Cuide de sua bateria emocional.


Ontem, finalmente resolvi uma pendência antiga: consertar a tela quebrada de meu celular.
Dirigi-me à Feira dos Importados e aproveitei o intervalo do almoço para arrumá-lo.
Numa simpatia loja a atendente me recebeu, testou a lente do celular fazendo umas fotos e abriu uma ordem de serviço.
Aproveitei que precisava aguardar 60min e fui almoçar no local, enquanto a tela “secava”.
Depois, voltei ao trabalho feliz. Afinal, era menos uma pendência pessoal. Ando sem tempo para mim, e elas aumentam exponencialmente.
Ao descer do carro, já no trabalho, o celular escapole e cai no chão. Pensei: “ Meu Deus, tudo outra vez!”.
Mas dei sorte, ele caiu de bunda pra cima e só tive que recolher a bateria e reconecta-la, a tela estava intacta. Ufa!
Notei um pequeno amasso na extremidade da bateria, nada demais. Liguei o celular e ele estava bacana. Ufa!
À tarde reunimos o grupo para celebrar o lançamento de um projeto e pedi que nos documentassem em foto. Percebi que o resultado da foto era como se estivesse envelhecida, com umas linhas paralelas.
Relevei, devia ter sido a Erica que alterou alguma configuração do celular quando foi tirar a foto do grupo.
Hoje pela manhã fiz outra foto de um céu tipo Brasília, e lá estavam novamente as linhas paralelas.
Ops, algo estranho acontecia.
Limpei a lente e fiz nova foto, sem querer acreditar no que ia, estavam ali novamente as linhas paralelas.
Fui então reclamar do serviço de ontem, lá na loja de assistência técnica que tinha ido ontem.
No primeiro atendimento, a mocinha fez uma foto do saguão e constatou as listas.
Logo ligou para o técnico que ainda não chegara. Ele disse-lhe que estava estacionando.
E eu pegando pressão, tal qual panela de feijão.
Uma confusão de pensamentos em meu interior, enquanto esperava o técnico chegar: “Vou perder mais um tempão sem celular e se o chefe ligar? E se a loja não aceitar que errou? Acho que vou confiscar algum objeto. Acho que vou ao Procon. Acho que vou fazer um BO...”
Pensamentos confusos faiscantes assaltaram-me, mas cessaram ao ver o atrasado técnico chegando para o trabalho.
Respirei fundo e mostrei-lhe o celular. Sua primeira pergunta foi se a câmera estava boa, anteriormente. Contei até 10, e mostrei-lhe a foto que a atendente fez antes de abrir a ordem de serviço e de como estava sem as “listas”.
Depois mostrei a foto recém tirada, ali mesmo enquanto o aguardava e lá estavam as listas.
Ele ficou sem jeito. Alegou que a troca do visor frontal não mexe na função câmera, mas que ele irai abrir outra ordem de serviço, para averiguar melhor o que ocorria.
Nessa hora a máquina deu aquele apito de quando tá faltando bateria.
Eu sempre ando com duas baterias, peguei na carteira a outra que estava cheia e recarreguei.
Ele então repetiu o procedimento de ontem, registrando uma foto após preencher a OS.
Até brinquei com ele, “pra que registrar, se está ruim mesmo?.”
Ele fez uma foto minha e ficou boa.
Sem jeito, tirei outa foto do mesmo local que a menos de uma hora a atendente tinha tirado.
Perfeita.
Pedi desculpas, disse-lhe que não entendera o ocorrido e voltei ao trabalho.
Lá tive uma inspiração. E se fosse a outra bateria. Como a tirei antes que perdesse toda a carga, a coloquei novamente no aparelho e fiz umas fotos: lá estavam as listas. Depois botei a bateria cheia, e nada de listas.
Olhando atentamente a bateria quase sem carga percebi que o amassado era na extremidade superior. Será que aquele amassado tinha alterado a amperagem da bateria reduzindo sua capacidade para uma foto perfeita?
Não sei. Sei que ela não está gerando toda a carga necessária à câmera ou filmadora, distorcendo as fotos. Com a outra estava tudo ok.
Na foto dessa crônica, você verá a foto com listas, a sem listas e a bateria amassada.
O que aprendi que compartilho.
A bateria de nossas emoções altera a percepção das coisas que nos rodeiam, de nós mesmos e dos outros.
Se nossa bateria emocional estiver avariada, ao ter sofrido pequenos amassados, pode ser que nossa energia interior não esteja boa suficiente para revelar toda a vida que se emoldura ao nosso redor.
Esta é a boa notícia: Caso esteja vendo a vida em preto e branco tenha calma consigo mesmo, o problema não são as lentes interiores, é a sua energia vital que está baixa. Alguns a chamam de autoestima. Mas pode ser amor próprio. Pode ser aceitação de si mesmo. Pode ser mágoa encardida. Esperança negada. Otimismo ralo. Perdão adiado. Ou até anemia de amor.
A outra boa notícia, aliada à primeira de que não são suas lentes (ou o sensor LCD) que estão defeituosas (lentes são caríssimas – seguindo a metáfora), é que a fonte avariada de energia vem de seu coração, e, pode levar tempo, mas se recupera.
Ou seja, diferentemente de minha bateria de celular avariada, que para ela não tem mais jeito de recuperar toda a sua capacidade de geração de energia.
Os amassados nos seres humanos não tiram nossa carga emocional por toda a vida.
Tiram por períodos de tempo. Dias, semanas, meses. Mas não por toda a vida.
Nos recuperamos.
Aliás, existem ótimos restauradores de nossa energia emocional.
A espiritualidade, o lazer, os amigos, uma boa leitura, sessão de cinema, caminhada, yoga, dançar, viajar, receber amigos, namorar, envolver-se com uma causa ou ajudar ao próximo.
Contudo, é preciso entender por onde está se esvaindo nossa energia e trabalhar ali, por onde fluem os “elétrons emocionais”.
Chamo a esse processo de autoconhecimento elétrico.
Tem coisas que roubam nossa corrente. Secam nosso vigor. Tornam tudo ao lado borrado, sem cores vivas - como as fotos que retirei com a bateria estragada.
Aliás, seria a última coisa de que suspeitaria. Foi puro acaso de eu ter uma outra bateria e na hora do problema.
Caso contrário, talvez nunca encontrasse o defeito.
O que rouba nossa energia?
Trata-se de uma pergunta para qual as respostas, e o que faremos com elas, serão a diferença entre uma foto boa de nosso viver e uma borrada, sempre a esperar da vida uma resposta.
Pensemos nisto nesta noite.
Não deixemos que nossos amassados tirem o brilho de nosso viver, incapacitando ela, a vida, de se nos apresentar em todo seu fulgor.
Cuidemos de restaurar o quanto antes nossa essência, não nos permitindo murchar mais do que o tempo necessário ao florescer.
Em tempos de dias das mães, lembrei que elas muitas das vezes são como a bateria auxiliar que coloquei em meu aparelho. Quantas das vezes, quando perdemos todas as forças, são elas, as mães, quem carregará nosso interior com a sua própria energia vital.
Afinal, mães estão sempre com um carga de energia adicional - prontas a conectarem-se nos corações abatidos de seus filhos e emprestarem suas forças, mesmo que lhes falte.

Paredes de Vidros Etéreas


Acordamos cedo para conhecer o Instituto Inhotim, que fica a 60 km de Beagá.
No caminho um trânsito pesado, passado por Betim, Contagem sempre seguindo no sentido SP. Quando eu já estava a ponto de desistir, achando-me perdido, vi um painel indicando que eu estava na rota correta. Agora seriam mais 20 km até Brumadinho, cidade na qual o maior centro de arte ao ar livre da América Latina situa-se. Recomendo demais.
Além de ser um jardim botânico da mata atlântica, belíssimo. Aliás, com árvores de tirar o fôlego.
Visitando uma de suas 14 instalações, que perfazem mais de 150 obras de arte, conheci a sala do espelho vazio.
Muito passam por ela apressados, não conseguem ver.
Ela situa-se na saída, de um das 14 estruturas de exposição.
Parei e a contemplei. Não sem antes pagar o mico, ao som de risos discretos das guias. Tateei a parede com cuidado, achando que era um vidro, ou até um espelho que dividia a parede.
Não era. Era o vazio. Minha mão penetrou naquele mundo, tomei coragem e entrei também.
O artista construiu a sala com variações de cores nas paredes, e um jogo de iluminação. Assim, ao adentrar no recinto, tem-se a falsa impressão de que o além é um espelho, ou um vidro translúcido, daqueles que danamos a cabeça nele ao passar desavisados, tipo vidros de varandas.
Fiquei processando aquela vivência tão forte até hoje, e, como ela tirou meu sono, tenho que escrever sobre.
Quanto do que você acha que ver é verdade? Quanto é ilusão? Quanto é distorção? Real ou imaginária...
Quantas prisões de vidros estão ali à sua frente, sendo fruto de sua percepção, não existindo de fato.
Contudo, só desfazendo-se quando você perde o medo e com uma súbita coragem a toca, com o toque da realidade, adentrando nela de corpo e alma.
Aí, como que numa mágica o novo se faz, e o que antes era distância, isolamento, torna-se ponte, encontro, caminhos.
Quanto do que incomoda você, incomoda por não se permitir a vê-lo com um outro olhar?
Ao só ver dentro de sua própria prumada de observação, de seu fechado e irrepreensível visão do mundo, do outro e de si mesmo.
A arte da convivência, passa pela a arte da "empatiência", que seria uma fusão de empatia com paciência.
Basta que o outro seja diferente aos nossos padrões que já o isolamos num porão de nossas emoções.
Quanto do que você acha que ver é verdade? Quanto é ilusão? Quanto é distorção? Real ou imaginária...
Quantas divisórias são de vidro falso, produzidas por jogos de luzes e cores, que te afastam de ti mesmo, do outro e da realidade?
Aprendi com Inhontim, naquele quarto da divisória de vidro vazia, exposição, de que se coloca o pensamento cria-se forma.
Qual a natureza da minha luz? Qual as cores com as quais olho a vida?
Que tipo de distorções emocionais, comportamentais, podem está provocando?
Será que não estou amedrontado demais, pequeno demais, rastejante demais, para uma realidade, muito dela, construída em meu ser, falsa e estranha, fruto do cansaço, medo e aflição.
Tal qual aquela minha reação de receio ao dirigir-me quarto adentro, com medo de levar uma cabeçada no vidro, que não estava ali.
Cuidado com as formas que seu pensamento enclausura em si mesmo.
Formas que aprisionam, ou libertam.
Que aproximam, ou afastam.
Que unem, ou dividem.
Que criam pontes, ou abismos.
Onde botamos as luzes, as cores de nosso viver, aquilo crescerá.
Bote luz e cor no bom, belo e virtuoso que a vida abrirá caminhos, caminhos mais sábios e serenos.
Até da aceitação, ou melhor convivência flexível, com aquilo que lhe estranha, ou não pode mudar por decreto.

P.S Inhotim é surpreendente. Já estive lá uma dezena de vezes e sempre descubro novos ângulos e novos olhares. Esta instalação (sala do espelho vazio), do artista Marcius Galan, que simula vidro inexistente e cria ilusão de ótica ao usar elementos básicos como cor e luz, é impactante. A mim, possibilitou-me reflexão sobre a relatividade da verdade.   Nota da Maizé. Amiga de BH.

Rompendo a manhã.


Uma manhã de tráfego irritado e pensante.
Preocupante avanço lento, sobre hora de reunião iminente.
Um alerta: preste atenção no bom, belo e virtuoso... Então, desfoque-se do eu ansioso.
Miro para os lados, procurando um lugar para deitar meus pensamentos.
Vejo um campinho de futebol, improvisado na relva verde e viçosa.
Uma algazarra benfazeja.
Turma animada trazendo vida a dura lida.
Macacões cor de laranja correndo livres, de todos nossos fedores e detritos.
E o suor? E se sujar a roupa? Que seja desse bendito suor, primícias de alegria, que neles sejam marcadas, as tecituras dessa pele de quase-lona.
De quem foi a ideia daquela bola?
Quem juntou tantas vidas-severinas em momento de tão boniteza belezura?
E amanhã, haverá o racha matinal, antes do soar do ponto?
Rasgo de felicidade numa manhã de tráfego lento e pensante.
Deito meus pensamentos na relva macia, escuto a bola correndo por cima de minha alma, escuto os sons, os gritos, os abraços: é gol!
Gol de letra sobre destinos vadios.
Desço da arquibancada da vida e renasço.

Galhos Secos


Hoje passei pela avenida L4 Norte (Brasília-DF), ali próximo à Universidade dos Correios, e entristeci meu coração, não me contendo em lágrimas interiores. Aquelas piores de verter, as que marejam nossa alma.
Acontece que há uns cinco anos admirava uma árvore majestosa, que sozinha desafiava a dimensão espaço x tempo, ao perfilar sua beleza no Cerrado.
Trata-se da árvore da foto.
Arrodeada por gramas verdejantes, ela ali reinava só em forma de galhos secos.
Até imaginava gnomos, duendes e fadas habitando em seus retorcidos galhos, caule e raízes.
Imaginava quantos pássaros cansados faziam ninhos em seus vigorosos galhos.
Por anos a contemplei como morta, visto que dela não brotava nenhuma folha, flor ou fruto, em nenhuma estação do ano.
Pensava comigo: teria sido o fogo quem a matara: Ou um raio? Houvera sido o próprio tempo? Ou alguma doença, pragas ou veneno que a atacara?
Com o tempo, contudo, fui percebendo que ela não morrera. Estava viva. Só não tinha folhas, flores, frutos. Ela era viva para um monte de microrganismos que nela faziam morada.
Sua presença desafiava a imensidão do espaço vazio, e, com ele, harmonizava-se numa dança esplendorosamente bela.
Bela árvore seca.
Quanta história teria vivido, desde a construção de Brasília.
De quantos arados escapara? De quantas correntes de tratores perversos? De quantos paisagistas modernosos escapara do corte?
Tempos atrás notei que plantaram uma tenra muda aos seus pés.
Fiquei feliz. Agora ela teria companhia.
Uma apoiaria a outra.
Imagino que a pequena árvore em dias de ventania teria em quem se segurar. E que o verde daquelas folhinhas, em crescimento, iria renovar a própria existência da árvore seca.
Mas, eis que hoje “entristeci meu coração, não me contendo em lágrimas interiores. Aquelas piores de verter, as que marejam nossa alma”.
Cortaram nossa árvore. Naquele imenso descampado ela não fazia mal
a ninguém. Não iria cair em cima de caso algum, não atrapalhava o trânsito, não estragava as novas mudas.
Ela estava ali quietinha, sem fazer nada que justificasse sua derrubada.
Por que alguém se sentiu atingido por ela, a ponto de praticar ato tão severo?
O que aqueles galhos secos e retorcidos causavam de incômodo?
Quem não viu a beleza contida em suas expressões de apelo ao infinito?
Nessa ânsia de modernizar espaços, de pavimentar tudo, de procurar uma beleza esteticamente vendável vai pulverizando histórias, culturas e nossas cercanias sociais.
Há beleza numa árvore seca.
Há beleza nos idosos, mesmo que após terem dado frutos foram esquecidos num canto de coração qualquer.
Há beleza nos pobres, feios, desengonçados, humildes de coração, simples de atitudes, nas pessoas que estão “por fora” dos ditames da moda, ou da aparência socialmente vendável, veiculada na última novela das 9.
Há dignidade em seres disformes, marginais, tidos como escória humana. Não contemplados nas decisões de governo, esquecidos de tudo, quando não se está em campanha.
Quantas árvores secas frondosas e belas, em forma de pessoas, existem em teu ecossistema social?
Pessoas esquecidas, invisíveis, que só precisam de um outro olhar sob suas vidas.
Pessoas que vão ficando órfãs do destino, que não mais recebem cuidados, atenção, respeito, ou doses mínimas de afeto.
E que são vistas como descartáveis, sendo vítimas das nossas foices emocionais de cada dia.
Quantas vezes subi as calçadas para contemplar aquela minha árvore, para melhor fotografá-la?
Vai amiga árvore, e obrigado pela dolorosa lição que me dá.
Que eu nunca tire de minha vida quem um dia esteve verde, com flores e frutos, só porque não apresenta mais esse tipo de serventia para mim.
Só porque envelheceu.
Amém!

Cresça!



Existem árvores chamadas de Sequoias que são gigantes. A de nome General Sherman, tem quase 100 metros de altura e 2.000 anos de idade. E vive na Califórnia. Outro dia, vi um documentário na Discovery sobre escaladores de topo de sequoias. Algumas delas, no seu alto, são ocas e dá até para fazer rapel descendo buraco adentro, copa abaixo. Outras, são ocas na base. Penso que algumas pessoas, sequoias que me perdoem a metáfora, crescem, crescem, crescem... somente em anos vividos. Por dentro, cada vez mais ocos. Esse é o desafio de amadurecer. Não ficar podre, ou oco. Só vivendo na fachada e pobre de valores. Por fora, grande Homem, por dentro vazio de sentido. Incapaz de amar, doar algo de si mesmo ao outro. Incapaz de pronunciar a frase mágica: eu te agradeço. De perdoar, de renovar-se dia a dia. Existem até algumas sequoias que todos os domingos erguem as mãos aos altares de Deus, de todas as denominações. Mas, são incapazes de preencherem a si próprias com coisas boas, belas e virtuosas e tornarem esse mundo melhor do que encontraram. Verdadeiros santos do pau oco. Esse é meu desafio, pós 50. Preencher meu interior oco com tudo que seja bom, belo e virtuoso. Com coisas para as quais realmente valha a pena por elas viver. Deixar de ser como "sepulcros caiados". Deixar fardos que carregava, à margem da estrada, e renovar as utopias, práticas e esperanças de ser bom para o mundo, e não o bom do mundo. Quantos cômodos cheios de bens, esperando um coração solidário que os doem. Foi só um exemplo, querida sequoia Sherman. Os piores, são os cômodos do coração cheios de eu, mim, mim mesmo e comigo. Esperando infeliz que um dia, mas sem nada fazer para isto, encontre-se e dê sentido à sua jornada com o Tu, Nós ou Eles. Mágicos e místicos encontros; cada vez mais raros, na oca sociedade em que vivemos.

A Gestão do Intangível


Um dos textos mais emblemáticos da Bíblia está no antigo testamento, no livro de Samuel, Cap. 8. Para entenderem o contexto, aquele povo organizava-se em tribos nômades, com uma estrutura sócio-política-econômica e cultural de matriz coletivista. Ali, dividia-se tudo: celebrações, preocupações sociais, investimentos, bens, criações e colheitas: de modo que nenhum deles tivesse que passar por necessidades, ou lhe faltasse algum tipo de assistência.
As tribos tinham suas questões administrativas geridas por um conselho presidido por um juiz, legitimado pelo povo. Samuel foi o último juiz daquele período.
Aquela estrutura de produção pode ser considerada uma das primeiras práticas socialista da humanidade. Milênios depois, imitada em Canudos, na Bahia, com um triste fim: a chacina de Antônio Conselheiro e seu povo; que desafiaram a ordem reinante de um Estado onipotente.
Voltemos a Samuel. Acontece que os vizinhos das tribos de Israel organizavam-se em monarquias totalitárias, com pouca ou nenhuma participação popular nas decisões, em forma de conselhos. E eram temidos.
O diálogo do povo com o juiz Samuel é digno de um roteiro de cinema, veja: Então todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel. Disseram-lhe:
“Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações.”
Estas palavras pareceram mal aos olhos de Samuel, quando disseram: “Constitui-nos, pois, agora um rei”. E Samuel orou ao Senhor. E falou Samuel todas as palavras do Senhor ao povo, que lhe pedia um rei. E disse: Este será o costume do rei que houver de reinar sobre vós:
“Ele tomará os vossos filhos, e os empregará nos seus carros, e como seus cavaleiros, para que corram adiante dos seus carros. E os porá por chefes de mil, e de cinquenta; e para que lavrem a sua lavoura, e façam a sua sega, e fabriquem as suas armas de guerra e os apetrechos de seus carros. E tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. E tomará o melhor das vossas terras, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais, e os dará aos seus servos. E as vossas sementes, e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais, e aos seus servos. Também os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores moços, e os vossos jumentos tomará, e os empregará no seu trabalho. Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe servireis de servos. Então naquele dia clamareis por causa do vosso rei, que vós houverdes escolhido; mas o Senhor não vos ouvirá naquele dia.”
Mais de 3.000 anos depois, como essa mensagem sobre querer um Rei é atual.
Na falsa segurança de que é bom que alguém “mande” na gente, cobre da gente, controle a gente, ficamos excessivamente dependentes a todo tipo de autoridade. Carentes de alguém que exerça sobre nós qualquer tipo de poder.
E, o pior, quem já teve um “Rei” desse tipo logo viu frustradas suas expectativas.
Rei em forma de marido, pai, chefe, político, ou entidades endeusadas de qualquer origem, nunca nos fará bem – do ponto de vista da autonomia, liberdade e protagonismo de nossas vidas.
GRs não possuem líderes em suas equipes. Possuem subordinados.
Não incentivam a delegação de tarefas, a autonomia, ou o compartilhamento de decisões.
GRs têm sempre a única e a melhor saída. Têm todas as respostas. Centralizam tudo e estufam o peito, orgulhosos, de seu rebanho de ovelhas.
Transmitem uma falsa segurança: “ele nos protege, a seu modo, mas nos protege”.
Exercem uma liderança esquizofrênica, bipolar, e às vezes, assumem uma postura paternal que atrofia pessoas, e as tornam escravas de um estilo danoso.
No pacote acima, sonegam-se espaços de iniciativa, de dinamismo, de resolução criativa de problemas, de administração de conflitos, de entrega de resultados, de inovação, dificultando a formação de novas lideranças.
Afinal, ninguém se sente gestor de seu próprio processo de trabalho, de sua carteira de serviços prestados. De seu sentido do trabalho. Tudo é delegado, ou terceirizado para essa espécie de Deus em forma de gente.
O pior é que uns GR de fato se sentem assim. Outros têm certeza.
GRs são sabotadores. Sabotadores de motivos mobilizadores, uma vez que seus trabalhadores não se concebem - eles próprios engajados na construção de seu projeto de vida profissional. Vão se acostumando a sentirem-se tarefeiros – operários de um fazer sempre dado e prescrito. Embotam a alma, embotam vidas e sonhos.
Não pensam, criam, ousam ou animam-se a superar situações limites.
Vão ficando tolhidos.
Tal qual aquela criancinha que no primeiro ano fundamental na aula de artes. Ela queria pintar com os lápis de cores. Mas a “tia” definiu que só poderia ser com a cor vermelha.
No segundo ano, na atividade de argila, ela queria fazer um bichinho. A tia definiu que deveria ser um pequeno pires.
No terceiro ano, ela foi chamada a expressar-se com palavras, para o uso dos verbos com a letra C. Ela pensou em fazer uma cartinha com as palavras: Cozinhar; Comer e Comemorar.
A tia proibiu. Disse-lhe que deveriam ser apenas palavras retiradas de um capítulo de um livro bolorento, no qual não havia os verbos acima, aqueles do alimento do corpo e do ser.
Na quarta série mudou de colégio. A professora começou a aula perguntando aos alunos: Como foi seu dia de ontem? Na vez dela falar emudeceu. Questionada pelo silêncio: ela disse à professora: “Mas Tia, sobre o que é mesmo que você fale de meu dia de ontem?”
Quantos adultos ficaram assim.
Tiveram pais controladores; professores reprodutores de conhecimento e gestores autoritários.
Não vou violentar minhas crenças.
Acredito que funcionários não precisam ser tocados: quem toca algo são boiadeiros. Suas boiadas.
Acredito que funcionários não precisam ser controlados. Quem controla algo é operador de torre aeroportuária.
Acredito que funcionários não precisam sempre receber algo, em troca de algo entregue. Quem trabalha com essa expectativa são os garçons 10%.
Nas vezes em que mais cresci, na carreira técnica, foi quando tive gerentes que me incentivaram a ser líder.
A pensar e agir como se líder eu fosse. Mesmo que estivesse autenticando papeis num caixa. Esse é meu conceito de um bom gerente: desenvolver a liderança em si mesmo, e nos seus liderados. Deixá-los voar e compartilhar com eles a gestão.
Afinal, liderança não é uma posição hierárquica, ou uma função. Liderança é uma competência que deve ser sempre desenvolvida, no seu conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes.
Só me pergunto se alguns trabalhadores, do atual mercado de trabalho, possuem nível de maturidade para terem gestores-líderes? Sem “pularem o corguinho”.
Pergunto-me também, se os gestores-líderes terão motivação suficiente para atualizarem seu portfólio de competências, e lidarem melhor com diferentes expectativas e culturas geracionais, sem abrirem mão do crescimento que até então tiveram, ao exercerem a gestão de forma mais humana, participativa e mobilizadora de suas equipes?
São dilemas da gestão de pessoas na contemporaneidade: meus, teus e nossos.
Por isso, renovo anualmente meus propósitos de gestão, vacinando-me contra estilos GRs e correndo atrás de atualizar-me periodicamente, frente aos novos desafios de ser gestor de gente, já que a canção me ensinou a não seguir o caminho tradicional: “Então não pude seguir, valente em lugar tenente, de dono de gado e gente, porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente."
Carta de Princípios de Gestão, By Ricardim
1) Pautar a conduta profissional pela justiça, meritocracia, comprometimento e alinhamento às diretrizes da gestão, engajando a equipe na busca dos objetivos definidos;
2) Exercer com efetividade a gestão de desempenho por competências, e a consequente prática do feedback;
3) Evitar a centralização gerencial e o controle de coisa miúda, favorecendo a autonomia e a formação de lideranças;
4) Investir tempo na formação da equipe, inclusive pelo exemplo, focando no aprimoramento e orientação profissional;
5) Acolher e/ou encaminhar, no que couber, as necessidades e expectativas individuais, ou coletivas, contribuindo com a melhoria do clima organizacional;
6) Transmitir coerência ética entre o que prega, e como age, portando-se com paixão e entusiasmo na condução da equipe;
7) Manter a equipe focada em resultados e entregas prioritárias, com base nas competências iniciativa, autonomia, resiliência, agilidade, inovação e eficiência;
8) Corrigir desvios que possam comprometer o ambiente de trabalho e a produtividade;
9) Celebrar periodicamente a caminhada, favorecendo a constituição do tecido grupal e senso de pertencimento, demonstrando consideração e reconhecimento pelo engajamento e comprometimento dos membros da equipe;
10) Comunicar-se com objetividade e constância, privilegiando o compartilhamento da estratégia de negócios, e a essência dos valores organizacionais.
Especialmente aos bons gerentes, que me ensinaram pelo exemplo, ao longo de minha vida profissional. Nenhum um pouco GRs, ainda bem.

São João


Em Brasília, ipês roxos de florada precoce começam a cantar para primavera que espera ali na esquina de setembro.
Ao longe, enquanto teclo na varanda esperando a lua cheia debutar, escuto acordes de uma sanfona dolente. Por aqui em cada colégio, igreja, empresa, e, em muitas famílias, começa a temporada das festas juninas.
São festas de intenso simbolismo cultural.
Acredito existir algo de místico e comunitário nos festejos juninos.
Ativam nossa dimensão sócio-espiritual.
Vamos ficando velhos e vendo a vida com outros prismas, vendo o que antes não víamos.
Já reparou na alegria das bandeirinhas de São João?
Já parou para vê-las balançando ao sabor do vento? Todas fixadas num mastro central, formando um telhado aberto, mas nos abrigando sob ele em cores ao vento.
Embaixo dele, não há vazio ou medo. As bandeirinhas acolhem a todos, com sua simplicidade e mansidão.
Você nunca vai ver a casa de alguém de coração fechado enfeitada com bandeirinhas de São João.
Quem abre sua casa, para as festas de São João, tem no coração as bandeirinhas coloridas acenando para todos e dizendo que viver vale a pena e que todos são bem-vindo ao seu lar.
Depois das bandeirinhas têm as comidas de milho. Comidas de milho pedem coração generoso de quem as faz.
Você não compra milho para fazer uma única pamonha. Você compra uma mão de milho (50 espigas) e faz com ela pamonhas e canjicas para você e seus amados.
Quando em minha casa ralava-se o milho uma energia espiritual contagiava a todos.
Depois de bandeirinhas e de comida grata e generosa, você já viu a beleza de um trio de forró pé de serra?
Três instrumentos: triângulo, sanfona e zabumba.
Um constrói a harmonia, a sanfona.
O outro dita a cadência, a zabumba.
O último deles, tempera o ritmo, o triângulo.
A conversa entre os instrumentos é puro Jazz.
Já as letras, falam de vida, de lamentos, de amores, de conquistas, de partidas, de saudades, da natureza, das coisas boas e dos momentos que num instante eternizam uma vida.
Por último, as danças. A quadrilha que se dança em grupo. De marcação simples, até crianças aprendem fácil: “olha a chuva...”.
Que ensina a arte do bem viver: saber o momento de avançar e o de recuar: Anarriê (todos para trás), e o Alavantú (todos para frente).
Dança coletiva que todos saem melhor ao seu término, do que quando nelas iniciaram.
De origem francesa, nós brasileiros demos a ela um toque só nosso. Nem precisa dançar, só ver uma quadrilha tradicional já encanta corações. Depois, no capítulo das danças, tem o forró. Dancinha pra dançar junto, pra sentir a pegada do outro, pra remexer sentindo o corpo envolvente. No forró, exercita-se a harmonia, a cadência e o tempero do outro. Tal qual os instrumentos do pé de serra.
Uma dança envolvente e que se mistura, como numa amálgama, à música que toca.
Vestidos de xiita colorido balançam em saias rodadas. Caipiras de todos os naipes, esmeram-se em galanteios para o cortejo do enlace.
“Olha pro céu meu amor,vê como ele está lindo.”
Com essa música , de Luiz Gonzaga, abre-se o São João de minha cidade, Campina Grande-PB.
Quanta sabedoria nesse convite.
Como precisamos olhar para o Céu, e contemplar as belezas que nos rodeiam no primas das coisas do alto.
Que a preocupações, aflições e ansiedade vai turvando a vista e impossibilitando de vê-las.
Vou correndo ali comprar papel de seda colorido, fazer umas bandeirinhas, e colocá-las em meu viver. É junho. E junho é um mês que convida ao aquecer corações, ao juntar de sentimentos e ao evocar de emoções boas, belas e virtuosas, tal qual essa mesa farta de São João, de uma das vezes que fui na casa de meus pais.

Capitão do Mato


Ao lado de um campinho, no condomínio Ouro Vermelho-DF, onde o meu pequeno João Gabriel (5) treina futebol, há uma pequena mata de Cerrado. Ela foi preservada por visionários, e sei o quanto deve ser vista com olhos tortos por urbanóides que adoram pavimentar tudo, até a si mesmos, na alegação de que "folhas sujam o chão".
Em quantas Assembleias devem ter proposto tornarem aquela área mais "útil".
Conheci um de seus preservadores, o sr Marcio Landes Claussen .
Tornamo-nos amigos. Ele me contava com júbilo que tinham contratado os trabalhos de uma empresa júnior da UNB que faria o inventário do patrimônio natural da mata.
Hoje enchi o oração de alegria. As árvores foram identificadas, sinalizadas e agora viraram atração turística.
Agora elas têm nome.
E que diversidade. Num quadrado de mata de uns 200 metros de largura, podemos encontrar uns 40 tipos diferentes de árvores.
Faz gosto passear por entre elas.
Árvores que para mim não tinha formosura alguma, eram apenas um pau retorcido em busca de um infinito, agora tem um nome: Capitão do Mato.
Impossível passa ao seu lado e não reverenciá-lo. Afinal, como passar ao lado de um capitão da floresta sem prestar continência?
Hoje sai de plaquinha à plaquinha me apresentando às espécies.
Agora elas têm um nome para mim.
Como o nome faz a diferença. Agora, vendo-as ao longe, deixam de ser simples resto de mata. Agora elas são individualidades.
Cada qual com sua cultura, seu uso, suas manhãs e jeito de ser.
Em comum, a sobrevivência.
Talvez nem os moradores do local tenham a real noção do que estão deixando para os nossos netos, em termos de acesso à bio-diversidade.
A importância e aventura de adentrar-se pela mata, em suas trilhas de terra batida, e levar os filhos para serem apresentados aos espécimes que ali residem.
Recuperar a identidade das pessoas, é dar a elas mesmas autonomia, dignidade e respeito; tal qual sr.Marcio e outros abnegados fizeram com estas árvores esquecidas num fundo de moradia.
Quantas pessoas passam pela nossa vida assim: sem placas que as revelem em sua integridade e completude.
Perderam-se de si mesmas, de sua personalidade e mundo de valores: tornaram-se igual a uma árvore de eucalipto,numa floresta de eucalipto: iguais.
Perderam a diferença que enriquece, sua cultura que enobrece. Tudo deixaram ficar homogeneizado.
Viraram um coletivo de gente que ouve a mesma coisa, pensa do mesmo jeito, vestem-se igual,e até a cor do carro se assemelha. Sem nunca permitir-se ampliar os horizontes de si mesmo, e crescer com outras percepções da realidade.
Saiamos por aí pregando tabuletas com nomes, nas pessoas com as quais cruzemos. Pessoas esquecidas, num canto de mata de nossos corações, aquelas mesmas que passam pelo nosso viver e nem sequer sabemos quem são.
Não são mais uma: elas têm nome, sonhos, desejos, fantasias, história.
Abençoado Bioma do Cerrado, tão maltratado e em extinção, e que nos ensina que há sabedoria nas diferenças, e que para além de troncos retorcidos, disformes, sem beleza a olhos modernos, que ao longe sãovistos como uma coisa só: existe um monte de diferenças enriquecedoras, identidades próprias e individualidades Há histórias de vida, e até um nome científico: Terminalia Argen-
tea na minha Capitão do Mato.
Que ela nunca seja tida por terminal, sucumbindo aos interesses de cupins econômicos.

Cartas ao JG - O Jogo FAR Cry 3


Sabe filho você está viciado em vídeos de jogos pelo youtube. Acontece que o pessoal se filma jogando, e você os vê, e mesmo sem ter videogame diverte-se de montão.
Nem pisca. Esqueceu a casa da árvore, esqueceu de brincar com outras coisas e até os filmes infantis.
Hoje vou desligar esse hábito de você. Tal qual fiz com sua chupeta, quando tinha dois anos.
Nessa noite você saberá que tem limites e voltará a ver a Turma da Mônica ou Bob Esponja.
O tal do jogo FAR Cry 3 nunca mais.
Vi um pouco esse jogo, guiado por ti, para descobrir umas coisinhas que acontecem contigo.
É bala demais, revólver, bazuca, fuzil, tem para todos os gostos.
Agora descobri o porquê de tudo em que pega vira uma arma fictícia. É o tal do FAR Cry 3.
Está chupando um picolé, de repente aponta com ele para o horizonte, tal qual uma arma imaginária e tome: pá, pá, pá, pô, pô... pô.
Já vi “arma” de hambúrguer; livro; pão; ou pedaços de pau e pedra que recolhe nos quintais e vai amontoando pelo jardim. Ontem, em pleno momento de oração das crianças, você estava no canto do altar mirando para comunidade com um resto de brinquedo que achou.
Sem falar que passou a ter medo de Zumbis e Vilões. Noutros filmes que vê.
Com você acontece um fenômeno da psicologia, muito estudado recentemente, chamado de Efeito Tetris.
Se quando estiver lendo essa carta não souber o que era o Tetris, vai uma pequena explicação:
O jogo foi consiste em empilhar quatro quadrados unidos entre si que descem a tela, numa velocidade que cresce gradativamente enquanto o jogo evolui, de forma que completem linhas horizontais. Quando uma linha se forma, ela se desfaz, as camadas superiores caem, e o jogador ganha pontos. Quando a pilha de peças chega ao topo da tela, a partida se encerra.
Pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) financiaram dias de jogos de Tetris para pessoas que declararam que gostavam desse jogo. Eles tinham que passar horas jogando diariamente.
Após alguns dias, o grupo foi convidado a andar pelo centro da cidade, e, quando do retorno, descreverem-na numa redação.
Eles ficaram impressionados, a maioria dos estudantes falava da cidade em termos Tetris.
Explicavam como determinados prédios, caso cortados, ou virados de lado, etc, encaixariam nos outros.
Passaram a ver blocos de encaixe no lugar dos prédios. Assim como você passou a ver em tudo que pega uma arma.
O hábito moldou uma visão e um comportamento.
Cuidado com a força dos hábitos.
Cuidado para que tuas crenças tão arraigadas sobre qualquer coisa não acabem por vê-las em tudo, em todos, e até em você mesmo.
Criando uma distorção perceptiva fruto da maneira que concebe o mundo ao seu redor, reforçada diariamente pelos seus hábitos prazerosos.
Cuidado com o lugar em que mora o prazer.
Se ele não se conceber como algo bom, belo ou virtuoso, aquilo que te dá prazer poderá fazer a muitos infelizes.
Ou a você mesmo, ao não saber mais viver sem aquilo.
Pense nas drogas, por exemplo.
Ou nos hábitos ruins que aprendemos e que podem virar um traço de comportamento.
A fofoca, a mentira, a ruindade, a mágoa, a manipulação, o jogar uns contra os outros, o orgulho, a calúnia e a falta de responsabilidade.
Tudo pode virar um FAR Cry 3, ou um Tetris.
Pratica uma vez e gosta. Pratica duas. Três, quatro e aprende. Aprende coisas ruins.
E, como ser feliz procurando armas em tudo, ou blocos de tetris?
Quando alteramos nossas crenças, alteramos nossos comportamentos.
A visão precede a ação.
Está difícil de entender?
Deixa te explicar. Tinha dias que eu procurava o livro Positividade. Trata-se de um livro que esgotou aqui no Brasil, e o meu comprei em Portugal.
Procurei em todos os lugares possíveis e impossíveis. Costumo perder as coisas.
Revirei meu escritório, botei abaixo pilhas de livros.
Olhei para os de cabeceira umas dez vezes, e não achei.
Até entrei no site novamente, para compra-lo, mas com o frete sairia por 40 libras, e a libra anda cara.
Pensei, vou procura-lo mais um pouco.
Aí, passando a vista pelos livros que ficam à minha frente, livros de uso diário nas aulas que ministro, vi escrito numa lombada Positividade.
Nem acreditei, a puxei para fora e era ele.
Vi onde errara, programei meu cérebro para procurar um livro de capa azul e descartar tudo que não fosse azul.
Então jamais o acharia pela visão somente, era preciso ler as lombadas.
A lombada do livro da cor mostarda.
Entendeu, filho meu, o que aconteceu com minha programação cerebral?
Associei a capa azul, que de fato ele tem, à lombada. Como ter uma lombada de cor diferente da capa, era assim que meu cérebro funcionava,
Então, tudo que não era “lombada azul” nem puxava da estante.
Um grande pesquisador da psicologia positiva, o mesmo que descobriu o efeito Tetris, o Shawn Achor descobriu um outro efeito: O FILTRO DE SPAM CEREBRAL.
Ele nos ensina que nosso cérebro é programado para ver em primeiro lugar tudo que nos ameaça, escassez, limites, tudo que nos preocupa, tudo que em nós causa medo, risco ou ansiedade.
Todas as informações adicionais que não estejam de acordo com essa regra, vão para uma espécie de filtro de e-mails indesejáveis – SPAM, para a lixeira de nosso viver.
Não vemos. Vemos e não vemos.
Chama-se a isto de percepção seletiva de sobrevivência.
Uma pena, que o uso demasiado desse mecanismo de sobrevivência, adquirido desde as cavernas, nos priva de lindos pores do sol, de beija-flores, de pássaros em sinfonias, de pessoas lindas ao nosso redor, e até de nós mesmos.
Uma vez apreendido, esse hábito de focar excessivamente nas preocupações e problemas, o interruptor da percepção seletiva fica ligado nesse modelo mental.
Nada mais tem prazer, noutras áreas de nosso viver.
Entende filho meu?
Não se vê outros aspectos, e aos poucos a vida vi ficando excessivamente negativa, agindo em nós o cérebro reptiliano, o da sobrevivência, e despejando os hormônios do estresse e agitação: cortisol e adrenalina, em doses de envenenar o mais monge dos mortais.
Se é uma dica que posso te dar é para não limitar sua visão a nada.
Ampliar as fronteiras do pensamento, das experiências, desenvolvendo outras visões para além do foco – visões periféricas fruto de uma percepção expandida, que só a esperança, o amor e a generosidade podem lhe dar.
Um dia você vai ter crise de amor. Vai querer que o mundo pare para ouvir tua dor. Vai ver tudo sem cor, gosto ou aroma. Digo-lhe, isso passará. Expanda a visão para os lados e verás amigos, a espiritualidade, o trabalho e os hobbies ainda te dando alegria e sentido de viver.
Um dia vai ter crise no trabalho. Vai querer chutar o balde e achar que o trabalho não tem sentido. Digo-lhe, o amanhã será melhor e no mesmo trabalho. Não saia do trabalho por ser infeliz e achar que o outro te trará felicidade. Saia por outros motivos, por exemplo por sentir que sua vocação pode ser melhor expressada noutro. Aí sim. Mas, não fique procurando um trabalho que realmente goste. O gosto não está no fim. O gosto está no meio. Se ficar procurando um trabalho em que seja finalmente feliz, um chefe, um amigo, uma premiação, uma titulação, uma mulher, uma cidade, uma qualquer coisa, serás infeliz sempre. É que quando alcançares a “qualquer coisa” já ficarás infeliz novamente. A felicidade não vem do alcance, vem do esforço para tal. De curtir o caminho, antes da chegada.
Hoje cheguei mais cedo no Edifício BB no qual teria uma reunião.
Antes de entrar pela catraca, em direção aos elevadores, reparei que tinha uma área à direita por onde circulavam muitas pessoas.
Como tinha tempo, fui até lá.
UAU!. Era uma praça de alimentação, com direito até a bancas de revistas.
Têm meses que frequento esse prédio para reuniões, e nunca tinha a visto.
Se caísse essa pergunta num “Show do Milhão” eu perderia a bolada.
Foi preciso que eu me dispusesse a romper as fronteiras da catraca de acesso ao elevador e explorasse o térreo daquela edificação.
Foi preciso alargar meus pensamentos, expandir minhas fronteiras do agir e do pensamento.
Sempre que alguém te disser que determinado povo não presta, que tal cultura é melhor do que a outra, que tua empresa é ruim, que as pessoas com as quais convive são más:
Você passará a ver a vida por essas lentes.
Então, filho meu, desligue-se desse modelo mental, tal qual eu fiz com teu vídeo game.
Reeduque-se com outros pensamentos, os melhores, aqueles que abrem as janelas de teu viver. Que expandem as fronteiras de teu agir e pensar sobre o mundo que são os quinze valores vetoriais: justiça, paz, amor, perdão, fé, otimismo, esperança, empatia, solidariedade, compaixão, mansidão, flexibilidade, serenidade, gratidão e bondade.
Cada um desses quinze valores é indutor de percepção positiva, ampliadores da visão, por isso os categorizo como vetores da alma.
Nos tornam melhores.
Se não fizer isto, tudo em tua vida se adaptará ao modelo mental subjacente: egoísta, vingativo, maldoso, violento, opressivo e desumano, fazendo que na sua mão até um prosaico picolé vire arma.
Pense nisso.

A bola da vez.



Hoje, pensei pela primeira vez na possibilidade de me aposentar, e, ao comentar com minha esposa, recebi de cara um:
"Para fazer o que em casa?"
Desconcertado com a pergunta, soltei um: "Para cuidar de você, dos filhos e da casa."
Logo desconversei, precisava ganhar tempo e pensar numa melhor resposta.
Não nos aposentamos sozinhos. A família é impactada com a decisão, por isso a decisão precisa ser negociada.
Lembrei-me que ela trabalhará 6 anos ainda, até poder se decidir
Lembrei que os filhos mais velhos cresceram e todos agora têm um CNPJ para chamarem de patrão.
Lembrei de minha ida ao concurso do BB, quando paramos na ponte do Rio São Francisco, eu e meu pai que guiava o carro, e um amigo que também ia fazer o concurso, o que fez essa foto.
Nesses 30 anos mudaram o rio, eu e o BB.
Fecha parenteses
No estranhamento com a pergunta, acabei dando a resposta errada.
Quem disse que nos aposentamos para cuidar de casa, filhos, cachorro ou cônjuge?
Não é uma boa razão, embora foi a que eu tinha para o momento.
Outro dia conversei com uma colega de BB. Ela revelou que seu esposo aposentou-se a dois meses.
E que ficou surpresa com ele. Acontece que ele é um exímio cozinheiro. Ele cozinhava nos finais de semana e em algumas noites. Ela então comentou com o maridão: "Puxa, já faz 60 dias que você está aposentado e nunca cozinhou um almoço durante a semana para mim, "já que está em casa mesmo"?
Ele revelou que seus planos como aposentado não passavam por aí. Cozinhar almoços na semana.
Não passavam pelo famoso "já que". Pronto, crise à vista.
Não me decidi ainda se faço ou não faço a adesão. Esta é uma decisão do tipo: várias noites sem dormir,
e muitos joelhos no chão.
Acontece que não vivo o trabalho como algo que me sufoque e me torne infeliz.
Não tenho uma relação dolorosa com minha empresa. Sou dos que gostam de vir trabalhar, a maioria das vezes, mesmo nas segundas mais chuvosas.
Têm exceções. Há segundas nas quais quero ficar em casa, de papo para o ar, mas são a minoria.
Gosto do que faço e o que faço me dá sentido.
Gosto de minha equipe de trabalho, dos desafios e resultados que entregamos.
Um frisson tomou os andares de onde trabalho, com o anúncio do PAI (Plano de Aposentadoria Incentivada) do BB.
Vi um monte de "dinossauros" fazendo contas do quanto vão receber se aderirem ao PAI, ou quanto vão deixar de receber no salário pós-aposentadoria: "desconta o vale refeição, a venda de abonos, licença-prêmio, as PLRs futuras, não dá ainda".
Risos. E quando dará?
Afinal, estas são verbas não salariais.
Fiquei pensando que se for para ponta do lápis quem se aposentaria mesmo?
Mas, costumamos só fazer a conta material: da grana que deixará de entrar, mas e a conta afetiva, a conta emocional, a de qualidade de vida, a da saúde, aquelas de valor subjetivo e intangível?
Qual o saldo delas?
Mas, se o pleno bem-estar no pós-carreira, na nova jornada de um ser humano, fosse variável do quanto se ganhará naquela etapa da vida, alguns juízes não teriam problemas ao se aposentarem, visto que se aposentam com todas as vantagens da ativa.
E alguns deles têm sérias crises de adaptação à "vida lá fora", conforme ouvi de um alto magistrado, em entrevista na Rádio Justiça.
Então, não é a $ que faltará, ou sobrará, o que determinará o bem-estar nessa jornada.
O que precisa ser perguntado, é a questão que a minha esposa fez, trocando o substantivo "casa" por "vida".
"Para fazer o que na vida?"
Não vou me aposentar para ficar em casa, balançando numa rede, enquanto a vida passa lá fora, se é que vou me aposentar.
Caso faça a adesão, tenho um monte de projetos: escrever muito, aprender coisas novas, fotografar, lecionar, prestar consultorias, ministrar palestras, atender no consultório, montar cursos, e nutrir uma maior proximidade com meus filhos, familiares e amigos.
Quem sabe até, num nível avançado: correr, nadar e pedalar.
Não quero me aposentar para ser o "já que".
"Já que está em casa, pega o JG no colégio."
"Já que está em casa, conserta a lâmpada queimada."
Posso até ser, um ou outro "já que", mas se me der sentido.
Ah! quanta coisa há para se fazer na vida, no pós-carreira, além dos "já que".
Escritos, viagens, aventuras, aprendizados, hobbies, cuidar um pouco mais de si mesmo, encarar novos projetos, ou simplesmente, ociar o tempo: lagarteando numa laje qualquer. E sem traumas por não está "fazendo nada".
Haverá dias que me permitirei limpar e ouvir meus vinis e só.
Vamos pensando com calma. O que estava no planejamento para 2016/2017 é antecipado.
Preciso ponderar, trata-se de uma decisão sem volta.
Mas, confesso que começo a sofrer um certo saudosismo, até do crachá.
Daqueles da espécie de quem começa a "arrumar as malas", para partir de uma boa cidade na qual morou muitos anos e nela cresceu, aliás, cresceu com ela.
Sentimentos confusos e contraditórios invadem meu ser...
Sinto que essa mala ainda vai ser arrumada e desarrumada, muitas vezes, noites de alma adentro que virão.
Não é decisão fácil a separação de amantes corporativos: quando na decisão, o crachá e a estação de trabalho nutrem entre si um certo romance.
Mas, em algum momento será necessário que se abram janelas para outras possibilidades. Mesmo que anos à frente.

PS. Não me aposentei.  A bola passou. Depois eu chuto novamente. Não era a hora ainda. 

PSA zero bala. By Ricardim


O dia prometia ser animado, mais tarde seria aberta a adesão ao Plano de Aposentadoria Incentivada do BB (PAI)
e o setor fervia de ansiedade.
Eu estava exausto emocionalmente.
É que houvera passado o final de semana refletindo sobre a decisão de aderir, ou não, ao PAI - já que faço parte do público-alvo.
E tinha decidido pela não-adesão.
O coração ainda galopava: num misto de alegria, alívio, e domando uma ou outra vozinha que o açoitava dizendo: "Não será mesmo tua hora, Ricardim?".
Às 10hrs eu tinha exame preparatório à consulta do periódico de saúde.
Pelo menos poderia sair um pouco e desparecer.
Perto da hora, dirigi-me à clínica.
Estava confiante, embora o exame fosse com um urologista.
Meu exame de PSA indicava que minha próstata estava zero bala. Então, seria fichinha.
Escolhi o primeiro médico com agenda disponível. Esse é o tipo de médico que não é bom criar intimidade.
Chegando ao local, meu pensamento voou para o trabalho. No celular, o uotzap estava frenético.
Olhei de soslaio para os lados, e vi vários garotões dos "Enta", com aparência de poucos amigos.
Um estranho silêncio invadia o local.
Uma moça anunciou meu nome, em timbre forte e decidida.
Elas devem ser treinadas para isso. Parecem sargentos dando comandos militares. Acho que é para o cara não desistir.
Entrei no local literalmente com o c_ na mão.
Recebeu-me, na porta, o Dr. Eraldo, um urologista com 55 anos de experiência e 80 de idade.
Desconfio de médicos que recebem na porta.
Aos poucos fomos estabelecendo um papo legal. Uma espécie de preliminares.
Descobrimos afinidades. Dr. Eraldo é nordestino, um cearense de Fortaleza, e têm cardiopatia, e até sofreu dois infartes.
Trocamos entre nós uma certa cumplicidade cardíaca. Eu com minha ablações e eletrochoques, ele com suas pontes de safena.
Finalmente, ele ingressa no tema da conversa e olha meu exame PSA.
Sorridente, me deu nota dez. "Está igual ao de criança". Bingo! Eu estava a salvo.
Então perguntou: "Têm casos de doença de próstata na família?"
Essa era mole, sabia a resposta de cor. Respondi, impávido e colosso, com um retumbante NÃO!!.
Pronto, passei nos dois testes. Agora seria só finalizar as amenidades e correr para o abraço.
Deixando de lado os exames e a anamnese, ele logo entabulou a conversa sobre o tema praias nordestinas e cardiopatias.
Trocamos até figurinhas de bons cardiologistas.
Nunca acredite em preliminares de urologistas.
Olhei no relógio, como que querendo encerrar a aprazível conversa sobre praias e coração.
O Dr. percebe meu aperreio em querer voltar para o trabalho e dispara: "Mas o senhor não veio até aqui, num dia importante para sua empresa, e vai sair sem um toque!"
"E, deu sorte, tenho o dedo pequeno".
Puta merda. Por que todo cearense tem humor no DNA?
Ele disparou, vamos ali para salinha.
Dessa vez eu estava experiente. Quando ele mandou tirar a roupa só tirei a debaixo.
Há uns cinco anos atrás, tirei tudo, e o cara sacaneou - humoristicamente falando.
Já despido o Dr. Eraldo fuzilou:
"Suba na maca e fique na posição de quem está orando para Meca".
Agora quem queria sorrir era eu, imaginando se eu fosse Muçulmano a merda que daria com aquela referência.
Posicionei-me em cima da maca, tentando reproduzir o que eu achava que seria a posição: "Orando para Meca".
Aí ele soltou um: "Ore direito meu filho!"
Filho da puta, pensei calado. Faltei a lição do catecismo, desse tipo de prece. Acho que preciso ser mais crente e me curvar melhor, deve ser isso que ele quer.
Que vexame!
Durante o exame, desviei meu pensamento para as preocupações com reposição do quadro de pessoal derivadas das possíveis adesões ao PAI. Nunca ter preocupações valeram tanto quanto naquela hora.
Um verdadeiro alívio, ter um monte delas em que pensar.
Mas o toque demorou, e aos 80 anos, poderia ter sacado que o dedo dele iria tremer.
Nossa!
Passado uns eternos minutos, já estava faltando preocupações, quando lembrei-me que o Neymar não vai jogar mais.
Ufa, deu tempo dele sair da pequena área, no caso o médico, e eu respirar novamente aliviado.
Aí, ele olhou nos meus olhos, ao que baixei a vista, e disse: "Está um pouco crescida, mas mole."
- "Dr., mole é bom ou ruim?".
Ele respondeu-me que é bom, mas que preciso fazer uma Eco e retornar.
Agora lascou. Não pela eco. Mas, pelo retorno.
Retorno em urologistas são risco iminente.
Vai que a prece não tenha sido boa, e ele pede para repeti-la?

Cartas ao JG - Aprenda a fazer "conservas emocionais"


Conseguimos chegar do colégio a tempo de você brincar um pouco lá fora, com luz do sol ainda.
Logo correu para um de seus morros prediletos, o da foto. Você me contou que explora alguns "morros", e tem esconderijos, acho que na casa do vizinho, como foi flagrado dias destes.
Será que irá lembrar dessas boas vivências de criança?
Creio que sim. De alguma forma elas irão ficar guardadas no teu coração, e, nos tempos de gente grande, poderá acessá-las, deliciando-se com aqueles tempos bons, tal qual fazemos ao abrir conservas de doces, vegetais ou carne na lata de banha.
As conservas emocionais serão importante alimento para sua alma. Guarde-as com zelo, cuide delas.
Quantas noites, antes de dormir, eu visito as minhas - aquelas que meu acidente de moto não apagou da memória.
Nos dias de maior aperreio antes de dormir, quando lembro de um monte de coisas pra fazer no dia seguinte, dirijo-me a uma de minhas conservas emocionais predileta.
Era um leito de rio seco, na fazendo de meus avós paternos.
Naquele leito de rio, com areia branquinha e fina, fazíamos nossos túneis, poços e explorávamos a região inóspita da caatinga, subindo rio acima.
Meus primos formavam comigo a comitiva. Éramos os desbravadores do leito do rio seco.
Perto da casa de meu avô, o curso do rio passava por baixo de uma ponte - sobre a qual a linha férrea se aninhava.
Ficar ali esperando o trem era uma delícia. Conseguíamos ouvi-lo vindo, botando o ouvido no trilho e sentindo a vibração, que loucura!
Outra brincadeira era a de jogar pedras nos ninhos de maribondo, que ficavam embaixo da ponte. Quando acertávamos saiamos em disparada, rio acima, que nem bala nem marimbondo nos pegaria.
A brincadeira era fugir dos marimbondos.
Agora, nas insonias mais brabas, ativo uma conserva emocional especial.
Foi quando chegou uma enchente no rio, enquanto brincávamos nele.
Uma cabeça d´agua. Cabeça de água é quando chove muito num trecho mais afastado do rio, e o acúmulo de chuva vai vindo de morro abaixo, enchendo tudo, como uma espécie de onda.
Nunca esquecerei nossa felicidade, correndo paras as margens, para não nos afogarmos, e depois que a onda passou, tomando banho nas beiradas do rio.
Guarde tuas boas lembranças, como conservas emocionais.
Cuide delas, colecione-as, não as despreze.
Elas são muito importante para te ajudar a superar desafios.
Se os pais soubessem como as boas lembranças são importantes, deixariam seus filhos tomarem mais banhos de chuva, melarem as roupas na areia, lambuzarem-se com fruta madura.
Acho que você vai lembrar-se dessa espécie de prancha que usa pra descer seu "morro".
Que bom. Aprenda essa dica, lembranças boas guarde como conservas.
Para as lembranças ruins não faça isso. Nada de guardá-las em conservas.
Para estas, deixe-as ao relento, para que logo apodreçam e sejam processadas pelo ciclo da vida.
Não fique mexendo nelas. Deixe-as num canto do coração, numa espécie de quarto dos despejos.
Com o tempo elas vão secando, murchando, perdendo a força e o fedor.
Logo não mais se lembrará delas. Passou.
Agora, para as boas, revisite-as sempre.
Como eram belas as águas que germinavam o leito sedento daquele velho rio nordestino.
Como essas águas ainda hoje germinam vida em meu ser.
Quando você ler essa carta, não haverá mais teus morros - casas serão construídas no lugar.
Mas, você poderá continuar sendo um homo Sapiens-Demens e brincante.
Só não brinque com as pessoas. Não as manipule, oprima ou explore.
Visite parque de diversões. Roda gigante. Tome muito sorvete. Faça rappel, ande de asa delta, pegue onda, jacaré, goste de jogar uma pelada.
Nos finais de semana, tire os sapatos, bote uma bermuda.
Nunca deixe que os bens materiais ceguem tua felicidade verdadeira, aquela que não pode ser comprada.
Leve-se para passear, tome sol, curta o mar, sinta a vida.
Não entregue sua felicidade a ninguém. Não terceirize sua alegria, seu bem-estar.
Encontre-se em paz consigo mesmo, antes de tudo.
Aprenda a ser feliz sozinho. O que não significa que não deve cultivar amizades e amores.
Mas, não fique deles dependente. Leve-se para brincar. Não fique um adulto sério e rabugento.
Descrente de tudo, negativo, pessimista e chato.
Sorria. Tenha esperança que o amanhã será melhor. Não deixe a criança em você morrer, ela é nossa melhor amiga.
Aquele rio e o fenômeno da cabeça de água não voltarão. Se eu tivesse na barra da saia de minha mãe, na cozinha da vovó, nunca teria visto.
Não fique em nossa barra da saia. Vá ver suas próprias "cabeças de água", depois volte para nos contar e mostrar as fotos.
Mas, aprenda a fazer conservas emocionais das coisas boas que viverá.
Aprenda a guardá-las com cuidado, na dispensa de teu coração, para consumo de tempos em tempos, em rituais gastronômicos afetivos-emocionais de si mesmo.
Verdadeiras celebrações da vida que vale a pena ser vivida.

Saudades Dormidas



Têm dias de saudades boas, dias que mergulho meu ser nas brumas de pensamentos vadios e lembro de onde vim, quem me fez feliz e o que gostava de fazer. De deitar no colo de minha mãe e ver TV. De tomar café com leite após duas horas de piscina gelada no raiar de um novo dia - no Clube do Trabalhador, do Sesi, onde treinava natação das 5 às 7 da manhã, por causa de uma costela que crescia pouco perto do coração.. Do cheiro de incenso e de melodiosas canções de adoração, quando "ajudava" missa. Do pão com manteiga que levava para lanchar no Pio XI, e que após três aulas sentado em cima dele, numa bolsa de pano da Varig, que minha mãe me deu, o calor glúteo derretia a manteiga. Como era bom. Do meu amigo Preto. Menino-amigo-irmão que dominava a arte de fabricar tudo: carro de lata, pipa, patinete, e zarabatanas de mamoeiro. Deus o tenha. Da harmonia de meus pais nas horas das refeições. De respirar na brecha da parede, no 1 andar do beliche em que dormia. Até hoje gosto de uma brecha de parede pra respirar. De ouvir sons misteriosos vindo do "beco", ao lado da janela da cama, e ficar petrificado de medo. De comer umas frutinhas na calçada do colégio, morrendo de fome, ao voltar pra casa. De caminhar uns 4 km do colégio pra casa, todo os dias fazendo uma das rotas possíveis. De nadar, do som da água, de sentir-me peixe dentro dela, nadando peito. De Nininha, sempre cobrando "não se sujar". De uma árvore que subia nela, e brincava com Zeni. Dos sertões da Paraíba e o rio seco, a ponte e a trilha do sítio de meu avô. De tomar banho no barreiro, cor de ferrugem, e com todos os monstros do mar em seu interior. De meu avô paterno ralhando mansamente quando matei mais avoantes do que comeria. De minha espigada, sempre lustrosa e minha fabriqueta de munição. De subir no telhado de casa para empinar papagaio. De descer as calçados do colégio Estadual da Prata de patinete. De visitar meu pai no Senai e me perder por labirintos das oficinas, revirar lixos atrás de tocos de madeiras e de ferro, e todo mundo ao me ver dizer: "é o filho do Evandy." De ver minha mãe usando um estranho aparelho que secava o cabelo, de vê-la feliz e falante, e vaidosa. De sair com eles passeando num velho TL e parar num pé sujo, para comer costela de porco, porco caipira, e na mesa um litro de farinha e muito limões. Nunca mais comi costelas tão apetitosas daqueles porcos criados soltos pelos quintais das cidades meninas, antes de virarem adultas chatas. De esperar a banda passar, na rua Antenor Navarro, saindo do Senai e desfilando frente de casa. Até hoje gosto dos dobrados. Do meu grupo de estudo do ginásio e científico Ismenia Mangueira, Ângelo, Digna, Silvana e Marilene. Lembranças de tanta infância e juventude boa. Como meus pais foram terapêuticos em nossa criação. Nunca ouvíamos palavras de rancor, de murmuração, de rabugice, de desânimo, de fofoca ou inveja. Eles eram felizes com o que tinham, e davam valor a tudo. Tudo era bênção. O único luxo que se permitiam era fazer prestações nos ambulantes que passavam vendendo enciclopédias e livros. Todo mês tinha algo novo chegando. Imagino o quanto de esforço e renúncia fizeram para comprar a Delta Larousse, a Barsa, a Coleção Monteiro Lobato, a Tecnirama. São lembranças de um tempo que nunca se extinguirá, pois que virou DNA afetivo em meu coração.
"No roçado do meu coração
Há um tempo de plantar saudade
Há um tempo de colher lembrança" Ednardo, em Flora

Saltem, Desçam, Observem e Exercitem.


De meus quatro filhos, dois aniversariam nessa semana.
O João Gabriel (JG) e o Tiago, fazendo 6 e 30 anos, dias 6 e 9/7 respectivamente. Quanta alegria!
A vida tem me falado de várias formas, em todas elas estão vocês, minha melhor porção: Tiago Barros, Priscila Magalhães, Rodrigo Barros e JG.
Eu poderia resumir tudo que gostaria de deixar escrito para vocês nessas fotos de hoje à tarde.
Na primeira delas, o JG projeta-se do telhado para a cerca. Num salto "mortal", em que para lograr êxito, usou toda as forças para segurar num resto de cerca cada vez mais distante. Sim, ele conseguiu.
Saltem. É a primeira mensagem que deixo. Não temam. Projetem-se sobre o vazio do infinito, com coragem e determinação. Não desistam de seus sonhos. Na vida não tem almoço grátis. Para crescer, e crescer dói, precisarão de esforço, disciplina e ousadia.
Levarão um ou outro tombo, faz parte, prefiro tombos dos que procuram ser mais, dos que ficam no pseudo-conforto de uma vida medíocre. Note que seu pai falou "ser mais". Não falei "ter mais". Aprenderão com o tempo o valor de ser, que a traça não corrói e ladrão não rouba.
Sei que às vezes acharão que o "resto de cerca" estará tão longe, distante, e até impossível. Muitas das vezes ficarão petrificados de medo: do desconhecido, da dor, da incerteza e até do luto, e temerão não conseguir. Mas, tentem não desistam à primeira queda, tombo, escorregada. Perseverem, lembrem-se do que sempre ensino: "isso também passa." A vida só acaba no apito final.
Escalem as cercas imaginárias que lhes aprisionarão. Saiam dos "canils" em que entrarão. Procurem suas melhoras. Não deixem anestesiar seus relacionamentos. Não parem de se assombrarem e encantarem-se com a vida. Fujam dos monstros do medo, indiferença, inveja e rancor. Escalem-se desse lugar do ser que só trará infelicidade.
"Por não saber que era impossível, ele foi lá e fez". Li esse belo pensamento de um poeta chamado Jean Cocteau, e é a síntese da mensagem da primeira foto: não se permitam aceitar qualquer prisão, escale-as rumo à aventura do desconhecido, mesmo que inseguro. Renovem-se seus primeiros amores. Não se deixem envelhecer num "canil" qualquer.
Desçam. É a segunda mensagem que queria lhes dedicar.
Aprendam a descer as escadas do orgulho. A vida vai querer enganar vocês, mostrando que é preciso subir as escadas sociais - a todo custo e de toda maneira. Que a ambição preencherá vazios, que a beleza garantirá juventude, que o dinheiro manterá amores, que a felicidade será alcançada com a conquista de algo. Verão, com suas próprias vidas, que sem descer as escadas do consumo, do poder, do prazer pelo prazer, da ganância e egoismo nunca serão felizes. A felicidade não é chegada, é o caminho até.
E, numa outra metáfora, saibam perder, aprendam a descer. Isto é tão importante quanto saber subir, deixando os degraus intactos. Estamos produzindo uma geração de pessoas que desaprenderam a perder, a ter limites e restrições. Pessoas frágeis demais, narcisistas demais, resilientes de menos e amorosas de menos.
Vai ter momentos que vão descer. Não temam, recomeçar, alterar ou refazer rotas, tentar outros cursos de ação. Não temam. O medo imobiliza, confiem na força da esperança.
Se na primeira mensagem falei da ousadia de sair de canis, pulando no vazio do vir-a-ser, nessa, falo da importância também de saber descer as escadas e ficar. Nem toda saída é sábia.
Cuidado com os modismos, cuidado com falsos "saltos". Cuidado para não desistirem de tudo que os aprisionem.
Precisamos do conforto dos vínculos, da segurança dos outros que amamos e suas instituições. Somos sociais e gregários. Precisamos de certas prisões, ou vinculações, melhor dizendo: do trabalho; da família, dos amigos, dos grupos sociais que participamos, do relacionamento afetivo. Desçam as escadas quando estiverem querendo desistir na primeira briga do casamento; na primeira puxada de tapete no trabalho; na primeira indiferença que receberem de amigos. E, até de sua família. É filhos meus, têm pessoas que desistem até de suas famílias, nunca mais voltam para elas descendo as escadas do coração. Outros, o pior ainda, desistem de si mesmos. Não fazem a viagem mais preciosa que é aquela na qual nos permitimos descer em nós mesmos,nos compreendendo e conhecendo: pontos fortes e fraquezas, crescendo com o sabor e as consequências dessas descobertas. Não mude por mudar. Têm muitos valores que não deverá nunca abrir mão deles, ao escalar a escada social.. Desçam as escadas de seu coração em sua busca, caso corra riso de perdê-los. No porão de uma criança, eles ali estarão: a generosidade, a alegria de conviver, a curiosidade, o afeto, a liberdade e a capacidade de bater a poeira e recomeçar.
Observem. Na vida quando estiverem no meio de um monte de preocupações e aflições, subam no telha de seus corações e expandam a percepção da vida. Há muita coisa boa, bela e virtuosa que acontece nas "beiradas" de suas vidas. Cuidado com o foco excessivo no negativo, na crítica de tudo, de todos e da situação. Aprendam a escalar telhados emocionais e contemplar. Ver a vida de outros ângulos. Buscar outras fontes de referências para melhor perceber a si mesmos, aos outros e à realidade. Aprendam a cuidar das coisas espirituais, não as deixem em segundo plano. A dimensão intangível, ou subjetiva do viver, é o telhado do ser.
Tenham muitos telhados para erguerem-se de si mesmo, e de algum possível mar de lama que venha a nele chacoalhar.
Durante todo o dia, na luta pela sobrevivência, vocês se envenenarão com cortisol e adrenalina. Hormônios do estresse que nos capacitam à fuga, defesa e luta. Cuidado com eles. Embora importantes, o que acontecerá se não souber dosá-los é que em sua vida só haverá espaço para fuga, luta e ataque. Sendo sempre palco de culpa,sofrer e perda. Não sobrarão espaços para a poesia, para as belezuras da vida, para a misteriosa entrega da abelha à flor, e da flor à abelha.
Conserve seus telhados existenciais intactos. Caso ainda não os tenha, construa-os. Valem ouro. Tenham-nos sempre à vista. Subam neles periodicamente e observem. Experimentem desconectarem-se um pouco da tecnologia e conectarem à natureza, às pessoas e aos seis sentidos do viver.
Meu telhado principal é a espiritualidade. Tenham seus próprios telhados, lugares de renovo do ser, apriscos da alma, spas emocionais. Cuidem para não virarem brutos, autômatos, pilotos automáticos de toda a espécie. Gente incapaz de relatar como foi o dia anterior, quantas bênçãos neles estiverem presentes, o que comeu, o que sentiu, o que viveu...
“A verdadeira viagem de descoberta consiste em não procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos.” Disse o escritor Marcel Proust. Eu completaria, dizendo: olhem à vida para além das paredes de prisões e arcabouços emocionais, sobre telhados espirituais, de qualquer natureza.
Exercitem
Falo de exercícios para o espírito. Para o ser. Aqueles que produzirão essa cena de felicidade da quarta foto. Felicidade interior. Levem-se diariamente à academia emocional. Nela, queimem as calorias e a toxidade derivadas do existir.
Nessa academia há alguns exercícios cujo efeito colateral será a felicidade, ou bem-estar. Recomendo-lhes fortemente que os pratiquem, e com rigor e uso desmoderado. Pratiquem a bondade. Tenham sempre cinco saquinhos de bondade para distribuírem ao longo do dia. Não importa se não receberem de volta. Pratiquem o perdão. Haverá pessoas que merecerão uma segunda chance, que eventualmente pisarão na bola com vocês, mas que repensarão as atitudes. Não criem mágoas no jardim de seus corações, nutrindo-as dia a dia com o adubo do ressentimento e a água da resignação. Perdoem-se a si mesmos e cuidado com a culpa. Aprendam com elas, mas fechem estas páginas do livro da vida, não a arrastando em anos a fio. Exercitem a contagem das coisas boas, belas e virtuosas que acontecem nas suas vidas, e diariamente. Estão em todo lugar. Preste atenção nelas. Estejam atentos. Saiam de casa com o firme propósito de vê-las. Contem suas bênçãos. Exercitem a doação. Doem tempo, afeto, paz, justiça, gentileza, serviço... doem-se. Se têm duas coisas que vocês se lembrarão é de quem foi bom e generoso para com vocês, e de quem os ajudou. Ajudem a melhorar o lugar em que habitam. Então, não poupem queimar essas calorias. Por último exercitem-se na prática dos bons valores que mantém a humanidade menos má: ética, cidadania, justiça, solidariedade, paz e respeito. Queimem e livrem-se das toxinas das emoções negativas, calorias do mal que causarão em vocês o entupimento do fluxo do amor, a arteriosclerose no coração afetivo, são elas: a mentira, a inveja, a fofoca, a mágoa, a raiva e a opressão do outro, de qualquer tipo.
São cupins da alma e do bem-estar, as pessoas se entopem desses sentimentos e ainda querem ser felizes, não serão nunca.
Por fim, o mais importante dos exercícios da alma, verdadeiro abdominal, pratiquem o amor. E sempre! Um amor de imensidão, de acolhimento, de entrega, de ternura, de recomeços, de esperança, de otimismo, de possibilidades.
Um amor que sara, cura, conforta, enlaça, alimenta, protege, liberta, apoia, motiva, estimula, nutre, encanta e socorre. um amor que subverte a ordem reinante e faz novas velhas criaturas. Ah! o amor. Como seu pai amou e ama. Amores que foram revolução, renovação e mistério. Amem, mesmo se tudo ao lado negar-lhes o amor. Amem!
"Ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria." 1 Coríntios 13:2
Feliz aniversário meus filhos!

Enquanto reclamo aqui dentro, a vida acontece lá fora.


Era uma quinta corrida. Evento durante o dia todo, e à noite viajaria até Foz do Iguaçu, onde ministraria uma palestra na Itaipu. Ainda precisaria passar pelo colégio do JG e apoiar a apresentação do dia dos pais, deixando minha câmera na secretaria. Teria que me virar num Ninja-Tempo para me desdobrar em tantos papeis.
Saí de casa conferindo umas três vezes se nada houvera esquecido. Afinal, do trabalho mesmo, seguiria ao aeroporto. Sempre penso que esqueci algo. Tenho TOC de viajantes.
Antes de sair, peguei um livro à tôa, um daqueles que vamos comprando para um dia ler, e fica no final da ordem de prioridades, embora selecionado para tal.
Ninguém compra nada ao esmo, existe sempre uma intencionalidade que orienta o desejo.
Botei o livro na pasta, que já arfava de tanta coisa dentro dela.
Durante o dia tudo correu bem.
À noite na sala de embarque tive uns raros momentos de descanso, saborosos instantes de recordação, pois tudo correra tudo bem.
Ouvi a chamada para meu voo, naquele sistema que as Cias Aéreas fazem para acelerar o embarque seguindo a ordem abaixo:
a. Prioridades e cartões dos bacanas.
b. Filas de 15-30.
c. Filas de 1-15.
Minha poltrona era a 6ª. Percebi que a fila B era enorme, aliás todos estavam nela.
Entrei sozinho na minha fila e aguardei.
Passados uns 5 minutos a fila ao lado só crescia e a minha só eu. Pensei, “só vou eu na frente do vôo”.
Aos poucos chegaram umas 4 pessoas na minha fila. Fiquei menos desconfortável, eu estava me sentindo um estranho, objeto de olhares de estranhamento: “o que aquele cara faz ali? ”
Depois de uns 10 minutos, não me contive e reclamei com o atendente. Ele, com voz treinada para situações da espécie, disse-me que chamaria nossa fila em breve.
Passarão mais 5 minutos. E a fila B só aumentava.
Quando ele nos chamou, disse-lhe que o serviço de sua empresa estava caótico e que aquele negócio de 3 filas só atrapalhava.
Ele olhou-me e com cara de quem é treinado para clientes irritados, disse-me languidamente: “Tentamos, mas o povo não respeita”.
Entrando na aeronave ainda saquei outra reclamação para a tripulação sobre o tratamento que os 5 abnegados da fila C tiveram.
Tudo correu bem em foz. Mas percebi que não conseguia fazer meu check-in de volta. Reclamei sobre a situação com umas três pessoas, até durante a palestra falei que talvez por ter um homônimo na Paraná famoso, o Dep. Ricardo Barros, ele tivesse feito meu check-in. Assim, precisaria sair às pressas ao término dela para resolver a situação, temendo não embarcar.
Tudo besteira. A passagem estava lá, certinha, não estava no sistema por questões de segurança. Havia duas voltas marcadas para mim, em horários diferentes, de uma passagem antiga que eu tinha comprado de suas pernas foi cancelado o horário, situação para a qual pedi reembolso.
No taxi, da Itaipu até o Aeroporto, ainda reclamei sobre isso com o taxista. “Corra que estou sem bilhete. ”
Situação resolvida. Finalmente relaxo. Dirijo-me à lanchonete, compro uma Heineken, um quibe, pago uma fortuna, e sento-me como rei. Um sentimento prazeroso de realização pela missão cumprida e a boa aceitação da palestra me invade. Bem. Em duas horas embarcarei. Se eu não fosse tão ansioso teria dado tempo para almoçar no evento. Aliás, se eu tivesse simplesmente ligado para a TAM teria visto que tudo estava ok.
Tomo aquele gole degustando cada ml. Olho o painel e vejo que o vôo está confirmado.
Satisfação, paz, cerveja gelada, quibe delicioso para quem não almoçou saindo às pressas, vôo no horário e voltar para o lar. Precisa-se de mais para termos um paraíso por aqui?
Lembro-me do livro e o busco entre mil coisas da bolsa obesa. O livro é de Will Bowen, chama-se “Pare de reclamar e concentre-se nas coisas boas”.
Logo de cara já em já me apaixonei pelo conteúdo. Esqueci até de comprar outra Heineken.
É o que se chama de amor à primeira orelha, no caso de um livro.
Você deve e curiosidade para saber o que tanto me chamou a atenção, vou te ajudar transcrevendo-a:
“Em 2006, o pastor Will Bowen desenvolveu o programa Sem Reclamações com base num princípio simples: coisas boas acontecerão se você deixar de lado suas queixas e lamentações e parar de falar mal das pessoas. Bowen distribuiu pulseiras aos fiéis de sua igreja e lhes propôs um desafio. Passarem 21 dias sem reclamar de nada ou ninguém. E cada vez que se pegassem falando ou escrevendo algo desse teor precisarão trocar a pulseira de posição – para o outro braço, e recomeçar a contagem. O livro foi escrito para mostrar que a vida pode ser muito melhor se mudarmos de atitude e pararmos de enxergar apenas o que há de errado. A reclamação é um hábito destrutivo que nos afasta da alegria e da auto realização. Estamos tão acostumados a falar mal das pessoas e a reclamar do mundo que não percebemos o efeito que isso tem em nossas vidas. Quando nos conscientizamos do que falamos e escrevemos – nossos pensamentos proferidos e palavras escritas, podemos afastar a negatividade da mente e adotar uma postura positiva que abre caminho para a felicidade e bem-estar”.
Devorei aquele livro durante o tempo de embarque e vôo até Curitiba, onde faria conexão. Durante o trajeto, de uma hora, já coloquei uma pulseira imaginária no meu braço e me propus a iniciar ali mesmo a contagem dos 21 dias.
O reverendo levou dois meses, para conseguir, pensei, mas levarei menos. É mole.
Desembarquei em Curitiba e errei o lugar da conexão indo no sentido da GOL. Voltando por onde vim achei o local e me contive de disparar para a atendente que faltava sinalização, afinal estava com minha pulseira no braço. Só pensei. Pensar pode.
Aguardo folheando o livro quando escuto o chamado. Entro novamente na fileira de 1-15. Dessa vez sou o segundo, na minha frente um senhorzinho octogenário. O atendente percebe o convida para a fila dos prioritários. Pronto, agora eu era o número um novamente da fila C.
Aos poucos vão chegando mais pessoas, agora somos uns 10. A fila ao lado começa a embarcar, são as das fileiras 15 em diante.
Enorme fila. A nossa permanece com uns 10.
Lá no final da fila, após uns longos 10 minutos e nada de terminar a fila B de encher e andar, um dos 10 passageiros se exaspera e brada em voz alta que deve estar acontecendo algo errado, pois a fila C não aumenta e a B só cresce. E que deve ter alguém bancando o sabido na fila ao lado.
Um jovem varão, com sua fogosa namorada, da fila B se dói com o comentário e olhando para o senhor o desafia a tirá-lo da fila que andava.
Pronto, confusão armada.
Começa uma chuva de imprecações. O varão, cheio de hormônios, é incentivado pela sua namorada a mostrar-se “o cara”. Não sabiam que é daí que nascem as desgraças.
O restante da fila C, a dos 10, começa a me pressionar para falar com o despachante da TAM, afinal sou o primeiro.
Então, solto uma reclamação em voz alta. “Senhor da TAM, em Brasília aconteceu a mesma coisa, aqui também, não há conferência? ”
Ele diz que está fazendo seu trabalho. E que aguardemos o chamado. A energia de insatisfação aumenta. Agora somos os inimigos da fila B, a que anda e continua a crescer.
Tempos depois, eternos, ele chama nossa fila. Passando por ele, na apresentação da documentação, solto uns verbos, substantivos e adjetivos bem negativos. Eu também queria marcar meu lugar de macho. Afinal, era esse o tom de minha fila.
Digo-lhe até que vou fotografar as fileiras iniciais do avião e mandar para a presidência da TAM. Nessa hora olho para trás e vejo olhares de admiração, virei o líder.
A pulseira imaginária já foi para o vaso, com descarga e tudo.
No corredor de acesso, vamos todos criticando a empresa, nós agora o time da fila C.
Então, formamos um corpo solidário. Não precisa dizer que daí o assunto derivou para outras áreas do “jeitinho Brasileiro”. E tome negatividade. Todos tinham uma história para contar, enquanto os da B ia evoluindo naquele pequeno corredor de aceso, para complicar, dois passageiros entraram no voo errado e atrasou o embarque pois eles estavam voltando.
Vou babando de raiva, esperando minha vez de pisar no solo do avião e ver os corredores vazios, que comprovariam minha tese.
Na porta, uma tripulação risonha, sorrisos de cortesia, confesso.
Vomito sobre eles minha rabugice. Destilo toda a insatisfação. Mas, quando miro no avião decepciono-me.
Havia naqueles primeiros 90 lugares (15 filas x 6 lugares), apenas umas 9 pessoas sentadas. Considerando que poderiam ter sido do público prioritário, ou cartões bandeira vermelha, tarifa Gold, era muito pouco. E, mesmo se não fossem daqueles públicos, estava falado de um erro de 10% apenas.
Procuro um chão para me esconder de envergonhado, mas não tem. Aviões não tem chão.
Reabro o livro e volto a estudar. Estou fraco na técnica.
Descubro que estou na etapa de Incompetência Consciente. “A essa altura de nossa jornada, você começou a perceber suas reclamações. Já se tornou consciente de sua incompetência e repara quando reclama. Você agora está no estágio da incompetência Consciente”
Mudo a pulseira imaginária de braço e recomeço a contagem.
No pagamento do estacionamento em Brasília, quero reclamar que o pessoal está invadindo a fila pela área lateral, mas só penso. Bingo.
Volto para casa e no caminho ligo para esposa. A convido-lhe para comermos algo num local próximo. Ela me diz que chegou de um dia puxado com o JG, fora a apresentação do colégio, e ele ainda está abatido com uma virose que pegou e o desarranjou.
Quis reclamar. Contive-me. Ufa. Pulseira no lugar certo ainda.
Ela me diz que se eu quiser parar para jantar que eu fique à vontade. Digo-lhe que um pão com ovo em casa, com a família, vale qualquer jantar. Ela me diz sorrindo que tem pão e ovos em casa.
Ganho pontos. E sigo o trajeto.
Chegando em casa, abraço a família, recebo a lembrança que o JG preparou no colégio para o dia dos pais.
Estralo ovos e pergunto-lhe pelo pão. Ela me mostra uma espécie de empanado. Digo-lhe que aquilo não é pão para colocar ovo. Ela me diz que na geladeira tem. Abro a geladeira e vejo um saco com aqueles minis pães.
Digo-lhe que aquilo não é pão de homem.
Não presta para sanduiche.
Dou uma risada. Ela não sabe de que. Abraço-lhe e peço-lhes desculpas. Mudo a pulseira novamente de lugar. E, como o melhor mini sanduiche de ovos de minha vida. Recomeçando a contagem em 3,2,1!
Estamos tão impregnados de negatividade que precisaríamos transcrever nossos diálogos para perceber o quanto “entramos na onda” e quando nos percebemos já estamos destilando veneno sobre nós mesmos, a vida ou os outros em forma de críticas, reclamações ou até fofocas.
Usar a pulseira nos dá um sensor objetivo para monitorar-nos e remodelarmos nosso modelo mental. Como aqueles relógios marcadores de quantos quilômetros caminhamos e em que tempo. Lembra?
Você deve estar perguntando-se: como posso viver sem reclamar?
O autor do livro nos ensina a trocar reclamações por perguntas, diálogos, empatia e ajuda cooperativa para que as coisas atinjam o que esperam.
Dizendo o que espera, e não reclamando do que não tem.
Tirando delas a carga de negatividade e inserindo no lugar uma carga de positividade contribuindo para o avanço da situação e a superação de impasses.
Outra técnica que ensina é a de acolher mansamente o que ocorre e sublimar, elevando sua sabedoria a outros aspectos da situação.
Sem fazer da mesma uma tempestade, avaliando-a sobre o prisma se de fato compensa tanta exasperação por coisas triviais que acontecem no relacionamento diário.
No meu caso poderia ter trocado a reclamação do pão por uma pergunta. Não tem do pão maior? E com a resposta negativa, contabilizar as sobras, pois ainda teria um pão para saborear com ovo, mesmo pequeno.
Acolhendo a situação e adaptando-me à realidade, reprogramando minha expectativa de um grande sanduiche, afinal o sanduiche era o de menos àquela hora. O que eu precisaria saborear era a beleza do reencontro em família após voltar de uma viagem.
Outra coisa que o livro fala é do fenômeno que aconteceu comigo na fila da conexão.
Convido-lhe para uma viver comigo experiência em psicologia social. Você está jantando com seis amigos, num restaurante esplêndido e de cozinha perfeita, com uma carta de vinhos de tirar o chapéu.
Seus amigos e amigas têm a mesma faixa etária dos 30 anos.
Seu papel, nesse laboratório, será o de viver um personagem que ama o vinho, tem 50 anos, e gosta de gastronomia e viagens. Será você que iniciará a conversa na mesa de amigos, conduzindo o tema para assuntos do tipo: vinhedos, vinhos, viagens inesquecíveis e pessoas belas, boas e virtuosas que conviveu.
Existem mais dois atores à mesa. O papel deles será, após 60 minutos de prosa boa, bela e virtuosa, inserir um tom de reclamação no mote dos diálogos.
Os outros 3 convidados não possuem papel definido.
Então o encontro começou. Você iniciou com o tema vinhos bons. Degustando o vinho que bebia. Todos entraram na “onda’ do bom, belo e virtuoso. Falavam de videiras centenárias, de vinhos que tomaram, de jantares e viagens inesquecíveis. Uma hora depois, os dois outros personagens, previamente preparados, inserem outro tema na prosa.
Um começa dizendo: “É verdade, que vinho bom, no meu tempo de jovem só tomava tubaína. Era muito pobre e duro. Como foi ruim o que passei...”
O outro personagem emenda: “E o meu? Meus pais trabalhavam 12 horas para sustentar a casa, nunca tive uma festa de aniversário. ”
Os três amigos que não foram previamente treinados, embarcaram no tom da prosa. Cada um relatando suas mazelas de infância e juventude. Os dois personagens treinados iam inserindo novos aspectos de reclamações e críticas à conversa. Um deles começou a falar que o vinho em vidros não apropriados perdia qualidade. Todos passaram a olhar para os prosaicos copos de cristal do Paraguai que bebiam aquele vinho e reclamavam. Outro dos treinados inseriu o tema de que quando se alegra sempre pensa, vai durar pouco, algo de ruim virá. Todos começaram a lembrarem-se de fatos assim, quando após períodos de bonança vinha tempestades, e que tempestades.
Mortes, separações, puxadas de tapetes, pessoas ruins, não sobrava nada naquela mesa.
Até que um deles olhou para o primeiro personagem, treinado para ficar calado após 60 minutos, aquele que iniciou o tema com aspectos bons, belos e virtuosos da vida:
“Você ficou calado por que? “
Percebem? Quando começa o campeonato de lamúrias e sentimentos ruins quem dele não participa é tido como um estranho no grupo. Lembra de minha posição na fila. Quando todos atrás de mim reclamavam e eu ficava tentando manter minha pulseira no lugar e segurando o emocional? Eu passei a ser cobrado pelo grupo a explodir, a reagir.
O autor do livro dessa crônica, fala-nos que somos seres de energia emocional e que nos conectamos a energia predominante para que nos harmonizemos a ela. Quando ela entra em choque com nossos valores, nem sempre conseguimos nos harmonizar, e entramos em conflito, nos calamos, ou fugimos. E quase nunca, inserimos um novo tom na prosa.
Então, uma mesa que estabelece um papo negativo irá conduzir esse tema por minutos a fio, até alguém tentar inserir um tema positivo, mas nem sempre com sucesso, o negativo atrai mais facilmente nossas fantasias de perseguição, medo, frustração, pelo cérebro reptiliano que nos ensinou a sobreviver vendo tudo como possível ameaça nos ensinando os padrões de ataque, fuga ou defesa. Uma família idem. Uma empresa idem. Uma comunidade idem.
Escuto o apito final do treino do JG e dou uma pausa nessa crônica que escrevo ao lado de uma pequena árvore, cheia de frutinhos, que atrai todo tipo de pássaros para sua copa, uma bênção.
Pego o JG e vamos nos dirigindo para casa. Ele me pede para brincar na casa dos amigos.
Reclamo que estive fora e que ele deve vim brincar comigo ao chegar em casa.
E emendo, e depois na casa dos vizinhos você vai brincar com os menininhos e esquece a hora, e eu fico berrando e você não me ouve.
Paro de falar. Troco a pulseira do lugar, dou uma gargalhada, JG não entende nada.
E digo-lhe perdi.
Chegando em casa, a sua mamãe o saúda, e ele solta um “Papai perdeu, vai ter que trocar a pulseira do lugar”.
Minha esposa comenta: “Mais que pulseira?
Ele responde: “A da “reclamação”. Eu, penso silenciosamente: gratuita, besta e por coisa pouca...
Se eu trocasse a reclamação por uma pergunta, uma proposta, um convite, ou simplesmente uma constatação tudo setia mais fácil: “JG, estou com saudades e gostaria de passar um tempo maior contigo hoje, pode ser? ”
Simples, mas difícil e muito utópico nos tempos atuais. Eita, reclamei novamente. Trocando a pulseira e recomeçando. rs

Cuidado com o Avatar


Avatar é um personagem que define a sua aparência, o seu perfil, o seu conteúdo de força, de conhecimento, de armas, de estratégias, dentro de um jogo. Então, um avatar é um simulacro, ou alguém que, naquele momento, vai revestir você da capacidade de atuar em um determinado cenário. Ou seja, é um personagem. Um personagem que tem um roteiro, e em cima desse personagem você opera.
O João Gabriel, meu filho de seis anos, vivia pedindo para jogar no meu celular. A gente fica com muito receio de jogo, é uma coisa muito disciplinada lá em casa. Eu prefiro que o João fique andando, brincando com pau, pedra, subindo em árvores... mas chega um momento em que a gente não pode virar um estranho... todo o grupo dele já joga, já tem essas coisinhas, e aí ele já começa a ficar destoando muito. E agora, com seis anos, ele finalmente ganhou um videogame.
E o videogame dele é um daqueles que vem... XBOX 360, e ele vem com um aparelhozinho chamado Kinect, e esse aparelho interage com você. Então ele fotografa, ele lê seus movimentos. Em vários jogos você não precisa operar com o joystick, você opera com seu próprio corpo. Do ponto de vista de perder calorias é ótimo! Tem até jogos de dança, pra você dançar rumba, tem jogos de pular, correr, se abaixar... eu achei um barato esse negócio! Para mim, que sou velho, olhei aquele negócio se mexendo, aquele negócio lendo meu corpo e achei o máximo.
E o João foi lá pra frente para jogar. No jogo você tinha que descer uma corredeira em cima de uma balsa. E ele, com o corpo, ia navegando com a balsa. Bem bacana! O avatar que apareceu para o João foi um jovem, um moleque com o cabelo desgrenhado, e ele se identificou de cara. De cara ele se identificou com o avatar. Então, o João fazia o movimento e na tela era aquele menininho, aquele avatar, que simulava o movimento. Ele levantava a mão, o avatar levantava a mão; ele dava um chute e o avatar dava um chute; ele ia para a esquerda e o avatar ia pra esquerda, como se fosse ele.
Preste atenção nesta frase: “como se fosse ele”. E o João, chegou um momento em que ele disse “papai, vamos jogar?”. E eu, “como é que faz João?”. E ele “fica aqui na frente”. Então ele selecionou lá, dois jogadores, e a maquininha, essa Kinect, esse robozinho começou a me fotografar, como se estivesse me escaneando, e criou meu avatar.
Mas gente, só pelas risadas do João Gabriel, esse jogo já está pago. O João ria, caía no chão. Mangando de mim, mangando. Porque o meu avatar, que o jogo propôs... sim, o jogo propõe. Você pode ignorar, você pode dizer que não quer aquele. O jogo propôs um avatar pra mim: um castor. Um castor, bem pançudo, bem gordinho. Então primeiro: não era uma pessoa, era um bicho. Era um bicho buchudo... rsrs... um castor! Eu me identifiquei logo de cara com aquele bucho e com aqueles dedos, eu tenho dois dedos aqui na frente, e um vai em cima do outro.
Então brincando né, eu assumi aquele castor, e desci a corredeira, e coisa e tal, e depois eu fui descansar e fiquei pensando: “meu Deus, qual o perigo de a gente acreditar no que acham que a gente é? Qual o perigo da gente acreditar nos avatares?” Vejam: os avatares com os quais a gente se identifica, como o menininho lá do João, e esses avatares que não fazem tanto sentido, como o castorzinho do Ricardim. Esse perigo é a gente passar a viver uma vida em função de um personagem. Então, em primeiro lugar, o caso do João, que era um personagem bacana né, atribuído pelo jogo para ele, descolado e tal. Mas aquele era o João mesmo? Todos os dias o João estava naquele personagem? Cabelo transado, roupa transada? Não tem dias que o João vai se sentir deslocado? Não vai bater aquele personagem?
Então quando nos é atribuído um personagem e ficamos reféns dele, o primeiro que vai para o saco é a nossa identidade. O segundo é a nossa capacidade de mudar, porque a gente vai ficando escravo ao personagem, refém do personagem. Então de repente, na família, você vive o personagem rabugento. Todo mundo começa a lhe associar como o rabugento da família. Olha o perigo desse avatar! Seu avatar é o do rabugento, aquele que está sempre do mal. Ou alguém colocou outro avatar, como aquelas galinhas d’angola que ficam dizendo “tô fraco, tô fraco, tô fraco”... você é o fraco. O que não consegue tocar nenhum projeto até o final, não consegue terminar nada. Então, a família, os amigos, as instituições onde você convive, lhe atribuíram esse personagem.
E você aceitou. Você aceita e diz para você mesmo “tô fraco, tô fraco...” Eu sou essa avatar. O avatar da fraqueza. O outro avatar: a vítima. Você é vitima das circunstâncias, você é vítima dos outros, e se brincar, você é vítima até de si mesmo. Muito cuidado! Muito cuidado! Porque quando você prega em você este carimbo, bate este carimbo deste avatar, deste personagem, e passa a jogar o jogo da vida com base nele, você perde uma imensa oportunidade de se autoconhecer, de revisar padrões de comportamento, crescer, mudar, e ser melhor como pessoa. Porque você acomodou seu avatar, você disse “eu não mudo, é só isso mesmo”. “Eu sou rabugento”, e até bate no peito, “eu sou rabugento mesmo, todo mundo sabe, quem quiser que me aguente assim”. Ou eu sou cri cri, sou crítico, sou assim, desde pequeno. Vira quase que um sobrenome. Fulano, Sicrano, o crítico. Fulano, Sicrano, o rabugento, o negativo... Não queira. Não queira.
Eu tinha uma funcionária, que todo o grupo chamava ela de brava. “Você é muito brava, você é muito brava!” E ela dava risada, dizia “eu sou assim mesmo”. Ela ria. Ela era brava com cliente, era brava com os colegas, tinha dia que chegava, nossa... dava coice. E aí, eu a chamei num cantinho e disse “não queira isso pra você”. E ela “o quê?” E eu disse “não queira que as pessoas te identifiquem como brava, porque embora eles estejam brincando, e você não seja essa pessoa que eles estão falando, só em alguns momentos que eu acho que você é mais severa do que o restante do grupo. Mas se você aceitar este avatar, este personagem, este papel, passivamente, sem operar sobre ele, ele vai virar um estereótipo, vai virar uma marca sua. E vai dificultar sua ascensão”.
Porque na medida em que você vai subindo na cadeia alimentar da hierarquia das organizações mais vai sendo requerido de você dos aspectos emocionais, inteligência emocional, e menos de inteligência técnica, dos aspectos técnicos. Você vai sendo chamado cada vez mais a ser maestro, líder, catalisador, mobilizador de pessoas, harmonizador, articulador, negociador, do que técnico que opera um processo, um sistema, que defende uma ideia aguerridamente, que acha que aquela ideia dele é a mais certa.
“Então, esse seu avatar de bruta vai correr à frente de você, e as pessoas vão lembrar disso em processos seletivos futuros”. Pronto, mudou. Eu me lembro que tinha uma outra pessoa que trabalhava como ascensorista. Na época tinha ascensorista de elevador, aquela senhorinha que ficava lá... hoje em dia os elevadores são quase todos automáticos. Mas antigamente, se você não é desse tempo, tinha uma pessoa que operava o elevador. Então ela botava o andar e você subia. Então o papel dela era botar o andar ali e você subir com ela. Aí, eu trabalhava no quarto andar da agência Campina Grande. O quarto andar era onde funcionava o setor de recuperação de dívidas. Então era um andar interno, raramente um cliente ia para lá, porque a gente trabalhava com dossiês e processos e mandava para a agência para fazer os acertos. A agência era no terceiro andar. Mas quando subia algum cliente para o quarto andar era algum documento que ele ia entregar, alguma assinatura que faltou, era alguma excepcionalidade ou um caso mais grave, que não dava para atender no terceiro andar. Geralmente um casos em que a gente iria buscar na justiça uma última negociação com o cliente, antes de reivindicar o bem que ele deixou em garantia de um empréstimo.
Então o cliente chegava arrasado no quarto andar. Eu dizia que no quarto andar, quando entrava um cliente ele entrava carregando o peso da frustração de não ter conseguido lograr êxito num empreendimento, para o qual virou um financiamento. A ascensorista, o avatar dela em todo o prédio era “raivosa”. Não tem aqueles sete anões? O dela, que o grupo deu a definição, era a zangada. Então todo mundo sabia “não, ela é assim mesmo, ela é zangada, mas não morde não”. Beleza. Um belo dia ela me pegou também zangado nesse dia. Eu entrei, dei bom dia, ela não olhou pra mim, eu disse “quarto andar”, ela apertou o número, não olhou pra mim, e ela tava lendo alguma coisa da revista da Avon e continuou lendo até em cima. Eu fui trabalhar com aquilo ali, invocado, invocado.
Aí passei um tempo assim, e falei “sabe duma coisa, agora eu vou descer, eu vou falar uma coisinha para aquela senhora sobre atendimento”. Aí pedi, quarto andar, o carro chegou, a senhora, como era de costume, mais uma vez não olhou pra mim, não era o feitio dela, e eu disse “subsolo”. Então nessa agência eram quatro andares e ainda tinha o subsolo onde era o estacionamento, o subsolo, onde guardávamos nossos carros. Eu queria mais tempo com ela. E o carro foi descendo, pro subsolo, não foi parando em canto nenhum porque ela sabia que era subsolo, e as pessoas geralmente pedem do térreo para o primeiro, do segundo para o terceiro, e eu disse pra ela “a senhora sabia o que é o quarto andar?”. Ela olhou pra mim, a primeira vez que ela olhou em anos, “não”. Eu disse “o quarto andar é a antessala do inferno. As pessoas que a senhora traz para o quarto andar estão sofrendo, porque elas vão perder algum tipo de bem por algum empréstimo. Os funcionários que trabalham no quarto andar, eles também tem o seu nível de sofrer, porque eles passam dias analisando operações de crédito que não deram certo. Eles também não gostam de ver que o cliente não conseguiu lograr êxito num empreendimento. Então quando a senhora pedir, quando alguém pedir no seu carro de elevador para ir para o quarto andar, dê o sorriso mais bonito. Dê o bom dia mais feliz, porque a única boa que ele vai ter, na entrada e na saída do prédio, quando ele pedir para vir pro quarto andar, seja ele funcionário, seja ele cliente, é o seu abraço, o seu bom dia, o seu olhar doce e de esperança”.
Eu não sei se ela já pensava aquilo, eu não sei se alguém já tinha dito aquilo dela, esta senhora gente, mudou. Também não sei se fui eu que falei, não sei ela já vinha trabalhando... não sei. A mudança foi perceptível, perceptível. E tinha uma pessoa que operava, quase todos os dias ele ia ao quarto andar, porque ele tinha muitas dívidas e estava negociando quais os bens que seriam primeiro leiloados, até para ele não fechar o negócio dele, não era interessante para ninguém.
Eu vim para Brasília, depois dessa conversa com ela, meses depois eu vim para Brasília em 1997, passei oito meses em Brasília, voltei, estava em um projeto, voltei, eu só vim definitivamente em 1999, e quando eu volto eu pergunto “ei, o que que houve? Cadê a zangada?”. Veja aí, como é o avatar? Oito meses depois e eu ainda me referia à moça “cadê a zangada?”. E os colegas “não soube não, Ricardim?”, e eu “não, o que houve? Foi demitida?”. Viu aí a segunda? a expectativa de alguém que aceita um avatar assim? E eu digo “não, não senti que foi demitida não, ela não foi demitida não.” Ela recebeu a proposta de outro emprego. E eu digo “foi mesmo?”. Aí eu já fiquei surpreso. Foi, ela recebeu a proposta, um daqueles clientes, por questões éticas eu não vou revelar o nome neste áudio, um daqueles clientes que iam muito no nosso andar começou a estabelecer um diálogo com ela, inclusive ela nos dá testemunho do quanto ele se sentia acolhido quando pedia para ir ao nosso andar. Recebia dela sempre um “bom dia”, palavras de esperança, até versículos da bíblia ela selecionou e mandou para ele, entregou para ele. E ele estava precisando de uma secretária. Ele não podia mais pagar a anterior, porque ele quebrou, mas ele precisava de uma pessoa para anotar recados e para tocar o que restou da empresa dele, do lado dele. E que aceitasse ganhar, sei lá, 50% a menos de que o outro, mas mais do que o trabalho dela como ascensorista. E ele a convidou. E eu digo, “que bacana, meu Pai”. “Que bacana, meu Pai!”.
Então gente, a crônica de hoje é para a gente nunca aceitar avatar, de espécie nenhuma. A gente pode até dizer papéis, sim, a gente em algum momento pode estar vivendo o papel de zangado, de rabugento, de nervoso, pode, pode. Em algum momento da vida a gente pode acordar assim, como a gente diz lá no nordeste, com a pá virada. Mas são momentos tá? São momentos, são ciclos, não são definitivos. Eu não sou isso, eu estou isso. Então, qualquer que seja o avatar pode lhe aprisionar numa amálgama, numa gaiola. Cuidado, cuidado! Cuidado para você, nesta gaiola, não começar a representar um papel que não é o seu, é o papel do outro, que o outro projetou sobre você, e você aceitou esse papel passivamente, sem operar sobre ele, sem se transformar... isso é assumir outros papéis, outros avatares. Mas, sempre, em mudança, em evolução, porque não existe para o ser humano aquela história “pau que nasce torto morre torto”, não existe. O ser humano pode, através da educação, através do relacionamento com o outro, através da força do amor, da força da espiritualidade... ele muda. Muda sempre.
Então mude e procure outros avatares que ajudem a construir um mundo melhor, uma sociedade melhor, o avatar do justo, esse é um avatar digno de por ele ser vivido. O justo. O pacificador, esse é um avatar bacana. O pacificador. O solidário. Ô avatar lindo! O solidário. Ô palavra linda. O jardineiro de pessoas. Olha que bacana! Você cultiva relações. Então procure avatares com valores universais, valores da vida, que esses aí não precisam mudar não. Esses aí vão dar suporte. Agora, toda vez que você olhar para a televisão da vida, para o jogo da vida, e nele você ouvir das pessoas que você é um castor barrigudo, ou seja, um animal, aprenda com aquilo, reflita, procure razões, calce as sandálias de quem falou aquilo, até que ponto será que a pessoa não está ferida, você não a magoou, até que ponto o seu comportamento não gerou nessa pessoa esta percepção, até que ponto você precisa mudar, mas não se limite a este avatar. Não deixe que as pessoas lhe diminuam. Não deixe que as pessoas lhe humilhem, lhe oprimam, colem em você um preconceito, um apelido lhe xinguem, pratiquem a palavra da moda – bullying – com você. Ou assédio. Você não é esse barrigudo, dentuço, castor. Isso é como alguns lhe veem. Mas você não se veja assim. Se veja muito diferente disso. Se veja para além do barrigão. Se veja com amorosidade, com respeito a você mesmo, com auto estima, com consideração. Tire de você qualquer sentimento de comigeração, ou vitimização. Não se acomode ao que acham de você e você acabou acreditando. “Ah, aquele ali nunca vai amar, aquele ali nasceu para as noitadas, para as baladas, não vai ser feliz com ninguém”. Mentira! Vai ser feliz sim, você não é este avatar do pegador, do fútil, do que não consegue se vincular a alguém com sinceridade, não! Você pode até ter tido cenas na sua vida nas quais você representou este papel. Mas se você quiser mudar, se essa força interior de transformação for ativada por você, você muda sim. E você vai se tornar o cara mais confiável do mundo para uma relação a dois. O mais amigo, o mais bondoso, o mais generoso. Você sai deste papel de pegador, de fútil, de gente que só quer uma noite de transa e no outro dia nem um telefonema, ou quando dá um telefonema é só para dizer “foi bom e até logo”. Não tem gente que tem este avatar? “Ah, comigo não vou ser feliz nunca com ninguém, porque eu não consigo me relacionar”. Consegue, consegue.
Mas a primeira coisa que você tem que fazer é operar sobre esse “eu não vou ser feliz com ninguém”. Cuidado, com esses rótulos, cuidado com esses carimbos existenciais. Porque eles operam. Eu tenho uma tese ainda não comprovada, que algumas pessoas que tem sobrenomes bacanas, sobrenomes que associam a valores, em algum momento se sentiam presas a eles, a vida delas é diferente, elas vão corresponder à expectativa daquele sobrenome. Imagine uma pessoa, e eu já conheci um, chamado Edgar Amoroso. Olha que lindo! Eu suspeito, que durante toda a vida dele, tanto ele ouviu gracejo, como ele procurou pautar os relacionamentos, as atitudes dele pela amorosidade. Porque quando ele saía da linha, sempre tinha um sacana que dizia “cadê o amoroso? cadê o amoroso? virou raivoso foi?”. Então, eu estou trazendo esse exemplo, é uma tese não comprovada, eu estudo isso, o efeito do sobrenome, valorativo ou desvalorativo... eu conheço um amigo, Você deve conhecer algum sobrenome que fala algum tipo de valor, substantivo, de adjetivo. Patrícia Poeta. Você imagina o quanto essa menina começou a poetizar a vida, porque a expectativa social na representação do nome dela é de poesia.
Então, se até o nome, coisa simples, pode alterar nosso comportamento, imagine coisas que foram dizendo de você ao longo dos relacionamentos e você foi aceitando como verdades, como fatos concebíveis. Então hoje, o tema é avatar. Avatares são papéis. Papéis nós vivemos durante nossa vida. Papel de pai, de trabalhador, de vizinho, de sócio de alguma agremiação, são papéis. Até aí tudo bem. Cuidado com estereótipos que os papéis podem carregar consigo. E cuidado com os rótulos. Será que em cima do seu nome, quando as pessoas falam, elas não imaginam caladinhas um rótulo? Você é o Beltrano, mas por dentro delas elas dizem, o crítico. Você é Sicrano mas por dentro delas elas dizem o chato, o que só vive murmurando, o rabugento, o falso, o mentiroso, o grande eloquente, o orgulhoso, o pavão, o urubu, o que dá coice em todo mundo, o que não tem juízo, cuidado. Aprenda, não aceite e mude, mude para melhor. E alguns avatares que colocaram em você, mesmo do bem, também cuidado. Cuidado para não ser besta. Cuidado para não ser usado, manipulado. Beltrano, o servidor. Ótimo ser servidor, eu daria a vida para ganhar um avatar desse. Mas teria muito cuidado também para não passar a ser explorado. É o troca lâmpada, é o que é servil, cuida de todo mundo, ajuda todo mundo, serve a todo mundo ao extremo, e esquece da família dele, esquece dele, porque só está disponível para o outro, para as instituições, para quem procura ajuda. Esquece de construir em casa a sua própria família, e esquece até de ter tempo para ele mesmo... a agenda e tão...
Este “ele” de quem eu estou falando sou eu, gente. Sou eu. Meu primeiro casamento, uma das causas de ter estragado, uma das, teve várias, mas uma delas é porque minha agenda de serviço era de segunda a domingo. Reunião, reunião, reunião, pastoral, pastoral, pastoral, crisma, catequese, grupo de apoio à vida, hospital, reunião, reunião, reunião, voluntário... então eu era o avatar Ricardo servidor. Só que eu me acostumei com esse avatar, gostei dele, recebi estímulos dele, e esqueci outros avatares. Ricardo pai, Ricardo marido, Ricardo um ser de alta consciência que pode, naquela noite, ao invés de estar em mil projetos de serviço, pode estar cuidando dele mesmo, pode estar brincando, se entretendo, fazendo lazer, lendo, percebe? Então, o risco existe junto, assim como um remédio, entre a dose está o veneno ou a cura. Cabe a cada um da gente saber quais os papéis que a gente está vivendo, quais os que devem ser reforçados, mantidos, quais os que devem ser ajustada a dose, para menos ou para mais, e quais aqueles que estão na hora da gente rir da televisão, ao invés de deixar o Kinect zombar comigo, que eu sou um castor gordinho, quando aparecer a opção “trocar o avatar”, eu vou dizer “troca esse avatar sim, não quero isso não. Não quero essa brincadeira não. Não quero, porque brincadeira, que a princípio é uma brincadeira, ela pode trazer consigo comportamentos culturais ou valores que podem diminuir, dificultar o meu crescimento como pessoa humana, porque eu vou começar a me aceitar como esta pessoa, deste avatar. Então não aceitem nada que lhes limitem. Não aceitem nada que lhe diminua. Não aceitem nada que lhe aprisionem em gaiolas imaginárias vindas das palavras, que as palavras vestem as ideias e as palavras podem criar algemas ou asas. Não queria avatar de algemas, queira de asas.
Ps. Obrigado Anna Luiza pela tão consistente transcrição dessa áudio-crônica.

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