Perceba o bom, o belo e virtuoso entre nós. (Autor Ricardo de Faria Barros)

Acordei cedinho, após uma madrugada de muita chuva, daquelas com raios e trovões. Uma tempestade caiu aqui em Sobradinho-DF, e aquela manhã de domingo acordou encharcada.
O nome da cidade foi originário de duas casinhas de João de Barro erguidas sobre um  cruzeiro, erguido às margens de um ribeirão. O lugar então ficou conhecido como Sobradinho do Mirante, e com a fundação do DF, na década de sessenta, passou a se chamar Sobradinho.

Mesmo com tempo úmido e chuvoso resolvi ir na Feira do Padre. O nome foi originário do Pe. Jonas, administrador de Sobradinho-DF, que em 1979 mobilizou pequenos produtores para criarem a feira livre deles, retirando-os das mãos dos atravessadores, ou grandes lojas de varejo, que geralmente determinam  o preço e exploram os pequenos produtores da agricultura familiar.

Considero as feiras livres um lugar terapêutico.  Uma pesquisa (1) do CDS e UFPE, confirma minha intuição:  40% dos frequentadores afirmam que uma das razões pelas quais visitam a feira é pela amizade que fazem com os agricultores que ali comercializam seus produtos, em rústicas instalações.

Bem, então me espreguicei e, mesmo com o tempo molhado, resolvi sair em busca de amizades. Era dia de cultivar vínculos sociais, afetivos, cordiais e de respeito mútuo.

Começo a zanzar pelos corredores curtindo aquele burburinho típico de feira livre e vendo a variedade de produtos. Numa das banquinhas num anúncio o vendedor diz que tem um motor de opala, e em bom estado, para vender. rsrs

Gosto disso. Àquela hora da manhã as bancas de pastel, tapioca, caldo e café estão apinhadas de gente. E aquele aroma de café, passado na hora, inebria a todos, como se fosse um aroma de casa da vovó, aquele cheirinho misturado ao de terra molhada faz de tudo renovação.

Vejo uma fruta estranha, rosácea, e logo puxo assunto com seu produtor, o Sr. André. Ele me diz que ela se chama Pitaya, e dá num cacto, como se fosse a flor do cacto que se transforma em fruto. Sr. André fica todo orgulhoso de meu interesse na fruta, e me diz que trouxe uma mudinhas dos cactos, e aponta para local onde as deixou. Vou lá, fotografo, volto e ele fica feliz em falar de seu roçado de Pitaya. Com suas mais de cem mudas. Ele é o único que as têm, e é frutinha metida à besta de cara, sendo vendida em Brasília de 15 a 20 reais, uma fruta apenas. Ele vende por 8, e faz 2 por 15. Pechinchei três frutas e ele deixou por R$ 20,00. Feira livre sem pechincha é supermercado. Num presta.
Quando as Pitayas estavam posando para uma foto, junto ao seu dono, um grito e um som seco de um tombo na banca ao lado.

E é uma correira só, para acudir um feirante que desmaiou. Seu corpo estava rígido, muitos faziam-lhe massagem no peito, outro abanavam o rosto, outros ainda opinavam em puxar-lhe a língua para fora. Ele não reagia.

A sua mãe, cabelinhos brancos (80), gritava pelo filho (55) para que ele acordasse. Uma rede de solidariedade se fez presente. O filho do produtor da Pitaya correu até uma viatura da polícia para acionar o SAMU. Uma outra feirante, socorria aquela mãe desesperada, dando-lhe água, abraço, palavras de esperança e cuidados. Ela dizia que ele não tinha bebido nada, que estava bonzinho e que viera dirigindo o velho carro deles, do sítio até a feira. E que aquilo nunca tinha ocorrido antes. O clima de tensão no ar era enorme. Mas, lentamente, o feirante foi recobrando a consciência, se mexendo, e abrindo os olhos. E o povo aplaudiu. Muitos choravam. Ele não estava morto. As pessoas não deixavam que ele se levantasse, visto que bateu a cabeça no chão, ao cair,e conversavam com ele para que se acalmasse, pois os médicos estavam chegando. Acho que foi uma convulsão. A sua mãe dizia pra todos que ele nunca tivera nada parecido. Para alívio de todos, as enfermeiras do Samu chegaram, fizeram os primeiros socorros, e levaram-nos: mãe e filho, ao hospital mais próximo.

Um enorme silêncio se fez, quando ele saiu na maca, acompanhando por sua mãe a segurá-lo às mãos. Quanto amor!

Por uns 20 minutos, da queda até o socorro, eu testemunhei o melhor que existe na raça Homo Sapiens. Não havia curiosos fazendo self, fotografando ou só buscando uma notícia para suas redes sociais. Todos ali estavam querendo ajudar de alguma forma. Um deles abanava com a mãos o rosto do senhor caído no chão, para que moscas não pousassem nele. Um amigo deles, um cliente, assumiu o cuidado com a banca, mesmo sem saber os preços, ele garantia a segurança dos poucos itens expostos numa tosca tábua: umas dúzias de cocadas, de todas as cores, uns 4 litros de leite em garrafas, duas pencas de bananas e um bolo. Eram os produtos da senhorinha e seu filho.

Após o Samu levá-los, e ainda em choque, fui agradecer à feirante do lado pelo que ela fez à senhorinha, dando-lhe colo e afago. Ela me disse que poderia ser a mãe dela, e que precisava apoiá-la, mesmo fechando sua barraca ao possíveis atendimentos que poderia ter, e por um bom tempo.
Nossa Senhora!, quanta doação ao outro. O cliente que assumiu a barraca perguntou ao da Pitaya se ele cuidaria das coisas da vizinha, ao que ele afirmou com um "Sim, é claro!", do tamanho do infinito, e o cliente seguiu caminho.

Saí zanzando à caça de café e tapioca, para recobrar-me do susto e de tanta emoção que vivera. Na barraca da cearense, a melhor tapioqueira do pedaço, sentei-me num banquinho e, mastigando aquela iguaria, pensei em como a vida é finita. De como somos breves demais para sermos mesquinhos em nossas jornadas.

Continuei caçando amizades e achei o Sr. Beto, produtor de castanha de Baru. Uma figura de pessoa. Sabe tudo sobre o Baru e em sua propriedade rural, em Minas, tem muitos pés. Ele vai na roça a cada quinze dias, pois é longe, e traz de la de um tudo. Ao seu lado, fiel escudeiro, o Sr. José, seu caseiro. Sr. José é um daqueles velhinhos retirados dos contos de Monteiro Lobato, tipo uma Dona Benta.

Logo fiz amizade com ele, pois o Sr. André estava muito ocupado com a fila de gente querendo as cobiçadas castanhas de Baru, boas pra tudo, segundo ele e um jornal que fez cópia e distribuia.
      
Sr. José contou-me que trabalha para ele há muitos anos, e que são amigos. Que tem sua rocinha também, ao lado da do Sr. André. E que nela preserva os bichos do cerrado. Conversa com eles e educa os sitiantes vizinhos para não o matarem. "Pois temos nossa própria comida, pra quer matar esses bichinhos de Deus, tão raros e sofridos para comê-los?".

E me mostra um artefato de madeira que usa par pescar. Disse-me que fe aquele para um cliente que vem buscá-lo. José me contou que atrás de sua casa, aqui em Sobradinho, corre um pequeno ribeirão.
E que ele todos os dias pesca uns peixinhos, embora não goste de peixe e não coma. Ele me contou que na sua casa sempre tem um peixe fresco para um pedinte necessitado. E que é comum que pessoas batam á sua porta perguntando se tem algum lambari para doar.

Uauu!!!

Então ele pegou no bolso umas sementes e me contou que fará mudas para o Sr. André. "Foi uma frutinha que um cliente me deu, que achei doce e gostosa, e que guardei as sementes para fazermos mudas e levarmos para Minas. Plantarei uma na minha roça e outra na do patrão. Meu maior gosto é fazer mudas, fiz mais de 50 de ipês, e plantei em nossas propriedades. Quando eu morrer, as pessoas vão ver os ipês e se lembrarão de mim. Eu quero deixar algo meu naquela terra. Deixarei frutas e flores... "

Disfarcei uma tossida e escondi uma lágrima vadia que teimava em cair. Pedi licença da prosa, peguei meu Baru, e segui pra comprar pastel.

Resolvi comprar dois, um para mim e outro para o José. Enquanto era preparado, uma menininha me aborda, vendendo numa caixinha uns quinze chocolates tipo Baton. Perguntei-lhe quanto era o estoque, e o arremetei. Disse-lhe que poderia ficar com a mercadoria vendida, e que agora ela fosse para casa brincar. Ela deveria ter uns 12 anos. Não fiz nada. Quem fez algo foi Sr. José, o cliente da vovozinha que acudiu a banca, o filho de Sr. André que correu na polícia, e a feirante do lado que socorreu uma mãe desesperada. Eu estava retribuindo a generosidade que testemunhara, apenas isso.

Voltei e dei o pastel ao Sr. José, e ele fez uma festa com aquilo. Fiquei pensando, há quanto tempo Sr. José não come um pastel!

Após uma hora de zanzar pela feira, voltei para barraca do acidente de cedo, para colher notícias, e a vovozinha está lá, no seu posto, assumindo as vendas.

Que força! Quem de nós voltaria às vendas após um turbilhão emocional destes?  ela voltou. Ela precisava vender aquelas cocadas, bananas e leites. Era o apurado da semana, e com o filho sob observação de 24 horas, ela poderia precisar de dinheiro.

Fiquei um pedaço conversando com ela. Na saída, deixei-lhe uma quantia para ajudar a fazer o lucro das vendas que ela não realizou. Ela não queria receber. Eu insisti, e disse-lhe que poderia ser útil ao para medicação do filho. Aí ela abriu um sorriso e disse: "aí tá certo, assim eu aceito."  Não sabe ela que eu só estava remunerando a overdose de amor que ela me deu, naquela manhã.

Saí da feira com o coração cheio de emoções positivas. E segui caminho em busca de uma loja para colocar uma película no meu celular, que insiste em cair no chão e quebrar.  No balcão da loja um bolod e chocolate e uma coca-cola. Perguntei ao Alisson, atendente prestativo, quem aniversariava. Ele falou: "vocês, nossos clientes. O refri e bolo é para vocês, pdoe servir.". Aproveitei e tomei um copod e coca-cola. Alisson avaliou os estragos do quebrado, como a perícia de um cirurgião. Perguntou-me se queria investir um pouco mais do que os R$ 10,00 e colocar uma de película de resina, de R$ 25,00, que ele iria cortá-la até ficar boa. E, por uns bons 15 minutos, ele foi moldando a película, como um artesão Depois, colocou-lhe no aparelho e eu vi que ficou excelente. Não mais precisaria trocar o visor, que custa uma fortuna. Qualquer outro atendente diria que não havia maneira, visto os estragos do vidro. Alisson não!
Ele não era qualquer um, ele faz a diferença com o seu trabalho.

Bateu vontade de tomar uma cerveja e petiscar e fui no Restaurante Diamante Negro, próximo a Igreja dos Migrantes, um lugar com comida e bebidas a preço justo e de excelente qualidade. Na chegada os garçons me saúdam, pois já nos conhecemos, e soltam um: "Paraíba, adivinha o que temos hoje?". Nem acreditei no que via, eram costelinhas de bode, um manjar.

Fiz um pratinho, peguei uma cerva gelada, e sentei-me na varanda, degustando tudo que vivera naquela manhã. E olhando feliz para meu celular renovado. Aí o cozinheiro me aborda com pedaços de pernil de carneiro, que acabara de tirar do forno. E me diz: "É para o senhor, não precisa pesar..."

Mais uma vez, aquela lagriminha rebelde insiste em se fazer presente. Voltei para casa pensando em como existem pessoas boas, safrejando no roçado da humanidade.  Nessa imensa feira livre em que vivemos, que é só se especializar em catar gente que presta que as acharemos,e  aos montes, e todas elas podem ser nossas mestras na arte da vida e do bem viver.

Escrevo nessa segunda bonita, deliciando-me com um cafezinho passado na hora, presente de pessoa amada que meu lar e vida mudar de fase: Sim, agora temos café. 

O whatsapp apita, mensagem nova, é de mamãe. Dando-me instruções para comprar uma plantinha para ela, e levá-la para Campina Grande-PB, no final do ano. "Rico, é uma bougainvíllea branca e dobrada, mande foto quando achar para eu ver se é ela mesma." rsrs

Agora vou ali, comprar uma plantinha para mamãe. Chegará um tempo em que desejarei ardentemente que uma mensagem como essa apite em meu celular novamente.


(1) O Papel Econômico e Social da Feira do Padre

O show não pode parar (Por Ricardo de Faria Barros)

Era manhã de sexta e fazia frio. No horizonte, a neblina da manhã chuvosa teimava em desafiar o sol que sobre ela se deitava. Olhei-me no espelho e os cabelos espevitados, de uma pré-careca ao centro, pediam para serem aparados. Lembrei-me que era dia da Feira da Lua, e que precisava comprar pimenta de cheiro, para uma moqueca domingueira. Embora se chame de Feira da Lua, ela abre pelas 6hrs da manhã, da sexta, e só fecha na madrugada do sábado.

Na noite da sexta, o espaço é disputado por muitas barracas de comilança e shows. Durante o dia, é um sortimento só, daqueles de encher os olhos. É peixe fresco, pescado na hora, dentro de enormes caixas de água, é honesta linguiça de porco defumada, e é todo tipo de hortifrutigranjeiro. A feira funciona ao lado do Estádio de Sobradinho-DF.
Parei no estacionamento dela, olhei-me no espelho e estava estragado, com os cabelos centrais bem rebeldes. Então, perguntei a um guardador de carro se tinha barbeiro próximo. Ele apontou para um, por trás da rodoviária, e segui para lá, "de pés" mesmo.

Cortei o pelo e voltei à caça da tal pimenta de cheiro. E eis que me deparo com uma cena de tirar o fôlego, daquelas que ao vermos não conseguimos mais fazer nada de nada, para o tempo!
Perfilados estavam uns 20 velhinhos, embaixo de um toldo, cada um deles com um instrumento musical de percussão na mão.
Pensei, vai ter show!
E teve, e daqueles de ganhar um óscar.
Eles são asilados do Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes, aqui de Sobradinho-DF, e era o dia da apresentação do seu grupo musical.
No meio deles circulavam voluntários, que não deixavam a música sair do ritmo, e estimulavam o mais sem jeito tocador a fazer seu próprio som, sem se preocupar se estava correto.
O importante era participar da atividade.
E que atividade!
Tirar aquelas senhorinhas e senhorinhos do asilo em que vivem, num dia tão frio, mas proporcionar-lhes aqueles momentos de tanto calor, pela inclusão cidadã e vacina contra a morte social, era algo de emocionar a mais pedra dos corações.

Pena que os clientes da feira livre estavam ocupados demais, para pararem um pouco ali e prestigiarem o espetáculo.

Cada um deles, à sua maneira, estava desafiando o destino das coisas, ao tocar seu instrumento e continuar sentindo-se ativo.

Cada um deles estava criando algo para além de suas vidas esquecidas, num canto qualquer. Agora eram artistas de rua, disputando a atenção dos clientes, com o melhor que eles tinham, a força da sua idade que desafia a vontade de parar.

Tinha o que batia o bombo, que ralhou com o monitor-voluntário: "Deixe eu fazer do meu jeito, não reclame comigo". Que lindo.
Tinha a vovozinha do pandeiro, que não parava nunca de agitá-lo, era a mais animada do grupo.
Tinha o vovozinho que precisou de uma ajuda com seu instrumento de percussão, ao que uma jovem voluntária pegou em sua mão e deu a ela a maestria de um músico profissional.
E ele agradeceu com um sorriso escancarado. Como quem dizia: "nossa, era só fazer assim!"

Acho que uma boa ideia era botar cadeiras e improvisar um tipo de palco. E trazer um monte de gente, inclusive eu, para sentir tanta vida saindo de pessoas que foram deixadas para trás naquele asilo, e que mesmo assim, nãos e deixaram ficar para trás.

Escrevo emocionado imaginando o que deve estarem comentando nessa noite, após o jantar, sobre o show que deram.
Alguns deles devem estar ensaiando para a próxima sexta. Será que tem toda sexta?
Outros, devem estar perguntando como faz para aprender determinado instrumento, como o pandeiro da vovozinha, que só ela usava.
O monitor-voluntário, o cantor e tocador de violão, deve estar com eles, comemorando o feito. E ouvindo de alguns que estava muito frio, mas que conseguiram. De fato.
Aquele grupo, de octogenários para cima, teria mil razões para não fazer o show nessa manhã. Mas, ele não se deixou abater pelo desânimo, até pela falta de quem lhes aplaudissem.
Eles estavam juntos se divertindo, e não deixando que o fantástico show da vida parasse de acontecer nas suas jornadas peregrinas.

Bem cedo, eles tomaram uma decisão, não ficariam em seus quartos esperando o dia de amanhã raiar. Eles raiariam o dia de hoje, com sua presença no mundo, levando música a um lugar que se eles ali não estivessem, ela não teria acontecido.

Após umas quatro músicas, dei pequena gratificação muito menor do que a que deles recebi, e parti em busca da pimenta dedo de moça.

Não achei, mas eu ia reclamar de que mesmo?

Cartas ao JG. Na dor, vá para a margem (Parte 2). A Disparada da Despedida (Autor Ricardo de Faria Barros)

Sabe filho, uma coisa que tenho aprendido é a ler os sinais do que a vida que me falar, nem sempre de forma tão clara.
É preciso ir juntando uma peça ali, outra acolá, é preciso estar sintonizado na frequência dos sentimentos e pensamentos mais nobres e perceber a fala da vida, sobre determinada situação que enfrenta.
A condição para essa escuta é desacelerar o ritmo, permitindo-se navegar lentamente, beirando a margem, para que a dor do momento, o luto, ou uma forte decepção não lhe turve as vistas, e faça com que você se perca de si mesmo.

Na margem, ficamos com a percepção seletiva aguçada, para nos ler, nos autoconhecer melhor, mapear o que nos ocorre e juntar evidências para tomar decisões.

Ontem foi um dia assim. Tudo começou quando dirigia para me despedir de Duquesa, e no caminho conversei com o veterinário. E ele me disse que Duquesa não poderia ser sacrificada, na manhã de ontem, pois que tua mãe decidira enterrá-la no jardim. Confesso-lhe que fiquei puto de raiva, uma vez que a minha decisão - após muito estudo e sofrimento, eu já tomara. E era para que o próprio veterinário desse fim a ao corpo dela. Então, para esclarecer melhor a situação, eu liguei para tua mãe que confirmou a informação dizendo que o jardineiro Jackson iria hoje (18.11.2017), abrir uma cova no jardim. (Evidência 1)

Então, retornei o telefonema para o veterinário, reprogramando o procedimento para a esta amanhã.
Continuei dirigindo para tua casa, com o firme propósito de me despedir da Duquesa. E o trânsito estava infernal, naquela sexta de tempestade aqui no DF, e eu levei 90 minutos de Sobradinho e até próximo à São Sebastião, onde mora.
No trajeto, tua mãe ligou dizendo que pessoas amigas do trabalho dela falaram que já existe tratamento par essa doença. Eu disse-lhe que conhecia e que o preço era exorbitante, e que não recuperaria as lesões que ela já sofrera, nos rins e fígado. (Evidência 2)

Cheguei na tua casa e marquei o lugar da cova, perto do meu pé de umbu. Desci ao pomar e passe um bom tempo acariciando Duquesa, num processo de despedida bem doloroso, mas necessário para fechamento de ciclos. Em determinado momento me distraí, ao ver o quão bonito está a Lichia, carregada de frutos, e ao olhar para o gramado novamente, só vejo o Balu, o nosso velho e gordo labrador.
Chamo por Duquesa e nada dela. Subo a escada externa, em direção ao pavimento superior, e ela também não está a garagem. Ergo a vista e a vejo na garagem da casa da frente, e de lá ela balança o rabo para mim. Chamo-lhe e ela vem correndo, toda alegre, como quem sabe que fez uma peraltice. Ralho com ela e ela volta para o pomar e canil, descendo as escadas qual foguete. Duquesa nunc fez isso. O portão fica sempre aberto. Subir para a plataforma superior é algo impensável para ela que foi condicionada a ficar sempre no pomar. Ela nunca fez aquilo. (Evidência 3). Era como se ela dissesse para mim: “ei, eu estou bem, olha como corro, sei fazer até a disparada da despedida”.

Saio de tua casa, com a cabeça a mil, visto que aquela cena fora muito forte para mim. E sigo para meu lugar predileto de esfriamento de cabeça, qualquer um dos parques do DF. Opto pelo Parque Nacional de Brasília, chamado de água mineral. Ao começar a caminhar pelas suas trilhas, olho para o céu, e um coração de amor se faz presente, olhando das nuvens para mim. (Evidência 4).

À tardinha, voltando para casa após pegá-lo na escola, Mariana, amiga de papai e filha de Ari e Sylvia, meus compadres, manda uma das tantas mensagens de apoio que papai recebeu, após publicar tua Carta, de ontem. Aí eu gravo um áudio para ela, relatando como foi a despedida, inclusive a fugida para rua da Duquesa, ao que ela me responde assim: “Poderia ser triste a história, mas o amor como você fala dela é lindo! Foi a disparada da despedida. Que ela continue feliz e lindona...” Ela usou o verbo no presente, percebe? (Evidência 5)

À noite, meu filho diz que um grupo de criadores e veterinários, ao saberem de minha história, aceitaram tratar de Duquesa e adotá-la. (Evidência 6).

Aí, entro em sites relacionados ao tema e descubro que há 3 anos chegou no Brasil o único medicamento que elimina a doença do animal, chamado de Milteforan. Descubro também que o cão infectado não transmite pela saliva, pelos ou pele, ou em mordidas, lambidas ou contato físico essa doença, o que livrará você de pegá-la (Evidência 7). Continuo a fuçar em sites de criadores, ONGS de proteção aos animais, e até em clínicas veterinárias, e vejo que a opção da eutanásia é uma questão de saúde pública, não pela doença em si, mas pelo alto custo do tratamento. Coisa que afasta a população mais pobre dessa opção, o que é uma pena. O tratamento custa algo em torno de R$ 5.000,00 considerando as duas aplicações do remédio, as colheitas e rações especiais.

Após essas sete evidências sinto que a vida está me falando algo. Saio da margem, volto ao leito do rio, e decido tratar a Duquesa. Bancar o custo e não carregar a culpa de não ter tentado. Quem ama admira, cuida e protege. E eu a amo.
Abro a janela do apartamento e sinto vindo em minha direção uma aromatizada brisa Aracati que me diz: “não temas voltar ao curso do rio de teu viver, eu segurarei em tuas mãos, pode sair de minha margem e voltar a navegar: corajoso e em paz.”.

Um sentimento bom invade meu ser. Envio mensagem para o veterinário cancelando o procedimento da eutanásia de Duquesa. Entro no Mercado Livre atrás de remédio mais barato, e sinto que estou fazendo a coisa certa, mesmo abrindo mão de uma quantia razoável, que poderia a outas coisas ser destinada. Tem nada não, o que gastarei é muito mais barato do que o peso em minha consciência.

O que quero te ensinar com isso? Na margem, quando estiver vivendo processo de luto, ou de angústia, pelo que te ocorre, aprenda a ler os sinais da vida.
No deserto da navegação pela margem de eu viver, aprenda a ser compreender melhor, a se conhecer, a interpretar os pequenos toques, e nada diretos, que a vida via te dando. Pois, você precisará tomar decisões, até para voltar a navegar pelo leito do rio de teu viver. Pois que ninguém é feliz andando só pela margem da vida. Por melhor que seja a tua margem, como as minhas são, elas não poderão devolver o sentido da vida a ti. Só você poderá fazer isso, pagando o preço pelas suas escolhas e decisões.

E estando pronto para voar novamente, abrindo as asas de si mesmo, despindo-se de todo medo, culpa e sentimentos ruins que em ti foram se fixando.

Ao retornar para o curso do rio de teu viver, veja que ao teu lado voa uma borboleta azul, aquela mesma que quando tu estava na margem insistia em lhe dizer que o que o amanhã será melhor, e que aquilo que vivia também passaria. Agradeça a ela. E aprenda com ela. 

Borboletas azuis quando estão pousadas nos troncos, não são azuis. Elas são marrons, da cor dos troncos. Fazem isso para sobreviver, criando um mimetismo com o ambiente. O tronco é a margem delas. Mas, quando saem para polinizar esperanças, abrindo as suas asas, um azul cintilante irrompe de seu interior, clareando os mais nublados dos dias teus. Quem tem uma na vida, tem bênção e graça, e em abundância.

E, geralmente elas são nossas margens. Aprenda a valorizar e a ser grato a quem de ti cuidou quando esteve sofrendo. E, um dia retribua, e cem por um. Devolvendo aos outros, quando for margem para eles, em dobro, o que a vida lhe deu, em forma de proteção, amor e respeito. “Tudo que tu quiser tentar é o mais importante. Amanhã o sol vai brilhar.” Mensagem de minha margem, que serve para tu, e em todos os momentos nos quais decidirá retornar ao centro do leito do rio de teu viver, voltando a ser o próprio protagonista de tua jornada.

Aprenda a ler os sinais do que a vida está querendo lhe falar. Algumas vezes, até gritando-lhe para que tome consciência e mude algo que está lhe fazendo infeliz.

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JG = João Gabriel, meu quarto filho, hoje com 8 anos.

Cartas ao JG. Na dor, vá para a margem! (Autor Ricardo de Faria Barros)


Sabe filho, quando você estiver passando por um processo difícil, vá para as margens do rio de tua vida.

Eu aprendi isso com os comandantes das embarcações que chegam, ou partem, de Iquitos que é  considerada a capital da Amazônia Peruana.

Iquitos é a maior cidade do mundo, com seus quase 500.000 habitantes, que não se pode chegar nela por terra: só por ar e água.

Então, o Rio Amazônia vira a BR principal para chegar à Iquitos, que fica à sua margem.  Dependendo de onde os barcos saem, eles subirão o Amazonas, ou descerão.

E, o maior cuidado dos marinheiros é não bater em troncos flutuantes, ou errar o caminho, entrando nos enormes afluentes de Nanay e Itaya, que desaguam no Amazonas.

A viagem leva em média 8 dias, tempo suficiente para se pensar muito na vida.

Pois bem, quando as condições do clima pioram, com chuvas torrenciais e neblina, dificultando a navegação, pela pouca visibilidade à frente, os comandantes tomam uma drástica decisão.

Eles reduzem ao máximo a potência, e dirigem suas embarcações para bem próximo das margens do Amazonas, e seguem mirando nela, que funcionará como uma guia.

Quando você tiver sofrendo muito, passando por um aperreio grande, vá para as margens de tua vida.

Diminua a potência, e siga sua jornada, apoiando-se na na margem.

Hoje eu fui para a margem. Tomei a decisão de sacrificar Duquesa, que contrariou Leishmaniose. A orientação sanitária é para sacrificar, pois o mosquito pode picar nela e infectar humanos.

Duquesa é minha amiga, aquela que me muita companhia no Recanto do Guerreiro. Eu estou sentindo muito.  E fui para a margem.

Na margem eu me fortaleço, para encarar a realidade de não mais acariciá-la, quando ia te pegar.

Na minha margem existe a espiritualidade, existe um amor de cuidado e admiração, existe meus filhos, irmãos e pais, ou seja, minha família.

Na minha margem, existem amigos fieis.  Daqueles que falamos a mesma coisa, como disco repetido, e eles ouvem como se fosse a primeira vez.

Na margem eu acolho minha dor, compreendo-me no sofrer e não me apresso para voltar ao centro do rio de minha vida.

Na dor, procure suas margens. Eu posso ser uma delas, conte comigo.

Ser margem é exercitar o dom de acolher o outro. De apenas abraçá-lo e deixá-lo aninhar-se no seu peito.

Ser margem é não parar de acreditar que aquele barco, da pessoa amada que em ti se conectou, logo voltará a navegar, e em melhores condições, assim que o mau tempo passar.

Ser margem é não apressar o rio. É ter paciência com o lento desabrochar para a vida, novamente, da pessoa amada. Estando 100% presente, mas evitando fazer a travessia por ele, pois não funcionará.

Ser margem é reduzir a ansiedade de ver a pessoa amada melhor, pois isso só a fará sentir-se pior ainda.

Ser margem é semear esperanças que dias melhores virão, e que "isso também passará". E para isso não precisa dizer nada àquele que em tua margem procurar uma guia, seja apenas amor. E o amor nem sempre pede palavras. 

Filho meu, quando tudo estiver difícil à sua frente. Quando as coisas estiverem sem um horizonte, cobertas pela neblina ou temporal, vá para a margem.

Ali, reduza a potência de seus motores existenciais, mas não ancore. Siga devagarinho, em direção à Iquitos.

Devagarinho, um dia de cada vez, sem querer apressar a libertação da dor e luto.
E se aceitando, não tão mais disposto como antes do temporal existencial que fechou caminhos em teu viver.

E chore!  Não banque o forte. O luto precisa de angústia. E a angústia precisa de tempo de maturação.

Cuidado para não se perder, entrando nos afluentes do Amazônia. Quando estamos tristes e vivendo processo de luto é bom não tomar decisões precipitadas, nem procurar falsas ajudas. Esses atalhos só farão você se perder de si mesmo, e será mais difícil retornar ao curso do rio de tua vida.

Na dor, cuidado com os falsos oráculos, as receitas mágicas, as coisas que aparentemente te farão esquecê-la, mas que ao passar o efeito delas, a dor virá mais forte ainda.

Portanto, não anestesie tua dor.  E, cresça na dor. É filho meu, a dor nos aquebranta, nos faz mais humildes, humanos, mais gente.  Ninguém supera um momento de dor, sofrimento ou luto, saindo da mesma forma.

Quando essa pessoa volta a leito do rio, de seu viver, está bem mais forte. Quem já sofreu e superou sabe do que falo.

Serei tua margem, mas tu terá muitas outras. Talvez uma namorada do tipo brisa aracati, ou a rara borboleta azul, para te dar forças. Caso tua margem não seja pessoa amada, ainda assim tu poderá botar os joelhos no chão e pedir a paz, Ele não te faltará!

Agora, papai vai se recolher um pouco, pois estou sentindo a falta da Duquesa, sempre tão alegre e amiga. Papai foi para a margem, desliguei os motores e desço para Iquitos devagarinho. Sem drogas de qualquer espécie, nem outras fugas de minha dor. Que é só minha, e de mais ninguém, e que preciso passar por ela.

E passarei, pois que no amanhã dias melhores virão

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JG = João Gabriel, meu quarto filho, hoje com 8 anos.

Obs: Na foto Duquesa, uma Golden Retriever fazendo o que amava, tomar banho de mangueira.

A Arte de Fazer Vinha D´alhos na Vida (autor Ricardo de Faria Barros)

Arrumei a casa ontem, após tua saída.  Nela, tinha restos teus espalhados por toda parte, e com eles me deliciei, propagando os bons momentos que juntos vivemos.

No sofá, o cobertor que te aninhara permanecia do jeito que tu deixou. Quase te vejo nele.

Numa das fotos que tiramos, percebo tua expressão faceira, de surpresa e humor. Acho que estava querendo falar algo, sobre o prato que juntos cozinhamos, como que a pedir para ir comê-lo no sofá da sala de TV, algo para ti mais proibido do que namorar com prima.

Durante nossa experiência gastronômica, ensinei-lhe a fazer isca de peixe. E tu ficou surpreso com o vinho que botei no peixe para marinar.

Falei que o vinho fixa e realça o sabor, e que sempre foi usado na culinária, desde a idade medieval, no que se chama de vinha de alhos.

Teus olhinhos brilhavam de curiosidade, e tu me ajudou a deitar o vinho sobre o peixe, sentido-se um máster chefinho.

Sabe filho meu, hoje tu tem 8 anos, e não sei quando lerá essa carta.  Nela, preste atenção a duas palavras: fixar e realçar.

Aquele peixe não teria nem a metade do sabor que ficou, e fez tu comer tudinho, sem o vinho. O vinho pegou o sabor da cebola, do alho, do tomate, da salsa, pimenta e sal e fixou nos poros do peixe. Depois disso, ele catalisou uma reação química realçando o sabor desses temperos, e dando ela próprio, com sua acidez, um sabor mais que especial ao peixe.

Só deixe se fixarem coisa boas em teu coração. Elas vão realçar o sabor da tua vida.

Exstem dez bons tipos de vinho, para as vinhas de alho de nosso viver, são eles: gratidão, solidariedade, esperança, perdão, doação, bondade, otimismo, paz, amor e a coragem, de se reinventar após momentos difíceis.

Cada um dos vinhos acima, isolado ou atuando em conjunto, fixará e realçará o sabor de teu viver.

Acredite em teu pai.  Não adianta querer saborear aquela Moqueca Capixaba da tua vida, se teu coração for cheio de mágoas e rancor. Não sentirá o gosto dela.

Não adianta querer degustar aquela costela de tambaqui, com o coração cheio de ingratidão e desesperança. Ela vai descer entalado.

Teu pai é colecionador de pessoas comuns, com atitudes incomuns diante da vida. Se eu pudesse definir o que as caracterizam, eu diria que são duas coisas.

A primeira, elas não querem ser as melhores da humanidade, mas as melhores para a humanidade.

A segunda, elas não perdem tempo cultivando emoções ruins, criando-as como bichinhos de estimação, em seus corações e mentes.

As melhores experiências da vida, os maiores amores, as viagens inesquecíveis, ou situações no mundo do trabalho dignas de louvor, sem a vinha de alhos feita com algum dos dez vinhos, acima descritos, expressos naqueles comportamentos ou atitudes (paz, amor, perdão, esperança...,) não se fixarão nas memórias afetivas, e não terão o seu sabor realçado e melhor valorizado por quem as viverá.

Tenha muito cuidado com isso.  Já convivi com um monte de gente que vive experiências maravilhosas, contudo as degusta como quem come coisa ruim. Desaprenderam a sentir, com as emoções e pensamento positivo, o valor do que tem, fazem, recebem ou testemunham nos outros.

São promovidas e não se alegram mais. Acham que mereciam e pronto.  Lutam para entrar numa empresa, estudando anos a fio, e não mais renovam o tesão por ela. Envelhecem-na dentro deles.
Têm filhos maravilhosos, como você, Tiago, Priscila e Rodrigo, mas por estarem com o coração tão cheio e pesado de coisas ruins, não mais acolhem a presença deles, de forma inteira, não ansiosa, agitada ou cheia de outras preocupações.

E o sabor da vida não se fixa ou se realça em nada de bom que eles vivem. 

Pois, falta-lhes algum dos dez vinhos. Talvez um pouco mais de perdão. Para outros, paz. E em determinado momento, pode faltar-lhes a coragem de se reinventar, após os baques inevitáveis que levaram da vida.

Por isso, aprenda a guardar esses vinhos. Nunca vi alguém infeliz com eles na adega do coração.

O Gerânio da Mamãe (Por Ricardo de Faria Barros)

Tomando um delicioso cappuccino, curtindo o friozinho do DF, mito esperado em sua chegada neste ano, contemplo nuvens brincantes no horizonte.

Deito a vista sobre a estante e me delicio com os brotos de uma tenra muda de gerânio que vêm nascendo.

Sempre fui apaixonado pelo mistério do germinar, da casca que se abre em brotos. De brotos que desafiam espaços impossíveis de ser. E, mesmo assim, tornam-se.

Não é um gerânio qualquer. É de pingente e vermelho, comprado seguindo recomendações expressas de minha mãe, numa saga hilária.

Vê-lo nascendo lembra minha mãe e seu amor pelas flores e plantas. 

Quando chego perto da sacada, e acompanho broto a broto sua evolução, é como se ela estivesse ali comigo, torcendo, apoiando, me amando.

As coisas só são coisas até serem tocadas pelo toque do amor. Como na mitologia quando Midas 
fazia ouro com seu toque, o amor nos torna mais que preciosos, nos torna eternos. 

Nesse momento, após serem abraçadas pelo amor, as coisas deixam de ser coisas. E esse filhote de gerânio não é mais um gerânio, é o Gerânio. Os substantivos viram nomes próprios, adquirem personalidade.  Aquele Gerânio, plantando de um pequeno galho caído no chão, quando eu preparava sua mãe, para levá-la até a minha, é presença de mamãe na minha varanda.  Minha mãe é aquela que além de me amar, reza por mim. Então, é amor em dobro. 

Não sei com vocês, mas comigo têm umas coisas que deixaram de ser coisas. O cobertor que o João Gabriel gosta de ver filmes, todo empacotado nele, não é mais um cobertor, é o Cobertor do JG.

Se eu soubesse dessa natureza das coisas, de tornarem-se evocação de pessoas e bons momentos, eu teria guardado mais algumas delas, em baús do pirata. 

Mas, quando somos jovens, achamos que isso de bom que vivemos vai se repetir e que nada precisa ser guardado, para com aquilo fazer comportas emocionais, tal qual fazemos com as frutas da estação, inclusive as jabuticabas. Para serem degustadas noutros momentos, quando a vida ficar menos agitada, ou quando a preocupação se avizinhar.

Somos seres simbólicos, de mistérios, místicas e cheios de subjetividades. Creio que é isso o que nos torna humanos.

Lady vem fazer faxina na quarta, ela pode esbarrar em qualquer um de meus vasos de plantas, e até quebrá-los, eu vou substituí-los numa boa, sem estresse, faz parte. 

Mas, mas se for o do Gerânio da mamãe eu irei sentir muito. Logo procurarei nos sacos de lixo, para ver se acho o lixo aqui de casa, e salvarei a tenra muda. 

Essa parte "Demiens", do "Homo Sapiens", é o que torna transcendental o viver.  Afinal, de perto ninguém é normal, como disse Caetano. 

Quem de vocês reviraria um lixo atrás de um galho de gerânio?

Quem de vocês compraria uma radiola usada, só para ao olhar para ela se lembrar de onde veio e o quanto cresceu, quando em 1985 - com quase 21 anos, recebi o  meu primeiro salário como adulto sério e grávido? E, hoje, há exatos 32 anos, fucei no Mercado Livre até achá-la, mesmo com um pequeno defeito no descanso do braço, segundo vendedor, e sem as caixas de som, mas funcionando. (Oremos. rsrs)  É bom olhar para nossa história e saber o que passamos, de onde viemos, e o quanto já crescemos e sobrevivemos, e estamos mais fortes e preciosos do que éramos. 

Não é mágico viver?  Não é bacana percebermos o quanto das pessoas entram nas coisas de nosso viver, dando a elas um novo significado?  E o quanto carregamos conosco, e deixamos nelas, do nosso perfume de existir?  Aliás, se há uma conserva emocional poderosa são os aromas.

Aromas afetivos que nos fazem rememorar o amor. Que renova e refresca nossa esperança, tal qual o orvalho das manhãs faz com os tenros brotinhos, saídos de cascas e galhos, dando-lhes mais uma oportunidade de despertarem o  seu melhor potencial.

Casas que não são lar e quartos de hotel nem sempre possuem isso. Não há aromas de referência e a história das coisas é frugal. Não há o cheiro de gente nelas.

Gente cheira. As pessoas são aromatizadas. Eu sei que tu está sorrindo, imaginando que algumas fedem, de ruins que são. Engano seu.  Elas apenas pisaram em cocô de pato, e carregam esse cheiro. Mas, não é delas. Foram coisas fedorentas que nelas foram se afixando. Se tirar essas coisas delas, elas voltam a cheirar.

Somos almas perfumadas. Todos nós. E, mesmo que alguns de nós tenham se transformado em coisas, em algum momento de sua história de vida, quando são tocados pelo toque do amor, tornam-se Nome Próprio, deixam de ser pessoas-substantivos. 

Até nós, coisificados que ficamos, não resistimos ao toque do outro em nosso ser, quando ele é de amor, e nova criatura nos tornamos. 

Nossa muda de gerânio interior, tão comum às demais, e sem graça alguma, quando nela se deposita o amor, deixa de ser uma muda, e passa a ser a muda. Transforma-se de objeto em sujeito, de substantivo em nome próprio.

Levanto-me e vou avaliar meu Gerânio. Agora são cinco folhas e três novos brotos. Antes era apenas um galhinho, sem folha e brotos. 

Quanto progresso!  Um desavisado que chega e olha para meu Gerânio, não vê nada de especial. Eu, que conheço sua história, sei de seu progresso pela vida, e o quanto significa para mim.

Assim é conosco. Para saber de nossos avanços têm que nos conhecer, e nos amar.
Muito de nós, visto de longe, somos apenas uma pequena muda de uma plantinha, sem flor e formosura alguma. Mas, se conhecermos a história dela, veremos o quão longe já chegou e o quão significativo é cada broto que dela nasce.  

Somos eternos demais para nos acostumarmos com o ruim e o pequeno, até de nós mesmos. 

Quantas pessoas pegaram o galhinho de nossa vida, que estava jogado lá no chão, desprezado, sofrendo e esquecido,  e com cuidado o plantaram no jardim de seus corações? Que vingaram em  rosas laranjas cheias de bênçãos e de beleza. 

Agora deu fome e vou comer uma feijoada, que também não é uma feijoada.  É a Feijoada, aquela que evoca em mim a renovação de meu espírito de luta, tal qual a brisa aracati faz nos sertanejos do Vale do Jaguaribe-CE, ou borboletas azuis fazem para caminhantes exaustos em trilhas do Cerrado.

Sim, quando o Gerânio der suas flores vermelhas, e em pencas, lá pelos idos de 2018, será mais mais uma razão para celebrar a graça de viver. E, nesse dia, você está convidado(a) para juntar-se à mesa e comigo celebrar à vida. Temos que aprender a festar a vida, e nas suas pequenas coisas, que ao serem objeto de nossa gratidão deixam também de ser coisas, tornam-se marcos. 

E, deixar marcos nos outros é muito melhor do que deixar marcas. Então, aguardem o marco das flores do Gerânio da mamãe. 

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