Saudade, é arrumar o quarto de quem partiu!



Quando terminei a aula a distancia, pelo meio dia, escutei um barulho vindo do quarto de papai e para lá me conduzi.
Vi que minha irmã, mãe, filha e a Guia "derrubaram" o guarda-roupa de papai no chão e estavam selecionando e classificando os seus pertences para doação. 
Montanhas de camisas sociais que ele nunca usou. Papai gostava mesmo era de uma camisa do BB que dei pra ele, e que tinha a expressão ECOA (Equipes de Comunicação e Autodesenvolvimento). 
Calças bonitas, que ainda tinha cheiro de carro zero, pois que ele se afeiçoava com bermudas mais confortáveis. 
Um monte de celulares que ao longo da  vida fomos dando para ele. E que os guardava com carinho, mas sem usá-los. Ele gostava mesmo era de um bem velhinho. Daqueles que se o ladrão roubar de nós, vamos levar um cascudo, porque é muito antigo e não tem câmera, nem outros recursos mais sofisticados. 
Papai era da face, e não do Face.
No maleiro, ele guardava seus tesouros. Era lugar sagrado, só ele mexia.
Em cada um deles, há papai.
Todos as lembranças de nossas conquistas ali estavam guardadas, tal qual relíquias. Aquela caneca da formatura do Rodrigo. Aquelas fotos dos netos. Ou a aquela primeira agenda que Tiago recebeu de onde trabalha, na CEF.
As caixinhas de ferramentas estavam todas lá. Daquelas que damos nos dias dos pais. Estojos multivariados, com um infinidades de chavinhas. Todas ali, guardadas qual joias raras. 
Ferramentas, montadas naqueles estojos, é a cara de papai.
Sapatos quase nenhum. 
Todos se perguntavam onde estavam. E sorríamos, um sorrir de saudades e elevo na alma, pois sabíamos que ele os doava. 
Papai era das sandálias havaianas. Não era homem de guardar sapatos. 
Mais ao fundo do baú, muitos convites pra nossos bons momentos: batizados, formaturas, casamentos.
Que tesouro! Confesso-lhes que muitos de nós não tem mais aquelas memórias, por ele guardadas com tanto esmero.
Meu tesouro foi o relógio de pulso de papai, tão ele. 
Minha irmã pergunta de uma bela mala de ferramentas, daquelas estilosas. Ele a ganhou no dia dos pais, deste ano. Lembro-me dele, ainda consciente, abraçado com ela e saboreando cada uma das mais de cem peças que ali continha. 
E por vários dias. 
A levarei para o meu filho, o Resolvedor de Problemas, o Rodrigo. Ferramentas combinam com ele.  
Aos poucos, as meninas foram organizando as doações, de modo que todos puderam ficar com algo que lembrasse papai. Ou, que ainda tivesse muita serventia.
Até um notebook achamos, e que vai ficar com a Guia. Para ajudar nas tarefas de seu sobrinho, e nas postagens das vitórias da Raposa (Campinense). Time que ela tanto gosta. 
Acho que papai deu boas risadas lá do céu, vendo nossos comentários com as coisas que ele se apegou e guardou em lugar nobre de seu guarda-roupa. Ou, as que nunca usou, por não combinarem com seu etilo de vida, como as rupas sociais e seus adereços.
Aos poucos, uma sensação de vazio foi nos tomando. Como se agora fosse verdade mesmo.
Afinal, quem teria coragem de mexer em suas coisas antes?
Carreguei o carro com três malas e me dirigi pra casa de Tio Naldo.
Ali chegando, nos abraçamos e choramos mais uma vez.
Tio Naldo olhava para cada item com ternura, sem cobiça. Coube a ele receber boa parte das roupas novas.
Mais o que ele gostou mesmo foram dos DVDs e CDs de papai. Guardados numa caixa de papelão.
Verdadeiras relíquias musicais. 
Acho que conheci um pouco mais de meu pai pelo que ele guardou. 
Arrumar o quarto do amado que partiu é entrar no templo da saudade, e ali fazer seus ritos de fechamento de ciclos.
É preciso e necessário passar por este momento. 
Enquanto digito este texto, pelas seis da manhã, escuto mamãe me chamar. Ela tem exames médicos cedinho, quer que eu a leve na clínica. Sendo isto, para ela, mais uma prova de que a vida continua, aos que por aqui pelejam.
No trajeto, ela me mostra a aliança de papai, que dará para minha irmã. Uma aliança com sessenta anos de história.
Na volta da sala dos exames, mamãe me conta que quase não dormiu ontem, embalada por lágrimas.
Respiro fundo e digo que é direito dela, chorar. Para que ela não apresse o rio do sofrer. Ele tem seu próprio fluir e tempo.
Ligo o carro, para voltarmos, e percebo que estacionei ao lado de Craibeira - toda vestida de amarelo, que nos saúda. É uma árvore irmã gêmea do ipê que talvez esteja nos dizendo que após a arrumação do quarto físico, agora chega o tempo de começar a arrumar o quarto interior. Que ficou todo desmantelado. Uma arrumação geral, peça à peça, emocionalmente falando. E, dia à dia.
Sem temer se conectar com a saudade e as boas lembranças, além de espantar esvoaçantes culpas, que vez por outros teimam em querer pousar nos galhos do coração.

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