dia de “black friday”, por R$ 3,00 cada um. Com desconto de 50% em relação aos concorrentes. Aí a festa ficou completa e tome caranguejo, e frações de minutos de papo com o Hugo, que queria contar sobre a vida dele e eu queria ouvir. “A Tampa com a Panela.“
O mar estava calmo e crianças brincavam na areia. Uma delas chamou minha atenção. Tinha o braço engessado e seus pais o cobriram com plástico filme, para que ele pudesse brincar na praia e tomar banho, sem prejudicar o gesso.

Fiquei amando aquela família, sem saber quem seriam os pais do menino. Outro garotinho juntou-se a ele e trazia baldes de água, pesados baldes, para encher o açude do garoto com braço engessado.
Uauu, que solidariedade infantil. Daquelas que transformam o mais ácido coração em mel.
Notei que um senhor aproximou-se do garoto e com ele estabeleceu contato. Deveria ser o pai.
Então dirigi-me a ele e reconehci sua atitude de cobrir o gesso com filme plástico de cozinha.
Ele era o avô, e o netinho se chama Davi.
Logo estabelecíamos um papo dos bons, ali vendo-lhes brincarem. JG chega da piscina e se junta ao grupo, dos construtores de açude, em animada alegria.
O avô se chama Patrício, pastor Patrício, da igreja Betel. Homem sábio, que rejeita esse tipo de fé que vende até água do Rio Jordão, que acredita que a verdadeira fé se coloca a serviço dos mais pobres e necessitados. Como os irmãos de sua igreja fizeram, ao arrecadarem R$ 200.000,00 em inúmeros eventos e intervenções em sinais, e com esse dinheiro construíram uma creche, nos fundos da igreja e que hoje atende 60 crianças da comunidade.
Ele nos levou para conhecer sua família, que estava sentada a umas 3 mesas da nossa e com eles ficamos até o entardecer.
Falando das coisas pelas quais vale a pena viver: um país melhor, o aconchego do regaço da família, a solidariedade e respeito entre os povos e a necessidade de sermos jardineiros da paz.
Uauu!!!
Quem soprou no ouvido do JG foi o Espírito Santo, e o JG, ao alterar nossa rota, insistindo para ali ficarmos, nos possibilitou um dia místico, mágico e fenomenal.
Na saída, comprometi-me em ajudar ao grupo de teatro dos jovens da igreja, que estão tendo dificuldades em amealhar, nos semáforos, R$ 200,00 para comprarem o material da encenação da Paixão de Cristo.
O sol já queria ser por, e aí me despedi deles. Eu iria levar os meus e a meu pai que chegava de Campina Grande, para hoje me deixar no aeroporto, na Casa do Bacalhau, o que de fato aconteceu e foi muito bom.
No trajeto, fui ao gerente do estabelecimento, reconheci o trabalho do Hugo, aproveitei e pedi que ele fechasse a fatura da mesa 145. Paguei a conta, e disse ao Hugo que avisasse ao Pastor Fabrício que a despesa dele estava quites. E que fora nossa doação, em retribuição ao amor que ele expressa pelos mais necessitados, dizendo-nos a todo momento, sempre que nos os arguíamos sobre as dificuldades de fazer missão em áreas tão carentes e até violentas: “Ricardo, não é pesado, pois é meu irmão”.
Uauu, com essa frase encerram-se as transmissões dessas férias.
“Não é pesado, é meu irmão”.
No trajeto até em casa, elevei meu coração a Deus e pude escutar o pensamento do coração, do amiguinho do Davi, dizendo-me também:
“Não é pesado, é meu irmão”.
Nota: Davi e o seu amiguinho conheceram-se na praia, ontem.

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