Escutatória



Eu não sei o que você acha, mas para mim, o celular, telefone e a internet com seus emails, janelas de comunicação, possibilidades infinitas de interação e construção coletiva de significados são grandes companheiros. Outro dia ouvi no rádio umpastor divulgando a página do FB de sua igreja, conclamando os irmãos a curtirem, comentarem e compartilharem. Novos tempos. Voltemos ao velho e bom telefone. Quem já esperou um telefonema que poderia trazer notícias boas? Aquela espera pela ligação da pessoa amada, ao lado do aparelho, é uma viagem, não é? Como é bom ouvir o toque deste maravilhoso aparelho! Como é bom saber que alguém nos telefonou! É aquela sensação ímpar de que somos aceitos e lembrados. Telefone encurta distâncias e ameniza a convivência com a ausência. E é de ser ouvido que gostaria de falar.

Sempre tive uma agradável sensação de que não há melhor psicólogo do que as manicures. As manicures são "psicólogas da vida” por excelência. Elas interagem com seus clientes, ouvem suas estórias e histórias.

É esta capacidade de ouvir e ser ouvido que habilita o ato comunicativo. Você já percebeu como está difícil ouvir. Que não existe aulas de escutatória. Quando o outro começa sua fala a gente já se inquieta, já fica ansioso para intervir, ou "dar conselhos". Isto quando a gente está ligado...


Nosso descaso com o discurso do outro é tremendo. Enquanto ele fala, nós divagamos. Mantemos uma pose de escuta mas, no fundo, estamos noutro espaço, tempo e movimento.

Como perdemos a capacidade de ouvir criamos justificativas tais como :" Hoje não! É que não tenho tempo. " As manicures são sábias em ouvir. A cada semana, recebem seus clientes, e acolhem suas histórias de vida. Sem falar no toque de mãos. Ah! o toque, como é importante. Bloqueamos o toque e não damos expressão à afetividade, hoje em dia quase não damos e recebemos afagos. Tudo é tão mecânico que quem ousar romper este cerco é tido como "artista" - " Ah! Ele é assim tão carinhoso porque faz teatro"(pasmem!)

Acho que nossos ouvidos também podem ser afinados. Afinar os ouvidos é perceber a linguagem, às vezes escondida nas entrelinhas. É captar, exercitando a percepção integral, mais que os sons que nos rodeiam: o canto dos pássaros, o vento que sopra, o sapo que coaxa, captar os cantos das abelhas na dança do pólen. Porém, se não conseguimos mais ouvir nem os sons que brotam do diálogo, como é que podemos ouvir os que nossa mãe natureza expressa?

Não captamos o que o outro comunica verbalmente, imagine na multiplicidade de sua linguagem não verbal ! E quando nos damos ao luxo de ouvi-lo é sempre um ouvir carregado de ansiedade, de intervenções. Queremos intervir para abreviar a fala, dar conselhos e já falarmos de nós. Afinal, aprendemos a girar em torno de nosso próprio eixo e deixar o outro mergulhar em nós é violentar-nos.

Nossa incapacidade de ouvir gera um abismo entre nós e o outro.

Afinar nosso sentido da audição leva tempo. Aprender a arte do diálogo é tarefa difícil, exige treinamento e atenção para com o próximo.

Exige antes de tudo respeito.

É tão bom ser ouvido.

Você tem com quem desabafar?

Alguém pede emprestado "seu ombro" e contigo descarrega suas dores?

Se isto não acontece, não será que é você que está fechando os canais da comunicação?

Vamos aprender com as manicures. Aprender a construir relacionamentos mais verdadeiros, nos quais tenhamos a certeza de que podemos ser para o outro um porto seguro, sem ansiedades, sem olhares apressados no relógio, sem bocejos. Respeitando e ajudando este ser que, talvez dilacerado, procura em você um apoio e uma amizade.

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Créditos foto - APAE Magalhães Almeida-MA

Vídeos - Sentido da Vida - Viktor Frankl







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Iluminemos pessoas!

Vez por outra, quando cansados, precisamos de uma luz de fora iluminando nosso florescer, mesmo que fraquinha.

Ladainha do Educador














1. Da faringite, diarreia, gripe, ou ter outras mazelas de saúde durante uma atuação.
2. De não aplicar os conceitos de construtivismo, multirreferencialidade e complexidade.
3. De tudo que me impeça de chegar no horário do curso.
4. De textos ruins, atividades mal descritas e do excesso de power-point.
Salva-me, Senhor!

5. De leituras longas, após o almoço, e do conteúdos apostilas-de-cursinhos.
6. De aplicar as dinâmicas de grupo como “brincadeiras”.
7. De alunos apáticos e perturbando na sala.
8. De estourar tempos e não alcançar os objetivos das atividades.
Livra-me, Senhor!

9. De ter sempre a  melhor “resposta” e não se permitir às outras vistas de um ponto.
10. De não aceitar e reagir defensivamente aos feedbacks recebidos.
11. De ter uma recaída e achar que ser educador é despejar conhecimentos nos outros.
12. De ter um branco e esquecer parte do conteúdo expresso oralmente.
Cura-me, Senhor!

13. Do luto com um curso mal avaliado.
14. Dos preconceitos encanecidos ou adormecidos.
15. Das atuações sem pique e ânimo. E, ao atuar em dupla, de não formar uma liga.
16. Da falta de práxis pedagógica transformadora e cidadã.
Liberta-me, Senhor!

17. De cursos com textos mal escritos, ou de conteúdo duvidoso.
18. De não criar uma comunidade de aprendizagem, criadora de conhecimentos.
19. De não receber a digna remuneração pela labuta educacional.
20. De faltarem recursos para algumas atividades do curso.
Proteja-me, Senhor!

21. Dos convidados, em aberturas de curso, extrapolarem o tempo ou antecipar temas.
22. De participantes saindo da sala com frequência.
23. Na hora em que falte o sabor e o prazer em educar.
24. Quando cometer ou presenciar algum deslize ético em sala de aula.
Intervenha, Senhor!

25. Quando perder o assombro, o encantamento e a amorosidade nas atuações.
26. Quando tiver apresentando sintomas da Síndrome de Burnout.
27. Quando precisar de um sonrisal-pedagógico para digerir os “sapos da realidade”.
28. Quando não relacionar os temas à vida dos participantes e da sociedade.
Ajuda-me, Senhor!

29. De não ser passar muito tempo fora da sala de aula.
30. De participantes quebrando o barraco entre si.
31. De cursos fast-food com redução de carga horária em detrimento de sua qualidade.
32. Da falta de energia e de participantes vindo obrigados ao curso.
Faz um milagre, Senhor!

33. De querer desistir de ser educador.
34. De tornar um descrente da educação.
35. De nivelar a atuação à de educadores-pilotos-automáticos.
36. De achar que não preciso mais continuar aprendendo e renovando-me a cada curso.
Acampa teus anjos Senhor e me repreenda!

É preciso subverter a ordem reinante


Esta seca inclemente machuca nosso povo, nos faz a todos irmãos e solidários.

O Nordeste do Brasil, em anos cruéis de seca, naqueles em que faltam dias de tempo bonito no céu (céu nublado, anunciando chuva ), gera apreensão comunitária.
Nestes anos, juntamo-nos como povo mais ainda para evitar que migremos. Nem sempre conseguimos.
Cada ônibus que sai para SP – ou para os grandes centros país fora, e agora mais modernamente falando, cada avião, gera um luto social, uma dor coletiva. Brota nestes momentos um sentido de irmandade, de solidariedade.
Quando não podemos mais ficar, quando se fecham todas as portas, as despedidas são lancinantes.
Brotam dos lábios os “até logo”, as promessas de voltar no próximo ano. Aqui e acolá ouvem-se estertores de soluços. Mas não somos um povo de choro.
Celebrar o São João, sem o milho em flor - no terreiro pronto pra ser colhido, e consumido em pratos mil; sem o feijão maduro; sem a macaxeira companheira eterna, cozida ou em farinha, amiga de todos os alimentos, torna nossos corações prece e súplica.
Sem a abóbora, a melancia, a fava, a galinha gorda, o bode feliz e berrante, tudo fica tão sofrido!
Quando chove em março, abril... o sertão vira fartura em maio, junho, julho.

Então, quando vemos milho verde nas feiras livres nordestinas, e aos montes. Quando vemos em cada esquina da feira uma senhora debulhando as vargens do feijão verde, pensamos todos: conseguimos mais um ano.
Sabemos que a pequena safra dará um pouco mais de sustento para continuar na terra.
A alegria emana das feiras livres, chácaras e quintais.
Todos celebram as bênçãos das colheitas e doam aos vizinhos suas sobras não comercializadas.

Falta algo no mês de junho quando a seca é inclemente. Falta celebração.
Em algumas cidades até as festa juninas são canceladas, tamanho luto.
Água temos. Falta uma concertação sócio-político-econômica para articular ações estruturantes para seja melhor aproveitada.

Faltam políticas de Estado e não de Governos. Descontinuadas a cada mandato quadri-anual, em qualquer nível de governo.

Não queremos eternizar bolsa-auxílio alguma. Elas são paliativos.
São importantes em anos como esse. Mas viciam.
Dão uma falsa sensação que a situação foi resolvida.
Ledo engano.

Queremos nós mesmos produzir o pão nosso de cada dia.
É mais cômodo manter a indústria dos carros-pipas que amealham dinheiro público e alimenta os currais eleitorais, do que investir soluções inovadoras que possibilitem a convivência com a seca, em projetos de desenvolvimento regional sustentável - com geração de emprego e renda.

Porém, seguimos resistindo. Não deixamos morrer a esperança.
Aliás somos um povinho besta que tem na esperança sua marca de viver.
Nunca aceitamos discursos que nos fazem de vítimas, nunca aceitamos pena, nunca aceitamos esmolas. Preferíamos saquear as feiras livres, a nos ver objetos de esmola e sujeitos de pena.

Sempre acreditamos que era possível permanecer na terra, mesmo sendo tão árida e sofrida. Quando todos os políticos nos enganaram, com suas falácias, quando todos diziam que não tinha jeito, olhávamos para o milho em flor e acreditávamos.

Aprendemos a plantar na "poeira", apenas confiando na mãe natureza.
Sob um céu de sol inclemente, o sertanejo movido por um instinto ancestral sabe que é chegada a hora de arriscar deitar as sementes na terra, antecipando sua maturação e aguardando que nos próximos 15 dias chova.
Se der certo, logo logo terá feijão na panela. E estes cozidos de feijão, do feijão plantado no pó, cozidos com o que sobrou na dispensa, o sal e o pouco de água barrenta de poços exaustos, são deliciosos.

Chama-se plantar na poeira, na areia seca.

De tanto sofrimento que todo ano esperamos, e que nem sempre acontece, quando Deus chora lá de clima e manda chuva, passamos a viver cada dia como dádiva.
Colhemos cada safra, tão escassa, como a única. Aprendemos a dividir: a farinha, a caça, o feijão, o milho. Nossos olhos enchiam-se de esperança quando víamos a "barra" (formação de nuvens longe, no pé do horizonte) se formando, anunciando uma chuva tão desejada, e olhávamos o milho plantado no quintal, milho doce, que seria comido em comunhão.

Quando todos nos olhavam e diziam: Morte! Nós nos olhávamos e dizíamos: VIDA!
Quando não conseguíamos mais resistir, e juntávamos nossa mudança numa trouxa de roupas e uma mala puída, fazíamos o caminho de São Paulo sem olhar pra trás, doía muito. Era um trajeto silencioso, de lamentações e murmúrios, tal qual os negros nos porões dos navios.

Como a árvore que racha a pedra dura, aprendemos a resistir. É que caberia a nós, unicamente a nós, encontrar as saídas para essa resistência.
A seca levou nossos pais, nossos avós. Antes de eles partirem, no entanto, ensinaram-nos os caminhos. Ensinaram-nos a cavar cacimbas, a tirar água da raiz do umbuzeiro, a comer animais silvestres e até a comer coisas impensáveis para os "puros da cidade". Ensinaram-nos a usar o chapéu e o gibão de couro, a salgar a carne e a guardar os cereais para a próxima seca. Caminhos de resistência.

Éramos felizes?

Claro! À noite, os vizinhos se juntavam, nós nos reuníamos em volta das fogueiras para contar os casos: a vaca que pariu, a bezerra que se perdeu, o sol que estava implacante.
Se faltava feijão numa casa e havia na do vizinho, havia o comaptilahr. Um dia seria feito ao contrário, com a farinha, ou um corte de bode. Aprendemos então a partilhar; partilhar o pouco que tínhamos. Aprendemos o mistério do doar.
Ninguém olhou para nós: políticos, autoridades, donos do poder...
Porém, nós olhamos para nós mesmos, nos amamos e criamos uma rede de solidariedade. Resistiríamos, sobreviríamos.

Cada nordestino sabe o que representa a beleza da luta da planta contra a rocha. Nesta seca inclemente, nestes dias que o pó vira ar.

Lembrem-se amigos distantes, neste texto de um filho teu que migrou, que és filho de quem já passou por isso.
Enxugue tuas lágrimas e continue na luta.
Não se entregue e abra caminhos. Outros te seguirão e caminharão pela estrada que abristes.
Resista mais um dia em ir para SP.
Olhem para esta árvore e creia na força de suas raízes. Subverta a ordem reinante.
Impliquem, denunciem, façam passeatas, abaixo-assinados, tirem os governantes de seu doce e refrigerado gabinete.
Sejam tal qual esta árvore, que subverte a ordem natural das rochas em solos tão pedregosos e atiram suas raízes no profundo leito, à procura de água. Sejam como esta árvore que, mesmo não conseguindo quebrar totalmente a aspereza e dureza do solo, abrem por seu interior fendas e rachaduras.
Sejam portadores da esperança e intransigentes defensores da justiça!

TXAI


 
Têm uns quinze dias que acordei num sábado, bem cedinho, e fui buscar na parada de ônibus um jardineiro aqui par casa. No trajeto até nossa casa ele foi contando que aprendeu o ofício de jardineiro olhando. Por curiosidade. De tanto olhar outros profissionais ele foi descobrindo o jeito certo de cuidar, de adubar, semear, tocar e de podar. Chamava-se Claudionor. Chegando ao pomar fui logo lhe entregando o carrinho de aparar grama e encomendando as tratativas que precisava. Aparar a cerca de fícus, ali na frente, abrir as covas das fruteiras, e passa o motor na grama esmeralda, para ela ficar bem tosada.
Ele olhou-me com certo respeito, aquele de quem é contratado pela primeira vez para uma obra qualquer. Um tanto relutante disse-me que não daria certo passar a máquina e aparar a grama. Não naquele dia.
Falou que a grama estava empestada de tiririca (um tipo de mato invasor) e que esta só sai manualmente, tiririca-a-tiririca, com uma machadinha. Que era serviço para um dia.
Mas que depois a grama iria vicejar novamente, visto que a tiririca estava sufocando suas raízes e a condenando à desnutrição e morte.
Fiquei pasmo. Puxei logo conversa e disse-lhe que já aparava aquele jardim tinha uns três anos e nunca houvera me dito tal coisa. Ele falou que os jardineiros não gostam de fazer este serviço. Que é um serviço que não rende, que não se vê resultado de pronto, e que é cansativo pela posição de sobrecarga na coluna.
Ele até ensina aos novatos, mas estes desdenham de sua cara. Dizem-lhe que o dinheiro não vê tiririca. Que quando corta fica tudo igual e os clientes não percebem.
Falou-me que não suportaria voltar pra casa sabendo que deixou vivas as tiriricas, entre as gramas, e que a tosa faria era piorar a situação. A grama esmeralda sente a tosa e fica mais fraca, enquanto isso a tiririca ganha espaço. Fica ainda mais forte já que são invasoras tuberculares e adoram uma poda.
Falei para ele fazer o que tinha que ser feito. E ele arrematou dizendo que seu prazer era poder voltar outro dia e ver que agora sim a grama renascera.
Passei dias pensando naquele gesto de doação do Sr. Claudionor. Naquele propósito de seu trabalho. Ele me lembrou duma palavra indígena que diz TXAI.
TXAI significa na língua dos índios Kaxinawá do Acre, "mais que amigo, mais que irmão, a metade de mim que habita em você, a metade de você que habita em mim. Quatro letras. E quando alguém te chama de TXAI, essa pessoa está pronta pra dar a vida dela no lugar da sua, se for o caso.".
Ele estava depositando, no seu simples serviço de jardineiro, a sua txai no meu lar. Ao término do dia o resultado do trabalho fora uns quatro sacos de lixo de tiriricas. Realmente a grama continuou alta, mas agora estava feliz. Não estava sendo sufocada por uma espécie invasora.
Fiquei pensando no valor de servir. Na liderança servidora. Ele me serviu o que tinha de melhor no seu trabalho.
Passou uma semana e voltei a acordar cedo num sábado. Fui “convocado” para registrar uma ação social da igreja que frequento com a minha esposa, a Metodista. Era a campanha do Agasalho, na feira do produtor do Jardim Botânico. Entre uma foto e outra fui tomar um café na banquinha de uma feirante. Ela conversava com a vizinha de banca sobre sua pressão alta e não pude deixar de sentir certa empatia. Quando me vi estava trocando receitas e falando de minhas desventuras cardíacas. Papo vai, papo vem, ela me conta o remédio que toma: Diovan com HCT. Falei que tomava o mesmo, mas que vivo me esquecendo. E que naquele sábado mais uma vez esquecera. Ela perguntou se eu queria uma drágea de seu remédio, já que estava ali na sua bolsa e era de mesma dosagem. Fiquei estupefato com este gesto de doação gratuito. Desconversei dizendo que minha esposa iria trazê-lo, ao que ela insistia, para que eu tomasse logo, “pressão alta não é coisa prá se brincar”.
Senti-me cuidado, tal qual as gramas esmeralda de meu jardim. E quando nos sentimos cuidado, nos sentimos amados.
Fiquei tão feliz com aquele gesto de doação generosa e desinteressada que recebera de quem nem conhecia, e que me fez sentir especial para aquela mulher.
Eu não estava com a camisa do grupo e seu gesto não era em retribuição à ajuda que os voluntários daquela ação social davam aos feirantes e clientes carregando suas mercadorias pesadas, sem pedir nada em troca. Só pelo prazer de servir. Vivi cenas lindas acompanhando este grupo. Pessoas estupefatas não entendiam como ninguém estava pedindo dinheiro, ou tentando convertê-las. E estavam apenas carregando suas feiras ou mercadorias de um lado para o outro. Servindo-lhes. Muitos foram em suas casas e trouxeram agasalhos para a campanha, só pelo prazer de participar. Solidariedade contagia.
Um testemunho que me marcou foi a de duas crianças que foram liberadas pelos seus pais para brincarem no pula-pula que a organização do evento providenciou, já que os voluntários ofereceram-se para descarregar a Kombi de seus pais, cheia de mantimentos, em troca da liberação das crianças para as brincadeiras.
Fiquei pensando o quanto a doação, a doação de tempo, do toque, da escuta, do cuidar podem fazer a diferença na vida da gente.
Quem doa algo a alguém, de forma gratuita, sem querer nada em troca, hoje é um subversivo.
Um aprendiz de revolucionário, numa sociedade cada vez mais salve-se quem puder.
Estas pessoas brindaram meu viver.
Elas desafiam a ordem reinante e ao narcisismo coletivo dos tempos atuais. São arautos de novos tempos.
Estava tão acostumado com a bestialização do viver que estas pessoas me deram um chega pra lá.
Fizeram-me soprar brasas de um Ricardo que já fui.

Existem perdidas por aí, tal qual as nações isoladas de indígenas, pessoas boas.
Pessoas do bem.
Gente que ainda pensa no coletivo, mesmo que seja um coletivo binário - de um eu, para um tu.
Mesmo que não façam grandes revoluções, que não transformem estruturas políticas geradoras, em última análise, de uma sociedade perversa, elas apontam caminhos. São sinais.
Pensei o quanto de tiriricas temos por aí. Que vão nos sufocando, matando o que temos de melhor. Que aparentemente em nosso ser se mostra bacana, viçoso, verdejante, mas que um jardineiro cuidadoso perceberá que não é, que estamos morrendo.
Tiriricas dos ódios de todos os matizes.
Tiriricas das injustiças de todas as formas.
Tiriricas das prisões, físicas ou emocionais.
Tiriricas afetivas, laborais, que nos sufocam nos roubam energia, nos limitam.
Ah como seria bom um Sr. Claudionor nas nossas vidas. Que com a sua machadinha afiada penetrava naquele gramado, e em certeiros golpes arrancava as invasoras.
Como seria bom, que vez por outra, umas pessoas desconhecidas cruzassem nossos caminhos... E num gesto de generosidade, de doação genuína, nos dessem algo. Um abraço, um bom dia, um aperto de mão. Uma ajuda fraterna para alguma carência que tenhamos naquele momento.
Como nossa “pressão existencial” ficaria melhor controlada com estes gestos-remédios.
Como seria bom se vez por outra alguém se oferecesse para carregar nossos fardos, descarregar nossa Kombi, liberando-nos para brincar, para descansar.
Os tempos andam tão mesquinhos, carentes de encontros fraternos que todos estes gestos de solidariedade descompromissada, de gratuidade de servir, soam distantes e raros.
Utópicos.
Mas vale reaprender a pedagogia da dádiva. Vale voltar a pensar o coletivo.
Vale tentar, só por hoje, um gesto de doação gratuita qualquer. Uma visita num hospital. Uma carona. Um tempinho para ouvir com interesse o drama pessoal de um amigo.
Vale tentar servir, só por hoje, um dia de cada vez.
Vale juntar-se às tribos isoladas do SER, e ter uma práxis libertadora, transformadora e semeadora de valores tão banais e esquecidos como: doação, gratidão, bondade, gentileza, mansidão e compaixão. Por isso gosto de militantes de qualquer estirpe, de qualquer causa, eles acreditam em novos ideiais e lutam por eles.
Despeço-me com uma txai pra você, a bela canção de mesmo nome do Milton Nascimento.

Txai
Milton Nascimento
Txai é fortaleza que não cai.
Mesmo se um dia a gente sai,
fica no peito essa dor.
Txai, este pedaço em meu ser.
Tua presença vai bater
e vamos ser um só.
Lá onde tudo é e apareceu
como a beleza que o sol te deu
é tarde longe também sou eu.
Txai, a tua seta viajou,
chamou o tempo e parou
dentro de todos nós.
Já vai ia levando o meu amor
para molhar teus olhos
e fazer tudo bem,
te desejar como o vento,
porque a tarde cai.
Txai é quando sou o teu igual,
dou o que tenho de melhor
e guardo teu sinal.
Lá onde a saudade vem contar
tantas lembranças numa só,
todas metadesm, todos inteiros,
todos se chamam txai.
Txai, tudo se chama nuvem,
tudo se chama rio,
tudo que vai nascer.
Txai, onde achei coragem
de ser metade todo teu,
outra metade eu
porque a tarde cai
e dona lua vai chegar
com sua noite longa,
ser para sempre txai.

Sacramentais


Somos sacramentais, emprestamos às coisas significados e estas deixam de ser simples coisas. Ficam impregnadas de subjetividades. O relógio que nosso pai usava, após ter falecido, virou um sacramental, evoca sua presença. Um cadernos com tarefas infantis, cuidadosamente guardado, deixa de ser papel, vira sentimento.

As fotos impressas, por mais amarelas, desfocadas, e desgastadas pelo tempo, são sacramentais sem comparação. Evocam as memórias e resgatam de sentimentos, são parte de nossa história.

Cada um de nós, ou membros de nossa família, tem um pequeno tesouro guardado em casa. Mais precioso do que joias, dólares ou outros bens materiais.

Aquela foto desgastada de nosso pai, de nossa mãe virou um bem insubstituível.

Se for roubada choraremos muito sua perda.

É um tesouro afetivo sem preço, o baú de fotografias que vamos tirando ao longo de nossa vida. Ali está nossa essência, nossos propósitos pelos quais valeu e vale a pena viver.



Hoje tomei coragem e abri meu baú. Vi-me pequeno nas férias no sertão da Paraíba, vi meu corpo ainda esbelto, quase magro, esta chocou-me, fez-me tomar consicência de quanto cresceu minha barriga. Vi fotos de torneio de natação - imaginem que já fui até campeão. Vi fotos dos filhos desdentados, risonhos, tão dóceis e amigos.

Foram momentos mágicos que resgatam a vontade de viver.
Brotou um sentimento de que havia tanto por ainda fazer. Tantas fotos a serem tiradas, momentos mágicos a serem vividos. Tanto beijos e abraços a serem dados.

Quantas oportunidades vivi que por timidez, ou por não ter uma máquina à mão, não conclamei o grupo para uma fotinha. Sabe aquele chato das festas que fica implorando, uma foto, uma foto. Pois é, deveria ter sido mais chato. Perdi tantas memórias e agora lembrar não fácil. Ou, os entes queridos já se foram.


Revirando o baú vi fotos de passeios, de confraternizações, de cursos, de encantamentos, uma chamou-me atenção, uma árvore sem folhas e com uns cachos de flores brancas. Por que estava ali, impressa.

Ainda tinha o hábito de imprimir fotos, copisa que deixei de fazer tem uns cinco anos. Perdi este hábito de imprimir as fotos, o que considero um erro.

Algumas delas, em papel, podem emoldurar nosso viver, eternizando-o. Lembrei-me então que me tinha chamado atenção o fato dela ter perdido todas as folhas, era outono, e que só restava em seu ápice, na pontinha dos galhos mais altos, uns brotos de flores brancas. Pronto, ali estava a razão daquela foto. Flores da paz.
Desafiando todo quadro caótico em que se encontrava, aquela árvore bradava com as forças que lhes restaram, após um outono rigoroso, P A Z! E, paz era tudo que não tinha há uns cinco anos atrás, eu estava numa peleja árdua uma luta danada pela sobrevivência em todos os aspectos.

Seriam aquelas flores as parteiras da primavera, testemunha dos brotos mais juvenis que dali a pouco estampariam vida.

Então vi que cada fotografia, desde aquelas mais amareladas, mais puídas com o tempo, em postais preto e branco, até as mais sofisticadas e lindamente emolduradas nos dão as âncoras de um novo viver, elas são nossos referenciais.




São projetivas. Não as tiramos à tôa. Elas falam. Por isso nunca vi foto impressa de ninguém posando ao lado de um caixão de defunto. É como se cada um de nós pudesse, numa galeria, fazer a exposição de nossa vida, selecionando os melhores momentos para serem expostos. Tive a felicidade de ver fotos destes momentos, de uns 300 colegas que demos posse na Diretoria. Impressiona como, mudando os personagens, os enredos são muito parecidos, coisas realmente que importam em nosso existir: nascimento de filhos, filhos pequenos, amores, confraternizações familiares, primeiro ninho comprado, casamentos, formaturas, equipe de trabalho e passeios. Acho que das 900 fotos que vi, se pudesse colocá-las nestas gavetas, sobrariam de fora muito poucas. Como somos parecidos na nossa jornada do existir!
Então, compreendi porque nas casinhas mais humildes sempre tinha um retrato da família num quadro na parede. Era como que para dizer temos um nome, somos alguém, olha o que já fomos, vejam nossos sorrisos, nossas roupas bonitas, nosso corpo embelezado e encantado para a alegria do encontro.
Como nem sempre temos uma máquina fotográfica por perto, que tal eternizar conscientemente os bons momentos que vamos vivendo? Guarde-os num lugar onde acidentes não possam acontecer e destruí-los, como aquela vez que formatei erroneamente o disco da máquina fotográfica e perdi tudo. Guarde seus belos momentos nas retinas de seu coração, fotografe-os com toda força e vigor com sua câmera interior. Ali, eles serão para ti sustento e fortaleza nas hora mais difíceis

Meu pé de ipê, ainda sem flor.


Andar em Brasília nestes dias é contemplar, em forma de ipês, o traço de nosso Arquiteto maior, na sua singular perfeição. Nos parques, canteiros, calçadas e jardins eles estão presentes, imponentemente vestidos de rosa, alegrando nossa jornada. Em alguns, fica até difícil ver os galhos e resto de folhas, tal a profusão de cachos de flores que recobrem toda a árvore. Cachos de flores que encantam e embevecem a todos que são brindados pela sua presença. Pessoas maravilhadas param os carros e registram o espetáculo.

Voltei para casa pensando no meu ipê, único sobrevivente de três que plantara em 2008, de cores diferentes: amarelo, branco e rosa. Percebi, com uma pontinha de decepção de que ainda não sei a cor do meu. Hoje pela manhã acordei cedo, e como sempre faço, abro a varanda para contemplar as montanhas. Sobre elas paira uma neblina, tal qual uma seda divina, “orvalhando” as plantinhas sequiosas do Cerrado. Volto o olhar para o pomar, onde na sua extremidade plantei um pé de Ipê, aquele descrito no início deste texto.
Ele crescerá muito, nestes cinco anos de vida. Agora está uma arvorezinha exuberante, formosa. Apuro o olhar nele, procurando esperançoso um cacho de flor em formação, “umazinha” sequer... E nada!
Lembro as risadas de meus pedreiros quando delimitei a área do pomar, e ainda sem paredes finalizadas, já aguava minhas mudinhas de frutas e flores. Eles não entendiam a razão de plantá-las ainda nas fundações da construção. Eu dizia, são minhas companheiras de travessia. Elas marcarão minha história neste lugar desde seu início.
Meu ipê sobrevivente, já que os outros dois morreram, nega-se a florescer. O meu ipê sem flor. Debaixo dele tem um balanço azul, no qual me sento nos finais de semana, com Balu – meu labrador transloucado, lambendo meus pés. Ali embaixo tomo um drink, escuto uma canção, e fico procurando uma flor de ipê. Digo com meus botões, ai meu Deus, mais um ano que ele não floresce.
Comparo-o a outros ipês de seu porte, o que não deveria fazer, e lanço sobre ele ofensas do tipo: “puxa vida, você já tão grande e ainda não botou uma florzinha qualquer, e os outros de sua espécie - até menores, já estão todos vestidos em flor.” Acho que ele não gosta do que ouve, e se defende do ataque em sua autoestima abrigando alegres sabiás-laranjeira em suas copas.
São impropérios bestas, em momentos de incompreensão humana.
Ah, meu ipê sem flor, como se parece com áreas de nossas vidas que também não floresceram ainda , que não apresentaram e revelaram todo seu potencial.

Áreas num estado de vir-a-ser.
Alguns de nós poderão sentir a falta das flores nos troncos amorosos de nosso ipê interior. Seja por ter tomado na cabeça na relação a dois, ter sido maltratado, seja por não conseguir ceder e flexibilizar – a arte do encontro a dois. Seja por opção, por decepção, frustração ou por pura falta de sorte.
Outros poderão sentir falta de flores rosa na relação com o trabalho. Arrastam-se ali como se carregassem fardos. As horas passam lentamente e o olhar perde-se em meio a carimbos, clientes e rotinas operacionais.
Outros poderão sentir falta de júbilo na sua realização como pais. Os filhos perderam-se ao longo da caminhada, buscaram outras referências, meteram-se de cabeça em encrencas.
Outros ainda têm falta de cores nas suas famílias, com divisões, contendas e mágoas que nem as celebrações familiares do tipo batizados, formaturas, aniversários ou até enterros, são capazes de restaurar a paz.
Flores às vezes se fazem ausentes na nossa saúde, em áreas de nosso corpo no seu bio-psico-espiritual, e sofremos com isso.
Ou até, estas bem comuns numa nação de remediados, nas finanças pessoais. Passa ano após ano, e não saímos do fundo do poço, do cheque especial, da rolagem das dívidas.
Meu ipê ensinou-me que todos nós temos uma ou outra área sem flor em nosso existir. E que eu não gostaria de ouvir da Vida, sobre estas áreas sem flor em meu viver, o que ele ouviu de mim, ao compará-lo com outros da mesma espécie.
É que em matéria de flores interiores cada um de nós tem sua própria carência, e nem por isso nos tornamos menos belos. Somos assim mesmos – incompletos por natureza. Sempre em falta com algo. Sempre à procura. Somos retirantes de nós mesmos, em busca de melhores e novos tempos.
Será que por ter uma área de nossa vida que não floresceu ainda nos tornamos menos ipê? Ou seja, tem áreas de nosso ipê interior que faltam flores? Lógico. Todos as teremos, mais cedo ou mais tarde. Pode ser até na área espiritual, na qual poderemos virar um monte de ossos secos, como predisse o profeta Ezequiel: “E eis que eram muito numerosos os ossos sobre a face do vale, e estavam sequíssimos" (Ez 37.2).
Será que certo grau de não florescer, em algum aspecto de nosso existir, um ou outro osso seco, não faz parte da própria existência humana? Não dá para vencer em todas. Ganhar todas. “Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendo a lição”. Talvez este seja o caminho.
Tem área sem flor que realmente a gente vai ter que sublimar, relevar, mudar a nós próprios perante o não esplendor da mesma. Se não podemos mudar uma situação, pense numa situação-limite, sob a qual não tem controle, ainda assim podemos mudar a nós mesmos, diante dela, do quanto permitimos que ela nos afete, nos mobilize e leve-nos para o vale de lágrimas.
Não é por que nosso ipê interior, sem flor em alguma área de sua vida, é diferente de outra pessoa florido na mesma área, que temos o direito de destruir nossa autoestima com comparações estéreis.
Pode ser por que ainda não chegou o tempo desta área florescer. Ou que só lhe falta uma oportunidade. O rio corre sozinho. Não apresse o rio. E, nesse correr, ele dá voltas, serpenteia, em alguns lugares parece fraquinho... Fraquinho, só um filetezinho, mais à frente transforma-se e encontra-se com o mar num turbilhão de águas, como as do rio São Francisco.
Nós também somos promessa, possibilidades, temos potencias adormecidos que poderão um dia nos surpreender, quais as flores de meu ipê um dia o farão. Áreas que ainda não revelaram todo seu vigor. Flores negadas que por terem sua árvore interior maltratada, ainda não puderam se expressar em toda sua completude, ao largo do infinito de possibilidades do acontecer.
Mas será que a falta não é justamente a própria existência humana, situações que agente ainda estão por se revelar. Quantas pessoas encontraram o sentido no trabalho na sua segunda, ou terceira tentativa. Quantas pessoas encontraram-se no amor já na viuvez. Outros que viram os filhos dando trabalho, que achavam que não teria solução, mais a frente foram reconhecidos no seu esforço de não os abandonarem. Pois eis que revelaram suas flores.
Pois é, o meu ipê sem flor vai florescer ainda. Eu acredito. Ele tem o seu tempo.
Mas, e se ele não florescer? Será menos o meu ipê? Vou passar o facão nele?
Não! Ele é meu ipê. Com flores ou sem flores. Ele faz parte de minha história. E, só pela possibilidade de um dia vir a se vestir de flores já me encanta.
Vou continuar cuidando dele. Ficando embaixo de sua copa. Mudarei a partir de hoje a frase que digo pra ele. Para: “Ei amigo, ambos somos sobreviventes e você, assim como eu, ano-a-ano lança suas raízes nesta terra distante e cresce em estrutura e apoio para os que te rodeiam”. Ambos podemos ser abrigo, apoio, harmonia para quem cruzar em nosso caminho.
Será que isto não é importante? Penso que sim. Não gosto desta cultura americana de querer ser um vencedor em tudo, o primeiro lugar em tudo, na qual o segundo lugar é tido como o primeiro dos derrotados. Onde o termo “loser” (fracassado) é quase um palavrão. Esta é uma cultura excessivamente competitiva que limita e empobrece relações.
Outro extremo que também não gosto, nesta área de perdas e ganhos das flores, são as profecias autorealizadoras para conosco mesmos. Do tipo: “Vou ser sempre infeliz no amor”. “Nunca vou me realizar no trabalho”. “Na vida serei sempre um sou um lascado mesmo”. Estas profecias autorealizadoras moldam nossas percepções e comportamentos, induzem cursos e raios de ação. São mantras incapacitantes, imanentes. Começam muitas das vezes com uma palavra-deusa, chamada Sorte, que absorve e irradia todo o nosso porvir. Esta Deusa é adorada em formulações mais ou menos assim: Eu não dou sorte no amor; com mudanças; nos empregos; na saúde, nas finanças; com os filhos.
De tanto falarmos estes mantras e profecias autorealizadoras, elas vão ficando impregnadas em nossa realidade. Alteramos tudo a nosso redor, distorcemos realidades, para que estas profecias não neguem seu valor e façam sentido. Procuramos justificar os desastres em nossa vida com estas crenças, e passamos a ouvir a vozinha interior que fica nos dizendo: eu não disse! Elas viram perigosas predições, que justificam e nos colocam na posição de vítimas.
Diferentemente destes extremos: o da busca incessante e ansiosa pelo sucesso em todas as áreas do viver; ao do fatalismo trágico que nos posiciona num cômodo estado de aceitação mórbida de tudo que nos acontece, temos o estado da conscientização e autonomia do ser, plenificado numa postura de transcendência.
Alternativamente ao fatalismo, ou ao vazio existencial provocado pela busca incessante de querer vencer em tudo temos a transcendência – lugar da autonomia de nosso ser interior. Esta posição da transcendência faz-nos olhar para além das flores que nos faltam. Neste estado temos clareza que somos frutos de nossas escolhas. E que sobre elas nem sempre temos o controle. Aliás, navegar é que é preciso, de precisão, lógica, cartesianas, coordenadas, de previsão, viver não é preciso.
Cuidado para não fixar demasiadamente o olhar em galhos sem flores de seu interior. Onde a gente fixa permanentemente o olhar, altera nossa percepção de outras áreas ao nosso redor. E pode até induzir um sentimento de que somos como um todo fracassados.
Convido-lhe a ver outras áreas floridas em seu viver. Eu sei, eu sei, às vezes dói não ter conseguido resultados em algum espaço vital. Dói. Pense numa mãe que olha para um filho drogado, ou por ter sido preso por ter feito algum crime. Dói. Mas, esta mãe continua acreditando no potencial de seu filho, no seu futuro, no seu desabrochar. Esperando contra toda desesperança. Teimando em acreditar em dias melhores para ele. Ajoelhando todos os dias e suplicando por ele ao Criador. Que se emociona ao pensar nele quando canta a música Valsinha, “um dia ele chegou tão diferente do seu modo de sempre chegar.” Será que só fato de tê-lo, na perspectiva de uma luta, do amor exigente, que não permite tudo, que cuida, que acolhe, não será por si só flor noutra área destra mãe esperançosa? Não seja uma razão para viver, nem que seja a luta pelo resgate e restauração do seu filho.
Então, existirão sempre áreas de nosso acontecer no mundo que estarão sem flor. São áreas de fracasso, de derrota. Mas, isso não nos tornará uns derrotados. Não faz nos fará perdedores do jogo da vida. Lembro-me de pessoas que conheci que estavam completamente destruídas, em alguma área de seu viver, e que renasceram noutras áreas como, por exemplo, a ajuda ao próximo, reencontrando o prumo e sentido da vida. Mesmo sem preencherem-se na área faltante, a ajuda solidária produz satisfação suficiente para compensar outras perdas.
Sabe o que acontece com estas sábias pessoas? Param para olhar o que faz falta. Olham para o que resta, para além das flores ausentes. Testemunham com seu viver que o que lhes constitui não são as flores, e sim os caules, raízes e folhas, estes bem mais perenes, como os valores que possuem.
Aprendi com meu pé de ipê sem flor que são os valores quem fará a diferença em nosso existir, em nosso vir-a-ser. Eles são a estrutura. O tronco, ramos e folhas do ser. Valores como a bondade, gentileza, justiça, solidariedade, amor, paz, retidão.
Mesmo a gente não alcançando tudo que queríamos ser, são estes valores que dão suporte ao nosso viver. São eles que nos tornam vida para os outros. Abrigo, fortaleza, sombra, aconchego, refrigério para almas cansadas. Então, tiremos o foco dos galhos sem flor de nosso ipê interior. Não digo que devamos negar nossas dores. Ou justifica-las como fazia Poliana.
Só digo que precisamos nos acalmar, transcender.
Aponte-me uma pessoa que não tenha um galho sem flor, em alguma área de sua vida!
No amor você não é o primeiro infeliz. Com filhos não é o primeiro em dificuldades. No emprego, não é o primeiro de que não gosta.
Mas a vida não é feita somente disso. A vida não é feita só das flores que não acontecem.
Ela é feita justamente da busca pelas flores. Do cuidado com as estruturas que darão suporte às possibilidades de um dia vir a florescer – as atitudes.
A vida é feita do caminho para a flor. E é no caminho para as flores que passamos a admirar a beleza de folhas, troncos, caules, raízes – nossos valores.
Os valores são mais importantes do que as vitórias.
Despeço-me com o belo poema de Henfil que retrata esta saga por achar o sentido, um sentido qualquer que nos dê uma razão a mais para viver!
“Se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; se não houver folhas, valeu a intenção da semente.”

Voltei para casa pensando no meu ipê, único sobrevivente de três que plantara em 2008, de cores diferentes: amarelo, branco e rosa. Percebi, com uma pontinha de decepção de que ainda não sei a cor do meu. Hoje pela manhã acordei cedo, e como sempre faço, abro a varanda para contemplar as montanhas. Sobre elas paira uma neblina, tal qual uma seda divina, “orvalhando” as plantinhas sequiosas do Cerrado. Volto o olhar para o pomar, onde na sua extremidade plantei um pé de Ipê, aquele descrito no início deste texto.Ele crescerá muito, nestes cinco anos de vida. Agora está uma arvorezinha exuberante, formosa. Apuro o olhar nele, procurando esperançoso um cacho de flor em formação, “umazinha” sequer... E nada!Lembro as risadas de meus pedreiros quando delimitei a área do pomar, e ainda sem paredes finalizadas, já aguava minhas mudinhas de frutas e flores. Eles não entendiam a razão de plantá-las ainda nas fundações da construção. Eu dizia, são minhas companheiras de travessia. Elas marcarão minha história neste lugar desde seu início.Meu ipê sobrevivente, já que os outros dois morreram, nega-se a florescer. O meu ipê sem flor. Debaixo dele tem um balanço azul, no qual me sento nos finais de semana, com Balu – meu labrador transloucado, lambendo meus pés. Ali embaixo tomo um drink, escuto uma canção, e fico procurando uma flor de ipê. Digo com meus botões, ai meu Deus, mais um ano que ele não floresce.Comparo-o a outros ipês de seu porte, o que não deveria fazer, e lanço sobre ele ofensas do tipo: “puxa vida, você já tão grande e ainda não botou uma florzinha qualquer, e os outros de sua espécie - até menores, já estão todos vestidos em flor.” Acho que ele não gosta do que ouve, e se defende do ataque em sua autoestima abrigando alegres sabiás-laranjeira em suas copas.São impropérios bestas, em momentos de incompreensão humana.Ah, meu ipê sem flor, como se parece com áreas de nossas vidas que também não floresceram ainda , que não apresentaram e revelaram todo seu potencial.
Áreas num estado de vir-a-ser. Alguns de nós poderão sentir a falta das flores nos troncos amorosos de nosso ipê interior. Seja por ter tomado na cabeça na relação a dois, ter sido maltratado, seja por não conseguir ceder e flexibilizar – a arte do encontro a dois. Seja por opção, por decepção, frustração ou por pura falta de sorte. Outros poderão sentir falta de flores rosa na relação com o trabalho. Arrastam-se ali como se carregassem fardos. As horas passam lentamente e o olhar perde-se em meio a carimbos, clientes e rotinas operacionais.Outros poderão sentir falta de júbilo na sua realização como pais. Os filhos perderam-se ao longo da caminhada, buscaram outras referências, meteram-se de cabeça em encrencas.Outros ainda têm falta de cores nas suas famílias, com divisões, contendas e mágoas que nem as celebrações familiares do tipo batizados, formaturas, aniversários ou até enterros, são capazes de restaurar a paz.Flores às vezes se fazem ausentes na nossa saúde, em áreas de nosso corpo no seu bio-psico-espiritual, e sofremos com isso.Ou até, estas bem comuns numa nação de remediados, nas finanças pessoais. Passa ano após ano, e não saímos do fundo do poço, do cheque especial, da rolagem das dívidas. Meu ipê ensinou-me que todos nós temos uma ou outra área sem flor em nosso existir. E que eu não gostaria de ouvir da Vida, sobre estas áreas sem flor em meu viver, o que ele ouviu de mim, ao compará-lo com outros da mesma espécie. É que em matéria de flores interiores cada um de nós tem sua própria carência, e nem por isso nos tornamos menos belos. Somos assim mesmos – incompletos por natureza. Sempre em falta com algo. Sempre à procura. Somos retirantes de nós mesmos, em busca de melhores e novos tempos.Será que por ter uma área de nossa vida que não floresceu ainda nos tornamos menos ipê? Ou seja, tem áreas de nosso ipê interior que faltam flores? Lógico. Todos as teremos, mais cedo ou mais tarde. Pode ser até na área espiritual, na qual poderemos virar um monte de ossos secos, como predisse o profeta Ezequiel: “E eis que eram muito numerosos os ossos sobre a face do vale, e estavam sequíssimos" (Ez 37.2). Será que certo grau de não florescer, em algum aspecto de nosso existir, um ou outro osso seco, não faz parte da própria existência humana? Não dá para vencer em todas. Ganhar todas. “Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendo a lição”. Talvez este seja o caminho.Tem área sem flor que realmente a gente vai ter que sublimar, relevar, mudar a nós próprios perante o não esplendor da mesma. Se não podemos mudar uma situação, pense numa situação-limite, sob a qual não tem controle, ainda assim podemos mudar a nós mesmos, diante dela, do quanto permitimos que ela nos afete, nos mobilize e leve-nos para o vale de lágrimas. Não é por que nosso ipê interior, sem flor em alguma área de sua vida, é diferente de outra pessoa florido na mesma área, que temos o direito de destruir nossa autoestima com comparações estéreis. Pode ser por que ainda não chegou o tempo desta área florescer. Ou que só lhe falta uma oportunidade. O rio corre sozinho. Não apresse o rio. E, nesse correr, ele dá voltas, serpenteia, em alguns lugares parece fraquinho... Fraquinho, só um filetezinho, mais à frente transforma-se e encontra-se com o mar num turbilhão de águas, como as do rio São Francisco.Nós também somos promessa, possibilidades, temos potencias adormecidos que poderão um dia nos surpreender, quais as flores de meu ipê um dia o farão. Áreas que ainda não revelaram todo seu vigor. Flores negadas que por terem sua árvore interior maltratada, ainda não puderam se expressar em toda sua completude, ao largo do infinito de possibilidades do acontecer. Mas será que a falta não é justamente a própria existência humana, situações que agente ainda estão por se revelar. Quantas pessoas encontraram o sentido no trabalho na sua segunda, ou terceira tentativa. Quantas pessoas encontraram-se no amor já na viuvez. Outros que viram os filhos dando trabalho, que achavam que não teria solução, mais a frente foram reconhecidos no seu esforço de não os abandonarem. Pois eis que revelaram suas flores.Pois é, o meu ipê sem flor vai florescer ainda. Eu acredito. Ele tem o seu tempo. Mas, e se ele não florescer? Será menos o meu ipê? Vou passar o facão nele?Não! Ele é meu ipê. Com flores ou sem flores. Ele faz parte de minha história. E, só pela possibilidade de um dia vir a se vestir de flores já me encanta.Vou continuar cuidando dele. Ficando embaixo de sua copa. Mudarei a partir de hoje a frase que digo pra ele. Para: “Ei amigo, ambos somos sobreviventes e você, assim como eu, ano-a-ano lança suas raízes nesta terra distante e cresce em estrutura e apoio para os que te rodeiam”. Ambos podemos ser abrigo, apoio, harmonia para quem cruzar em nosso caminho. Será que isto não é importante? Penso que sim. Não gosto desta cultura americana de querer ser um vencedor em tudo, o primeiro lugar em tudo, na qual o segundo lugar é tido como o primeiro dos derrotados. Onde o termo “loser” (fracassado) é quase um palavrão. Esta é uma cultura excessivamente competitiva que limita e empobrece relações.Outro extremo que também não gosto, nesta área de perdas e ganhos das flores, são as profecias autorealizadoras para conosco mesmos. Do tipo: “Vou ser sempre infeliz no amor”. “Nunca vou me realizar no trabalho”. “Na vida serei sempre um sou um lascado mesmo”. Estas profecias autorealizadoras moldam nossas percepções e comportamentos, induzem cursos e raios de ação. São mantras incapacitantes, imanentes. Começam muitas das vezes com uma palavra-deusa, chamada Sorte, que absorve e irradia todo o nosso porvir. Esta Deusa é adorada em formulações mais ou menos assim: Eu não dou sorte no amor; com mudanças; nos empregos; na saúde, nas finanças; com os filhos.De tanto falarmos estes mantras e profecias autorealizadoras, elas vão ficando impregnadas em nossa realidade. Alteramos tudo a nosso redor, distorcemos realidades, para que estas profecias não neguem seu valor e façam sentido. Procuramos justificar os desastres em nossa vida com estas crenças, e passamos a ouvir a vozinha interior que fica nos dizendo: eu não disse! Elas viram perigosas predições, que justificam e nos colocam na posição de vítimas.Diferentemente destes extremos: o da busca incessante e ansiosa pelo sucesso em todas as áreas do viver; ao do fatalismo trágico que nos posiciona num cômodo estado de aceitação mórbida de tudo que nos acontece, temos o estado da conscientização e autonomia do ser, plenificado numa postura de transcendência.Alternativamente ao fatalismo, ou ao vazio existencial provocado pela busca incessante de querer vencer em tudo temos a transcendência – lugar da autonomia de nosso ser interior. Esta posição da transcendência faz-nos olhar para além das flores que nos faltam. Neste estado temos clareza que somos frutos de nossas escolhas. E que sobre elas nem sempre temos o controle. Aliás, navegar é que é preciso, de precisão, lógica, cartesianas, coordenadas, de previsão, viver não é preciso.Cuidado para não fixar demasiadamente o olhar em galhos sem flores de seu interior. Onde a gente fixa permanentemente o olhar, altera nossa percepção de outras áreas ao nosso redor. E pode até induzir um sentimento de que somos como um todo fracassados. Convido-lhe a ver outras áreas floridas em seu viver. Eu sei, eu sei, às vezes dói não ter conseguido resultados em algum espaço vital. Dói. Pense numa mãe que olha para um filho drogado, ou por ter sido preso por ter feito algum crime. Dói. Mas, esta mãe continua acreditando no potencial de seu filho, no seu futuro, no seu desabrochar. Esperando contra toda desesperança. Teimando em acreditar em dias melhores para ele. Ajoelhando todos os dias e suplicando por ele ao Criador. Que se emociona ao pensar nele quando canta a música Valsinha, “um dia ele chegou tão diferente do seu modo de sempre chegar.” Será que só fato de tê-lo, na perspectiva de uma luta, do amor exigente, que não permite tudo, que cuida, que acolhe, não será por si só flor noutra área destra mãe esperançosa? Não seja uma razão para viver, nem que seja a luta pelo resgate e restauração do seu filho. Então, existirão sempre áreas de nosso acontecer no mundo que estarão sem flor. São áreas de fracasso, de derrota. Mas, isso não nos tornará uns derrotados. Não faz nos fará perdedores do jogo da vida. Lembro-me de pessoas que conheci que estavam completamente destruídas, em alguma área de seu viver, e que renasceram noutras áreas como, por exemplo, a ajuda ao próximo, reencontrando o prumo e sentido da vida. Mesmo sem preencherem-se na área faltante, a ajuda solidária produz satisfação suficiente para compensar outras perdas. Sabe o que acontece com estas sábias pessoas? Param para olhar o que faz falta. Olham para o que resta, para além das flores ausentes. Testemunham com seu viver que o que lhes constitui não são as flores, e sim os caules, raízes e folhas, estes bem mais perenes, como os valores que possuem. Aprendi com meu pé de ipê sem flor que são os valores quem fará a diferença em nosso existir, em nosso vir-a-ser. Eles são a estrutura. O tronco, ramos e folhas do ser. Valores como a bondade, gentileza, justiça, solidariedade, amor, paz, retidão. Mesmo a gente não alcançando tudo que queríamos ser, são estes valores que dão suporte ao nosso viver. São eles que nos tornam vida para os outros. Abrigo, fortaleza, sombra, aconchego, refrigério para almas cansadas. Então, tiremos o foco dos galhos sem flor de nosso ipê interior. Não digo que devamos negar nossas dores. Ou justifica-las como fazia Poliana.Só digo que precisamos nos acalmar, transcender. Aponte-me uma pessoa que não tenha um galho sem flor, em alguma área de sua vida!No amor você não é o primeiro infeliz. Com filhos não é o primeiro em dificuldades. No emprego, não é o primeiro de que não gosta. Mas a vida não é feita somente disso. A vida não é feita só das flores que não acontecem. Ela é feita justamente da busca pelas flores. Do cuidado com as estruturas que darão suporte às possibilidades de um dia vir a florescer – as atitudes.A vida é feita do caminho para a flor. E é no caminho para as flores que passamos a admirar a beleza de folhas, troncos, caules, raízes – nossos valores.Os valores são mais importantes do que as vitórias. Despeço-me com o belo poema de Henfil que retrata esta saga por achar o sentido, um sentido qualquer que nos dê uma razão a mais para viver!“Se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; se não houver folhas, valeu a intenção da semente.”

Esta crônica é de 11/06/2012, hoje, em 02.09.2012, registrei as primeiras e tímidas flores róseas de meu ipê, agora com fores. Procure na foto que achará.

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