Psicologia Positiva e as Amarras de Gulliver

Percorrendo uma exposição de trabalhos escolares, da escola de meu filho, parei numa instalação artística baseada no livro de Jonathan Swift - As Viagens de Gulliver.

Ela representava uma cena clássica desse livro que foi a prisão de Gulliver, na ilha de Lilliput.
Gulliver tinha escapado de um naufrágio, nadando até aquela ilha. E, muito cansado pelo esforço, adormeceu na praia.

Ao acordar, sentiu-se imobilizado por centenas de finos barbantes, colocados pelo Lilliputeanos - pessoas minúsculas, com 15 cm de altura, que habitavam aquela ilha.

Por um tempo, por estar triste ao rememorar perdas recentes, por sentir-se muito cansado, e por não entender a situação que se apresentava – olhando atônito para pessoas minúsculas ao seu redor, assumiu uma posição de desamparo, que lhe sabotava as forças, e que o aprisionava na própria situação, sem oferecer uma resposta à ela.

Quem de nós nunca esteve preso em Lilliput que desate a primeira amarra!

Têm momentos em nosso viver que nos sentimos assim: desamparados. É quando a roda viva da vida gira, e muda tudo de lugar. Quando o carrossel do destino nos pega de jeito, alterando cursos e formas de ação.

E, gigante que somos em relação ao que, ou a quem nos aprisiona, ainda assim não conseguimos reagir, entrando num processo de letargia comportamental. É que a sucessão de acontecimentos, difíceis de digerir, esgotaram nossa capacidade de resposta.

Sentir-se desamparado ao vivenciar momentos assim, de luto, de enfrentamento de situações delicadas, daquelas que parece que estamos num beco sem saída, faz parte também da boa saúde mental.

Engana-se quem pensa que a vida é feita apenas de dias de céu azul. Passar por dias cinzentos faz parte do processo de viver. E, não se passa por momentos assim, em estado de júbilo e felicidade explícita. Momentos de silêncio interior, de quando a alma pede colo e cafuné.

E, descansá-la um pouco, deitado na praia, faz parte do reinventar-se.

Mas, um belo dia percebemos que as amarras não exercem sobre nós tanto poder, como outrora exerceram. Ou, que o medo do desconhecido, já não nos paralisa como dantes, embora ainda amedronte.
E que, aquilo, ou quem nos aprisionava não é mais forte o bastante para deter-nos, na fecunda força da esperança, que nos faz renascer.

E, rompemos os finos cordões que nos amarram, e botamos para correr as pessoinhas minúsculas que tanto nos atemorizaram.

Erguemo-nos das areias de Lilliput não mais os mesmos.

Agora, revestidos de uma imensa força interior, sentimo-nos potentes novamente para enfrentar velhas e novas batalhas de, e do, ser.

As pessoinhas minúsculas e as suas amarras medíocres não nos venceram. Não derrotaram o gigante que vive em nós.

Reerguemos-nos confiantes e olhamos novamente para imensidão do oceano azul como crianças que contemplam parques de diversão.

Não, não fomos feitos para morrer na praia. Então, saudosos dos mares repletos de instantes de liberdade e autonomia do ser, consertamos nosso barco, remendamos toscas velas, e estamos prontos e confiantes e para recomeçar, erguendo as âncoras de nosso ser que teimavam nos aprisionar em amarras que não mais fazem sentido.

Cientistas comportamentais da psicologia positiva entrevistaram pessoas que se reergueram da "praia de Lilliput" e descobriram algumas práticas que elas adotaram que ajudam a quem se sente como Gulliver deitado na areia, ainda sem forças para se reerguer.  Vejamos quais são:

A primeira delas é a postura de garimpeiro de coisas boas, belas ou virtuosas. Essas pessoas fizeram para si mesmas um firme propósito de enumerar diariamente as coisas boas. belas e virtuosas que viam, que faziam, ou que faziam para elas.  Havia uma intencionalidade nelas que altera a modulação do processamento cerebral, expandindo as fronteiras do pensamento seletivo negativo, para áreas mais positivas. Por exemplo, essas pessoas quando submetidas ao estresse de ter que se submeter a sessões de hemodiálise, pelo resto da vida, procuravam destacar as coisas boas que ainda havia naquela situação, como as amizades que faziam, ou o uso do tempo para leitura. Outros, sob as amarras de Lilliput, só viam naquelas sessões coisas ruins.

A segunda delas é a de pescador de gratidões. Não se trata de gratidão como uma emoção. Mas, como uma prática que após ser sentida, precisa ser expressada. Como se com o material da gratidão se tecesse uma bela arte, pela qual vale a pena se viver. Essas pessoas expressavam suas gratidões ou face a face, para pessoas por elas reconhecidas, ou em suas preces. Elas procuravam nos registros narrativos de suas vidas, enfatizar o momentos pelos quais eram gratas, no lugar de destacar as ingratidões pelo qual passaram. A gratidão ativa consegue romper muitas amarras de Lilliput, mas é um comportamento que rareia nos tempos presentes, nos quais as pessoas sempre se acham merecedoras de tudo, portanto, nada por elas é percebido como sendo uma dádiva, uma bênção. Voltando para o caso das sessões de hemodiálise, essas pessoas expressavam sua gratidão pelo cuidado que estavam recebendo dos profissionais de saúde, e por aqueles que em casa mantinham as coisas funcionando em sua ausência, e até pelos que deixavam-nas nos hospitais e depois iam pegá-las. Elas tinhas as retinas do coração abertas para perceberem as dádivas acontecendo, apesar de seus pesares.

E a terceira delas, muito presente nas pessoas que se reerguem dos tombos da vida, se reinventam a partir deles, ou lidam com eles de forma mais eficaz, é a de cultivador de emoções positivas. No jardim do coração dessas pessoas, há canteiros semeados, adubados e irrigados, periodicamente, com práticas de doação ao outro, práticas de bondade, práticas de paz, de otimismo e de esperança. Elas não adubam, nem molham, os canteiros das mágoas, invejas, ódios e ressentimentos. Deixam-lhes sem condições de crescimento. viço. Ao contrário, elas dedicam-se a uma causa, ou em tornar a vida das pessoas, ou do lugar por onde passam melhor, com a sua presença. Voltando ao exemplo das sessões de hemodiálise, elas são do tipo que levam um bolo, no aniversário da enfermeira que lhes atendem.

Garimpar coisas boas que acontecem na vida; pescar gratidões e cultivar emoções positivas é o segredo dos que conseguiram romper as amarras que lhes aprisionavam, ao lidar com os reveses do viver.

Cartas ao JG - Quando a falta da falta fará falta. (Autor Ricardo de Faria Barros)


Teu grito de alegria, de decibel ensurdecedor, ecoou por aquela manhã de domingo.
Você abria o último pacote de figurinhas do álbum da Copa do Mundo 2018 que lhe comprei, e tirou o "time da Espanha".
Numa enxurrada de felicidade, dizia para todos, "agora só faltam 3 para eu completar o time da  Espanha."   Veja a foto que cliquei, no exato momento em que tu fecha os olhos de alegria, e depois sai correndo feliz pelo jardim da casa do tio Guga.
Por um instante. todos passamos a colecionar figurinha contigo.  Lembramos dos dias quando saíamos com nossos refugos (repetidas) à caça de trocas para eles.
Ou, quando selecionávamos as repetidas mais fáceis, para a disputa no jogo bafo. Pura emoção e risco, no qual se usa uma das palmas das mãos, para tentar desvirar figurinhas colocadas num monte, apenas batendo sobre elas.  Tentando, desesperadamente, fazer algum tipo de vácuo para lhes virar, e ganhá-las como troféu.
Você me contou que seus colegas de classe já completaram o álbum.  Logo em seguida em dando a dica de como eles conseguiram aquela proeza,
"Pai, têm umas bancas de revistas que vendem todos os números que faltam.  É só levar a lista a lá.  Assim completarei logo as mais de 200 que me faltam".
Olhei para ti com olhos de compaixão e amor. Vou te explicar de que se faz uma vida boa, pensei!
Pensei comigo, pobres pais, estão tirando o aprendizado da frustração, da negociação, da espera, dos limites, da busca cobiçada por algo, do desejo de conseguir fechar uma página, ao menos, antecipando-lhes o gozo dos filhos, e de uma vez.
Qual deles viveria a minha emoção ao te ver gritando, no último dos pacotes, que tirou o time da Espanha?
E qual de seus filhos viveria a alegria que tu viveu, a ponto de sair correndo pelo gramado, de tão feliz que ficou?
É só pagar R$ 1,00 (um real) e ali está a figura do  time da Espanha. Mas, o teu cromo da Espanha é diferente do de teus amigos.
Tu sempre que olhar para ele vai se lembrar daquele domingo, e do quanto ficou feliz. Vai se lembrar dos dias de espera, a cada semana para ganhar dez pacotinhos, vai se lembrar do quanto precioso vão sendo as conquistas que irá fazendo.
Nenhuma delas ofertadas de mão beijada. Todas fruto de paciência, frustrações, e até conquistas, em torcas com teus amiguinhos, ou no bafo.
O que é dado não damos valor.
Sabe filho, tem um pássaro azul e preto que habita a copa da árvore, que margeia a janela de meu quarto. Já tentei muito fazer a foto dele. É um pássaro lindo e que nunca tinha visto por estas bandas.
Hoje, nos vasos da jardineira das flores que cultivo, ele veio brincar.
Fiquei petrificado diante de tanta beleza.  A máquina fotográfica, que já deixo no ponto para fotografá-lo, estava na sala. Então, ao me mexer para usar o celular, ele se foi.
Mas, não tem nada não. Um dia eu documento ele. Tenho alterado meus hábitos para tentar essa foto.  Até digitar na cama de casal estou digitando, coisa que não gosto de fazer.  Nesse momento a máquina está armada com minha melhor lente, e botei até uma farofa de milho na terra das floreiras, na espera que ele venha comer.
Isso tudo que faço me dá um grande sentido, uma orientação de valor.  Se alguém me dissesse que tem desse pássaro no zoológico, prontinho para minha foto, eu não iria lá bater.
Eu quero este que habita minha extensão do lar, a varanda das copas. Vivo com ele uma relação de enamoramento, daquelas que cuidamos de conquistar o enamorado, em jogos de encantamento. Nem som eu escuto, e olha que sou musical, para que ele não se assuste e não pouse por aqui.
Percebe filho meu, que para alcançar meu sonho eu preciso dedicação, disciplina, esforço, e saber sofrer as esperas do tempo.
Na vida, tudo quer vier em forma de almoço grátis, não gerará em ti a alegria da conquista, tal qual a carta do time espanhol.  Fuja de almoços grátis.  e desconfie de quem chega fácil na janelinha, sem esforço algum. Em breve, a vida poderá perder o sentido para ele. Pois, não teve que lutar por nada, tudo lhe foi dado.
Engraçado que nesse mesmo domingo, ao sair para te ver, havia no para-brisas de meu carro tinha esse folheto da foto, que anunciava os serviços para "solucionar difíceis ou impossíveis problemas", com "trabalho garantido".
Seria cruel se isto fosse verdade. Onde estraria nosso esforço para solucionar os problemas da vida? Onde entraria nossas crises, angústias, lutos, momentos de sofrimento existencial,  por não termos o que queremos, por quebra de expectativas, por não ver nossas ambições e necessidades atendidas?
E, filho meu, a vida também é feita de dias cinzentos. Dias de aperto no coração, daquelas que achamos que um pássaro fez cocô em nossa cabeça.
Já pensou se não passássemos por eles?  Nos tornaríamos orgulhosos, arrogantes, prepotentes, e ocos. Vazios por dentro.
Não filho meu. Na vida não existem bancas de revista para tu antecipar os esforços, e conquistar facilmente o prêmio do álbum completo.
Nem existem soluções fantasiosas, pretensamente místicas, para todos teus males. Alguns deles, tu terá que purgar em ti mesmo, e o melhor laxante para eles é o tempo.
Mas, garanto-lhe, tu sairá mais forte, e mais feliz quem sabe, ao se sentir corajoso de ter atravessado aqueles dias ruins, sem ter desanimado. Nem procurado atalhos fáceis, mas perigosos, de encontrar o que precisa.
Usando de métodos ilícitos tu pode até antecipar conquistas, mas nunca saberá de fato o que é o sabor da vitória. que só quem ralou para conseguir algo sabe do que falo.
Quando eu fizer essa foto, ela será a foto. Sei dos dias que montei plantão nessa cama, tentando pegá-lo almoçando flores. Sei do quanto ele é especial, nesta visita diária que me faz. Mas, seu eu não tiver a máquina preparada, com bateria e cartão de memória a postos, e com a lente certa, isto não passará de um capricho, de uma intenção abestada de teu pai.
Mas, ao deixar tudo pronto, como não estava a pouco, eu saio da intenção para a possibilidade.
E o infinito conspira favoravelmente com semeadores de possibilidades.
Sabe filho, estamos criando uma geração que não está vivendo momentos de frustração, de limites, de esforço. Tudo lhes está sendo entregue de bandeja.
E, quando chegam ao mercado de trabalho, acham que as coisas ali são assim também.
Que não precisam bater metas, aprender novas competências, entregarem resultados de excelência, tudo isso com muita dedicação e esforço. Querem o prato feito, e a menor decepção, desistem de jogar o jogo da vida real.
Foram filhos de pais ansiosos que não cobraram deles esforço, para alcançar objetivos, por medo de que eles sofressem. Pais que se infantilizaram, e deram-lhes tudo, achando que com isso estavam amando os filhos.
Não queria esse caminho para ti.  Estude com afinco para as provas. Mesmo que não tire uma nota boa, foi a nota que teu estudo conseguiu alcançar. Não cole, nem compre facilidades. Isto tira de tu o melhor aprendizado que a vida nos fornece, e de graça, o da auto estima. Que só a coragem e a ousadia de ser nós mesmos proporciona.
Na vida, haverá sempre as partes que lhe faltam.  Seja figuras do álbum. Seja uma promoção almejada. Seja um chefe mais legal. Seja um trabalho menos cansativo. Seja um professor que de fato ensine. Seja um amor que lhe complete. Seja um bem material que deseja muito. Seja até a saúde, em algumas ocasiões.
Aprenda, que é na falta que nos mexemos para algo. É a falta que nos mobiliza ao avançar. E, o avançar exigirá comprometimento, disciplina e dedicação tuas, e de mais ninguém.
Não adianta terceirizar a busca por completar tuas faltas. O negócio será sempre contigo mesmo.
Mas, não tema as partes que lhes falta.
São elas que mobilizarão em ti a força do desejo. E, sem ser um ser desejante, tornamos-nos autômatos de nossa existência.  Precisamos repetir sempre: "Eu tenho um sonho!"
Precisamos de sonhos, pois são eles quem nos dão asas.    Mas, enquanto os perseguimos, não podemos querer queimar etapas, antecipar gozos, situações, ou agendas.  Sofrendo pela falta que faz o sonho não conquistado.
Não é o que nos falta quem nos arruinará. É perder de vista o que ainda temos, e valorizar aquilo, enquanto juntamos forças para conquistas as três figurinhas restantes do time da Espanha.  Tu me entende?
Não foque sua felicidade, apenas na busca pela três que lhes falta. Embora as persiga. Foque também nas 17 que já conseguiu.
Este é o segredo da felicidade de quem corre atrás das partes que lhes falta. Eles, enquanto correm, se esforçam, treinam, se dedicam, aprenderam a celebrar as que já têm, de forma agradecida.
O anúncio diz que dá garantia.
Eu te dou a minha também.
Garanto-lhe que tudo que lhe faltar e que venha a conquistar pelo fruto de teu esforço, produzirá em ti memórias afetivas de muita felicidade.
E te capacitarão para outras buscas, desenvolvendo em ti a ousadia e coragem de enfrentar os monstros do amanhã, ao desafiar os limites do impossível, que habitam nas fronteiras de nossos pensamentos.

E por alguns segundos a vida balançou. (Autor Ricardo de Faria Barros)

Era como se uma onda lenta e mansinha passasse por sob mim, e meu apartamento estivesse numa boia de mar.
Naqueles poucos segundos, conectei-me a uma força enorme, vinda das profundezas da terra, que com magnitude 4,0 atingiu Brasília em ondas sísmicas, oriundas de um terremoto na Bolívia.
O lustre da sala tremeu, como que a me saudar.
Estava no sexto e último andar de um prédio da SQS 205 Sul, em Brasília, e digitava um texto sobre a importância da liberdade, quando fui tomado dessa súbita emoção. Na hora pensei que estava tendo um desmaio, segurei-me na mesa. Depois, vi que o lustre da sala estava tremendo,e as janelas estavam fechadas, afinal chovia fininho.
Era um tremor de terra, pensei. Ou uma forte ventania. Fiquei uma fração de segundo imóvel, com medo do que viria a seguir.
Posso nunca ter visto um vulcão, ou os flocos da neve, ou até mesmo a beleza de uma geleira... mas das forças da natureza senti o balanço da terra, aos meus pés.
Naqueles segundos, confesso-lhes que não me veio a mente arrependimentos a arrepender, nem velhas mágoas não resolvidas, e ainda rendendo na poupança do coração.
Só me veio um único temor, partir sem dizer que amava aos meus. Mas, como tinha estado com eles recentemente, estava tudo ok.
Refeito do cagaço, liguei para a portaria e o Cláudio me disse que muitos desceram correndo as escadas, e por ali estavam.
Decidi ficar em casa mesmo. Botei um cafezinho pra fazer, uma boa música na radiola, e continuei o texto que escrevia, sobre as prisões que acabamos nos metendo na vida.
Um texto de uma mãe que voltava para a cadeia, vítima de uma uma prisão injusta por uma calúnia e armação, após os dias de Páscoa que passou com seu filho de 9 anos, cortava meu coração. Como a liberdade é um bem tão precioso, principalmente quando se lhes priva o amor.
Um outro relato de um pai, sobre as besteiras que seu filho anda fazendo, pelo excesso de álcool que vem consumindo, quase que diariamente, emocionava-me. Aquela luta daquele pai, do alto de seus 75 anos, para resgatar seu filho é um manifesto à liberdade.
Isto sim são terremotos. Terremotos emocionais que levam toda a família a estremecer junto.
Quem tem um(a) amado(a) preso, fica um pouco preso também.
Quem tem um(a) amado(a) doente pelo vício, acaba adoecendo um pouco também.
Botei uma xícara de café, e fui esperar um possível novo abalo vendo as plantinhas da varanda do quarto.
Eis que um beija-flor aproxima-se e beija as flores violetas que crio na sacada.
Ele nem reparou em minha presença, nem tampouco das prisões a que eu evocava, e num show de bater de asas mirava seu bico para cada vulva daquelas florzinhas, beijando-as com prazer e alegria.
Entregues ao momento estavam aquela flor e aquele pássaro. Um completava o outro.
Esqueci os tremores, esqueci as injustiças dos Homens da lei, esqueci a besteria de arruinar a vida com drogas, acordando pior do que ontem, e a cada amanhã, e deixei aquele passarinho entrar em meu ser.
Ele rodopiava. Ora mirava nas florzinhas que estavam mais abaixo da copa da plantinha. Ora nas que estavam ao lado. Ora nas que estavam acima.
Nenhuma delas ficou sem seu beijo de amor, que desafiava a natureza das coisas, dos dias, das pessoas e dos corações.
Creio que esse beija-flor que cumpre sua missão, de ao se alimentar polinizar florezinhas pelo beijo, é a expressão da maior liberdade a que possamos almejar.
Creio firmemente que ser livre é amar. Uma mãe que ama seu filho, ao dele se despedir para voltar às celas, não está presa.
Um pai que chora por seu filho que não consegue vencer o álcool, não está preso a esta sina e saga.
O amor que eles expressam é o mesmo do beija-flor, que alheio aos tremores nas árvores, prédios e pessoas, aquele que assustou a tantos naquela manhã, continuava sendo belo e grande.
O amor não nos deixa desistir diante dos tremores que a vida nos dá.
O amor nos impulsiona ao impossível, nos torna imortais, nos faz depositar nosso melhor pólen naquele que é o sujeito de nosso amor.
Como aprendi com meu pequeno JG, o amor nos torna lendários, no sentido de eternizar raros momentos, tais quais as cartas lendárias de seu álbum de figurinhas.
Temos uma força enorme dentro de nós que nos impulsiona ao outro, em todas as formas de amor, inclusive na solidária empatia junto aos mais necessitados.
Falei de dois relatos de prisão que tive, nesse final de semana, e da liberdade do amor de seus envolvidos.
Também tive um relato que muito me comoveu nessa Páscoa, finalizando essa tríade a que compartilho.
Meu sobrinho, o Artur, aluno de medicina, participou de uma missão, no estilo Médicos Sem Fronteiras, numa cidadezinha do Tocantins.
Ele veio diretamente da rodoviária, para o almoço de Páscoa do domingo, recém-chegado dessa missão.
E nos contava o que puderam fazer junto às populações muito carentes e humildes. Cada caso que resolviam, era motivo de orgulho para todos aqueles voluntários, tão jovens.
Mas, cheios de idealismo, de amor ao próximo, de vontade de fazerem com esse mundo algo melhor do que com ele encontraram.
Todas as formas de amor, e de amar, são expansão de nós mesmos.
São libertadoras.
Desafiam o impossível.
Criam possibilidades.
Confrontam a natureza das coisas a que muitos teima em acreditar que: "são como são, não mudam".
Quem ama revoluciona ambientes, pessoas, destinos e a si mesmo.
Elas são fontes de propósito.
E, este talvez seja este o maior apelo da Páscoa: lutar pela libertação dos cativos, e com a força do amor. Não desanimar da missão de beijar as flores, de esperançar outras vidas em pólens vadios, mesmo em meio aos tremores do arriscoso e fecundo processos de existir.

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