Cartas ao JG. Na dor, vá para a margem (Parte 2). A Disparada da Despedida (Autor Ricardo de Faria Barros)

Sabe filho, uma coisa que tenho aprendido é a ler os sinais do que a vida que me falar, nem sempre de forma tão clara.
É preciso ir juntando uma peça ali, outra acolá, é preciso estar sintonizado na frequência dos sentimentos e pensamentos mais nobres e perceber a fala da vida, sobre determinada situação que enfrenta.
A condição para essa escuta é desacelerar o ritmo, permitindo-se navegar lentamente, beirando a margem, para que a dor do momento, o luto, ou uma forte decepção não lhe turve as vistas, e faça com que você se perca de si mesmo.

Na margem, ficamos com a percepção seletiva aguçada, para nos ler, nos autoconhecer melhor, mapear o que nos ocorre e juntar evidências para tomar decisões.

Ontem foi um dia assim. Tudo começou quando dirigia para me despedir de Duquesa, e no caminho conversei com o veterinário. E ele me disse que Duquesa não poderia ser sacrificada, na manhã de ontem, pois que tua mãe decidira enterrá-la no jardim. Confesso-lhe que fiquei puto de raiva, uma vez que a minha decisão - após muito estudo e sofrimento, eu já tomara. E era para que o próprio veterinário desse fim a ao corpo dela. Então, para esclarecer melhor a situação, eu liguei para tua mãe que confirmou a informação dizendo que o jardineiro Jackson iria hoje (18.11.2017), abrir uma cova no jardim. (Evidência 1)

Então, retornei o telefonema para o veterinário, reprogramando o procedimento para a esta amanhã.
Continuei dirigindo para tua casa, com o firme propósito de me despedir da Duquesa. E o trânsito estava infernal, naquela sexta de tempestade aqui no DF, e eu levei 90 minutos de Sobradinho e até próximo à São Sebastião, onde mora.
No trajeto, tua mãe ligou dizendo que pessoas amigas do trabalho dela falaram que já existe tratamento par essa doença. Eu disse-lhe que conhecia e que o preço era exorbitante, e que não recuperaria as lesões que ela já sofrera, nos rins e fígado. (Evidência 2)

Cheguei na tua casa e marquei o lugar da cova, perto do meu pé de umbu. Desci ao pomar e passe um bom tempo acariciando Duquesa, num processo de despedida bem doloroso, mas necessário para fechamento de ciclos. Em determinado momento me distraí, ao ver o quão bonito está a Lichia, carregada de frutos, e ao olhar para o gramado novamente, só vejo o Balu, o nosso velho e gordo labrador.
Chamo por Duquesa e nada dela. Subo a escada externa, em direção ao pavimento superior, e ela também não está a garagem. Ergo a vista e a vejo na garagem da casa da frente, e de lá ela balança o rabo para mim. Chamo-lhe e ela vem correndo, toda alegre, como quem sabe que fez uma peraltice. Ralho com ela e ela volta para o pomar e canil, descendo as escadas qual foguete. Duquesa nunc fez isso. O portão fica sempre aberto. Subir para a plataforma superior é algo impensável para ela que foi condicionada a ficar sempre no pomar. Ela nunca fez aquilo. (Evidência 3). Era como se ela dissesse para mim: “ei, eu estou bem, olha como corro, sei fazer até a disparada da despedida”.

Saio de tua casa, com a cabeça a mil, visto que aquela cena fora muito forte para mim. E sigo para meu lugar predileto de esfriamento de cabeça, qualquer um dos parques do DF. Opto pelo Parque Nacional de Brasília, chamado de água mineral. Ao começar a caminhar pelas suas trilhas, olho para o céu, e um coração de amor se faz presente, olhando das nuvens para mim. (Evidência 4).

À tardinha, voltando para casa após pegá-lo na escola, Mariana, amiga de papai e filha de Ari e Sylvia, meus compadres, manda uma das tantas mensagens de apoio que papai recebeu, após publicar tua Carta, de ontem. Aí eu gravo um áudio para ela, relatando como foi a despedida, inclusive a fugida para rua da Duquesa, ao que ela me responde assim: “Poderia ser triste a história, mas o amor como você fala dela é lindo! Foi a disparada da despedida. Que ela continue feliz e lindona...” Ela usou o verbo no presente, percebe? (Evidência 5)

À noite, meu filho diz que um grupo de criadores e veterinários, ao saberem de minha história, aceitaram tratar de Duquesa e adotá-la. (Evidência 6).

Aí, entro em sites relacionados ao tema e descubro que há 3 anos chegou no Brasil o único medicamento que elimina a doença do animal, chamado de Milteforan. Descubro também que o cão infectado não transmite pela saliva, pelos ou pele, ou em mordidas, lambidas ou contato físico essa doença, o que livrará você de pegá-la (Evidência 7). Continuo a fuçar em sites de criadores, ONGS de proteção aos animais, e até em clínicas veterinárias, e vejo que a opção da eutanásia é uma questão de saúde pública, não pela doença em si, mas pelo alto custo do tratamento. Coisa que afasta a população mais pobre dessa opção, o que é uma pena. O tratamento custa algo em torno de R$ 5.000,00 considerando as duas aplicações do remédio, as colheitas e rações especiais.

Após essas sete evidências sinto que a vida está me falando algo. Saio da margem, volto ao leito do rio, e decido tratar a Duquesa. Bancar o custo e não carregar a culpa de não ter tentado. Quem ama admira, cuida e protege. E eu a amo.
Abro a janela do apartamento e sinto vindo em minha direção uma aromatizada brisa Aracati que me diz: “não temas voltar ao curso do rio de teu viver, eu segurarei em tuas mãos, pode sair de minha margem e voltar a navegar: corajoso e em paz.”.

Um sentimento bom invade meu ser. Envio mensagem para o veterinário cancelando o procedimento da eutanásia de Duquesa. Entro no Mercado Livre atrás de remédio mais barato, e sinto que estou fazendo a coisa certa, mesmo abrindo mão de uma quantia razoável, que poderia a outas coisas ser destinada. Tem nada não, o que gastarei é muito mais barato do que o peso em minha consciência.

O que quero te ensinar com isso? Na margem, quando estiver vivendo processo de luto, ou de angústia, pelo que te ocorre, aprenda a ler os sinais da vida.
No deserto da navegação pela margem de eu viver, aprenda a ser compreender melhor, a se conhecer, a interpretar os pequenos toques, e nada diretos, que a vida via te dando. Pois, você precisará tomar decisões, até para voltar a navegar pelo leito do rio de teu viver. Pois que ninguém é feliz andando só pela margem da vida. Por melhor que seja a tua margem, como as minhas são, elas não poderão devolver o sentido da vida a ti. Só você poderá fazer isso, pagando o preço pelas suas escolhas e decisões.

E estando pronto para voar novamente, abrindo as asas de si mesmo, despindo-se de todo medo, culpa e sentimentos ruins que em ti foram se fixando.

Ao retornar para o curso do rio de teu viver, veja que ao teu lado voa uma borboleta azul, aquela mesma que quando tu estava na margem insistia em lhe dizer que o que o amanhã será melhor, e que aquilo que vivia também passaria. Agradeça a ela. E aprenda com ela. 

Borboletas azuis quando estão pousadas nos troncos, não são azuis. Elas são marrons, da cor dos troncos. Fazem isso para sobreviver, criando um mimetismo com o ambiente. O tronco é a margem delas. Mas, quando saem para polinizar esperanças, abrindo as suas asas, um azul cintilante irrompe de seu interior, clareando os mais nublados dos dias teus. Quem tem uma na vida, tem bênção e graça, e em abundância.

E, geralmente elas são nossas margens. Aprenda a valorizar e a ser grato a quem de ti cuidou quando esteve sofrendo. E, um dia retribua, e cem por um. Devolvendo aos outros, quando for margem para eles, em dobro, o que a vida lhe deu, em forma de proteção, amor e respeito. “Tudo que tu quiser tentar é o mais importante. Amanhã o sol vai brilhar.” Mensagem de minha margem, que serve para tu, e em todos os momentos nos quais decidirá retornar ao centro do leito do rio de teu viver, voltando a ser o próprio protagonista de tua jornada.

Aprenda a ler os sinais do que a vida está querendo lhe falar. Algumas vezes, até gritando-lhe para que tome consciência e mude algo que está lhe fazendo infeliz.

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JG = João Gabriel, meu quarto filho, hoje com 8 anos.

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