Cartas ao JG – Obvia Mentes (Autor Ricardo de Faria Barros, pai do JG - 7 anos)

Cartas ao JG – Obvia Mentes (Autor Ricardo de Faria Barros, pai do JG - 7 anos)
Sabe filho, domingo foi um dia super bacana. Pela primeira vez fomos pedalar nas ciclovias da UNB. Pedalar por ali, no domingo, é um convite à paz e à oração.
São quilômetros de ciclovias desertas, entremeadas por enormes árvores. Uma delícia. Fizemos o trecho da Aneel até o posto de Gasolina, pela L3.
Você aguentou firme, uns bons 4.4 KM de pedalada.
Eu ia te acompanhando, devagarinho, e tirando fotos.
Lembra aquele bambuzal enorme, aquele que parei para fotografá-lo, é que eu gosto muito de bambus. São árvores que nos ensinam bastante.
Você me perguntou o que era uma expressão em inglês, que leu, e disse-lhe que eu era muito burro para as coisas do “ingrêis”.
Você me retrucou, dizendo que eu era sabido para muitas outras coisas. Fiquei tão feliz! Mais tão feliz...,
Que passei a pedalar nas nuvens, tocando nas fronhinhas dos anjinhos.
Costumo dizer que o amor: amar e se sentir amado, nos faz tocar e deitar nas fronhas dos anjos, lá nos seus travesseiros de nuvens.
Quem já se sentiu assim, sabe do que falo.
Foi para lá que fui, ao perceber que vocês estava defendendo seu pai, dele mesmo, quando me chamei de burro. “Mas pai, você é sabido para um monte de outras coisas”.
No celular, tocava Jorge Aragão e eu cantava para ti, e para mim, uma música dele que amo chamada Conselho:
“Deixe de lado esse baixo astral
Erga a cabeça enfrente o mal
Agindo assim será vital para o teu coração
É que em cada experiência se aprende uma lição.”
Que lição de vida!
De vez em quando um pássaro nos fazia companhia, como que a dizer, apressem o passo, a Cristina vai lá na frente.
E nos entreolhávamos, cúmplices, de nosso pouco ritmo pedalístico. E ríamos de nossa canseira, e muito.
Logo depois, fomos almoçar e você nos brindou com fome e rapando o prato. Acho que foi o pedal que abriu teu apetite.
E estava perguntador. Perguntou-me como eu tinha coragem de tomar cerveja, já que era tão ruim e amarga.
Aí, devolvi-lhe a pergunta, encafifado: “Como sabe disso?”
E você soltou sua palavra do momento: obviamente.
“Obviamente que é, já tomei coca-cola. É amarga e ruim”.
Entendi, para você a cerveja era um tipo de refrigerante de adultos. Como Coca-Cola. Ahh...
Eita JG! Quantas tiradas de perder o fôlego.
Chegamos em casa satisfeitos, alegres e falantes. E fomos cochilar. Aquele soninho da meia tarde, pelas três.
À noite não fui com vocês para a igreja. Eu precisava entregar um trabalho, e meu procrastinador adiara sua produção. Então arregacei as mangas para produzi-lo.
Perto das 19h45min, tua mãe ligou dizendo que tinha batido no meu carro, que ela dirigia.
Perguntei como estavam todos, ela me tranquilizou. E pediu que eu fosse ao local, para tomar as providências junto ao outro motorista que bateu na traseira de meu carro.
Cheguei ao local e você estava aflito, chorando.
 Vi que fora apenas um susto, um baita susto, já que o cara bateu com força e vocês só sentiram o impacto.
Resolvida as questões legais, voltamos para casa.
Vocês não quiseram mais ir para a igreja, embora eu tenha dito que agora era que deveriam ir mesmo.
Mas, estavam nervosos e chorosos, sua mãe sentido-se culpada, embora houvera culpa alguma.
Acho que ela pensava, o carro do Ricardo é novinho e logo comigo acontece isso.
Besteira. Só são coisas.
O clima estava pesado em casa. E me arrisquei propondo que assistíssemos um filme.
Procurei um mais leve, quase infantil, de uma poesia maravilhosa, chamado Shaolin do Sertão.
E você sorria de dobrar. Esquecendo-se um pouco do trauma que vivera, seu primeiro acidente de trânsito.
Hoje, pela manhã perguntei de nossa pedalada. Você lembrou novamente do abalroamento.
E eu disse-lhe para ter cuidado com aquela raiz de amargura, pois ela poderia se enraizar e fazê-lo esquecer todas as outras coisas boas que vivera no domingo.
Você fez cara de “obviamente”, e expliquei-lhe melhor, traduzindo conceitos de psicologia para seu mundo infantil.
JG, tem coisas na vida da gente que melam tudo. Que se acontecem após um dia super feliz, podem estragar a percepção de todo o dia. Temos que ter cuidado com elas.
Que são como gotas de “coca-cola”, dentro do leite.
Alteram o sabor e a percepção fica distorcida.
Não é mais leite. Aquele de que tanto gosta. Agora aquelas simples gotinhas amargosas alteram o sabor de tudo.
Assim é com as coisas que nos causam sofrer, traumas, elas alteram nossa percepção, auto-estima e disposição para enfrentá-las.
E, temos que ter controle sobre o quanto vamos deixar que essas coisas chatas que acontecem possam estragar as outras, as legais.
A tendência, se não cuidarmos, é que o que de ruim aconteceu, aos 49 min do segundo tempo, altere toda a percepção do jogo.
Existe uma pesquisa com viajantes que voltam de férias e perdem as malas, que têm suas malas extraviadas e nunca as recuperam.
Esses viajantes, abordados cinco anos depois, quando são perguntados como foram aquelas férias, a primeira frase que emitem é que eles perderam as malas. Que foram muito aborrecidas, as férias, por aquela razão. E esqueceram todos os outros bons momentos vividos.
Entende, filho meu?
Imagine que você esteja namorando. Que passa um dia maravilhoso com sua namorada.
E que, perto das 21hrs, diz a ela que precisa voltar imediatamente para casa, pois o domingo era seu dia de lavar o carro e ainda não o fez.
Age de forma impensada, instintual, com medo de meu sermão.
Ela olha para você entristecida. Dizendo que não esperava isso de você. E coisas do gênero. Você percebe que pisou no tomate e tenta se remediar, pede perdão. Ela não ouve.
Aí, caso a força do amor não impere – na sua expressão maior que é a misericórdia, o que restará desse dia tão lindo que viveu será uma mágoa.
A mágoa apagará todas as lembranças boas.
Por isso o fechamento de ciclos é tão importante em nosso viver.
Não podemos, filho meu, deixar que uma leve batida na traseiro de nosso carro, tire toda nossa capacidade de degustar os bons momentos, vividos antes daquela chateação.
Por isso, se tem uma arte que quero lhe ensinar nessa noite, é a de fechar as janelas do coração, virar as páginas de teu viver, ou segregar numa gavetinha isolada, tudo aquilo que te fizer infeliz – após bons momentos que viveu.
Caso contrário, aquilo vai melar e contaminar tudo.
Nossa estrutura de pensamento foi modelada, ao longo de milhares de anos de existência, para ampliar a caixa de ressonância do negativo – melhorando nossas capacidades de adaptação e sobrevivência. Aí, acionamos as teclas do modo atacar, defender, ou fugir, e esquecemos de desligá-las.
E se não tivermos cuidado, perderemos a capacidade de relaxar, contemplar, degustar, saborear ou gozar o que de bom também nos acontece.
Veja novamente o filme Divertida Mente e verás o quanto as lembranças de tristeza têm o poder de apagarem as de bem-estar.
Então, feche a janela da batida. Passou. Estamos bem. E, volte a se lembrar de nossas gargalhadas, tentando inutilmente emparelhar com tua mãe no pedal.
Evoque os pássaros que viu cantando, ou lembre-se daquela sombra cantante, ao daquele bambuzal que emitia sonaras vibrações musicais, ao ser tocado pela refrescante brisa aracati.
E, as risadas que deu vendo o filme Shaolin do Sertão.
Essas coisas são de que uma vida boa é feita.
Quanto ao resto, conserta-se na lanternagem, ou se aprende a conviver sem se deixar morrer um pouquinho a cada dia.
E, muito obrigado por ter me defendido de mim mesmo, quando declarei que sou burro no inglês.
Fiquei me sentindo um super-pai!

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