Um dia frio e uma boa rota para passear. (Autor Ricardo de Faria Barros)

Acordei no domingo, na casa de meus pais, mais cansado que sozinho. Mas, era cansaço dos bons, tinha feito uma maratona na madrugada do dia anterior, para acomodar os gerânios que trouxe para mamãe, em duas caixas de papelão. Esses gerânios serão um dos temas das próximas crônicas.

Da cozinha, vinha sons e aromas da Celina preparando o café que madruga lá em casa, são barulhos e cheiros que evocam vida, os da melhor qualidade. Entrei no banheiro e fiz a barba, pensando que ali, naquele WC, era meu antigo quarto, pequeninho e aconchegante. Eu dormia no segundo andar, e meu irmão no térreo do beliche. Quando fui tomar posse no BB em Poções-BA, e por lá passei um ano e meio, 1986-1988, meus pais demoliram a casa antiga e construíram uma nova. Quando finalmente voltei, tive um choque.

Onde estavam minhas memórias de infância e juventude?  

Não tinha restado nada da casa anterior. Acho que vamos guardando pedaços de casa dentro de nossa existência. Com paredes, cheiros, texturas, jardins, cores, recantos e esconderijos, somos casa, somos ethos. O sonho de meus pais, de nos dar um conforto maior, não realizou com nenhum de seus três filhos, pois todos migraram para outros estados e casaram-se. Contudo, realizou-se com meus três filhos, criados com muito amor por eles, e pelos uns bons dez anos. Sonhos são assim, muitos deles não são para gente, são para as pessoas que vem lá na frente, dobrando a esquina do amanhã.

Nos cafés dos domingos os padres são sempre bem-vindos. Eles celebram na igreja do Rosário, aos fundos de minha casa, e a mamãe sempre os acolhe para um café, após a primeira missa do domingo. Nesse dia foi o Pe. Isaías, uma simpatia de amorosidade, em forma de padre. Como dizemos por aqui, um “padre que consegue evangelizar os jovens”.

Após o suculento café da manhã, escutei a voz de Sebastião. Sebastião é um daqueles ícones do jardim da mamãe. Há pelo menos 20 anos ele faz o jardim lá de casa, e tem um jeito e paciência de Jó - com as plantas e mamãe. rsrs. Nunca vi Sebastião sério, chateado ou falando mal da vida. Ele sempre está sorrindo, transmitindo paz e gosta muito de se relacionar conosco.

Entramos no carro, fizemos a chamada dos passageiros do passeio e seguimos para conhecer a Rota do Frio, ou da Cachaça, como queiram, acessando-a por Alagoa Grande, e fazendo o que chamamos de Anel do Brejo. Brejo é uma região muito fértil, rica, chuvosa e com um ecossistema único no Brasil. No caminho, árvores enormes, muitas curvas, engenhos ainda em funcionamento, e cidades bem antigas, com mais de 200 anos.

Uma rota para enamorados de tanto charme que dela sai. Paramos em Alagoa Grande e conheci a sua lagoa, que emoldura e dá nome à cidade. De fato, é bem grande pra nós da PB, gente de pouca águas.

Papai ia narrando os lugares, em Alagoa Grande, que já tinha alugado para fornecer cursos técnicos do Senai, uma de suas atribuições como Diretor das Unidades Móveis do Senai, coisa que ele criou a partir de uma experiência que viu no México, em 1970. Nessa experiência, os cursos técnicos eram acomodados em grandes caminhões que migravam por aquele país. Quando ele chegou ao Brasil, junto com outros inovadores do Senai, montaram a estrutura de atendimento móvel, seja em lugares alugados, seja em enormes carretas.

Isso democratizou o acesso a eles, criando oportunidades de profissionalização para povos distantes dos grandes centros urbanos. Tenho muito orgulho de meu pai por ter possibilitado isso a tantas pessoas, viajando por mais de 35 anos pelos rincões da PB. Com água ou sem água, com asfalto ou sem asfalto, com luz, ou lampião, não importava, se tinha um galpão disponível, poderia ter educação profissional, nem que fosse à bateria. E ali, ele e seus instrutores, aportavam para oportunizar esperanças de pessoas se formarem em tornearia, mecânica de automóveis e bicicletas, marcenaria, eletricidade, calçados, hidráulica, panificação, entre outros cursos.

Em Alagoa Grande-PB, chamou a atenção o casario histórico e bem conservado, e seu Teatro Santa Ignez, de 1905, e muito conservado, em suas estruturas de madeira e nichos internos. Um espetáculo de teatro. No caminho para Areia-PB, subindo um dos conjuntos das Serras da Borborema, talvez a mais alta, paramos para fotografar uma bela árvore florida, de beira de estrada.

Perguntei-me quantos já não a olham mais com o nosso assombro. Vistas pelos olhos opacos da indiferença, fruto da rotina de todas as coisas, que vai nos cegando à beleza do cotidiano, aquela que está sempre à mão e por perto, e deixa de ser admirada e reconhecida, por “você me ter fácil demais”... como diz a canção.

Na sua copa florida de rosa, muitas abelhas, beija-flores, borboletas azuis e encantadas, e pássaros faziam a festa. Uma brisa aracati soprava suas pétalas, que caiam no chão como que formassem uma cortina de Deus.

Refeitos de tanta beleza, seguimos subindo a serra. O clima ia ficando frio, para nossos padrões, agora uns 18 graus. E o ar era tão gostoso de respirar, tal qual quem bebe em água de fonte limpa.

Paramos para almoçar no restaurante rural A Bagaceira, em homenagem ao José Lins do Rego, nascido na região.

Esse restaurante por si só já é uma poesia de lugar. A paz e charme estavam ali, e em cada recanto. Comida deliciosa, decoração rústica, preço justo, atendimento impecável, e muitas mudas de flores para mamãe, gentilmente doadas pelo proprietário. Além de uma varanda preguiçosa, com redes e cadeiras de balanço, convidando-nos ao contemplar.

Em Areia-PB ficamos impressionados com a quantidade de casas de arquitetura em ar-decor, rococó e barroco, todas belíssimas. Areia é a joia do brejo, cidade multicultural, cheia de vida, boa gastronomia, com mostra de cinema e teatro nos seus impagáveis festivais de inverno, e com excelentes e premiadas cachaças. Além de ser o berço do Campus de Agronomia, da UFPB, que sempre recebe um monte de estudantes, a cada semestre, o que lhe dar mais vida ainda. Cidade com praça, coreto e matriz, com gente conversando nas calçadas, sentados nas cadeiras, e muita história, a cada esquina.

Ali entrei pela primeira vez numa senzala, com 190 anos, e vi a que ponto a atrocidade humana chegou, no comércio de escravos. Uma pena que esse aspecto não é enfatizado na visita guiada, que reforça mais a conservação histórica e a beleza da casa, com seus telhados em eira, beira, tribeira e quadribeira, sinal de opulência e muita riqueza de quem ali morava, os Rufino. Para mim, eu estava entrando nos porões fétidos da humanidade. Eu podia até sentir as vozes e choro de escravos que ali ficavam amontoados, em oito quartos, verdadeiros cubículos de 3 metros quadrados, sem janelas, esperando que os comprassem, que os viam ao circularem livres por uma espécie de praça, para a qual todos os cubículos abriam sua portinhola.

Fomos nos refazer de tanta energia ruim, visitando o museu de Pedro Américo, cidadão ilustre de Areia, e pintor renomado. Quando nos faltar a esperança na humanidade, vendo do que somos capazes, nada melhor do que mergulhar nas artes para restaurar a crença nessa mesma humanidade, grávida de contradições de si mesma.

Voltamos para casa passando por mais cidades do Brejo, fechando o anel rodoviário que fizemos. No caminho, entramos em Remígio, onde trabalhei no BB e por cinco anos ali fui caixa, e muito feliz. E Esperança-PB, local que no seu hospital público fiz meus primeiros atendimentos como psicólogo, parte do projeto de extensão e integração Universidade e Comunidade. Guardo boas memórias daquele povo tão sofrido que pude atender, dos quais as mulheres mais idosas relatavam muito sofrimento por não terem notícias de parentes, filhos e até maridos, que migraram para SP em busca de melhores condições de vida. Chegamos em casa, pelas 16hrs, após um percurso tão bacana. Senti ao adentrar o jardim uma brisa aracati soprando sobre minhas faces. Notei que da jardineira pendia um cacho de um gerânio vermelho que trouxera, Nele uma borboleta fazia a festa, e era azul. E o dia terminou com chave de outro, agora brindando ao amor!

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