Cartas ao JG - Preste Atenção às Flores e Frutos à Beira do Caminho (Ricardo de Faria Barros, pai do João Gabriel - 10 anos)


Sabe meu filho, naquele final de semana de agosto-2019 o calor estava insuportável no Distrito Federal.  E o pior nem era o calor, era a baixíssima umidade, tendo sido decretado o Alerta Vermelho.
Você estava gripado, e na noite do sábado para o domingo, pela madrugada passei um tempo acordado, segurando tua mão.
Eu me embalava na rede, você dormia no sofá-cama, e, após um acesso de tosse, eu acordei e segurei tua mãozinha.
Era como se eu quisesse te proteger, te dar carinho, te fazer melhorar.
Você, ainda dormindo, correspondeu ao meu aperto de mão.
Pode ter sido até um reflexo físico mas, preferi voltar a dormir, de mão dada contigo, achando que tu tinha correspondido ao meu gesto de amor.

Quanto tempo eu terei ainda para dormir apertando tua mão, enlaçado à ela?

A juventude vem chegando em tua vida, e à galope.
Teus dez anos agora se esticam, diariamente, em formas que não cabem mais nas roupas.
E, a cada semana que te vejo, a sensação é que tu cresceu mais um pouco.
Acho que todos os pais com guarda compartilhada vivem isto quando vão buscar seus rebentos.
Tenho vivido isto mais intensamente, ou ando prestando mais atenção, ou mais sensível. Ou tudo isto, junto e misturado.
No meio da manhã de domingo, seu tio manda mensagem convidando-nos para um almoço na casa dele, que fica no mesmo condomínio onde você mora, lá pelas bandas do Jardim Botânico de Brasília e de São Sebastião-DF.
Certifico-me, prudentemente, que só estarão meu irmão e cunhada. Teu resfriado pode contaminar a Priscila,  tua irmã, que está grávida de 8 meses, do Lucas, meu primeiro neto.
Tudo certo, só nós quatro, então partimos para lá.
No caminho tu dorme que baba. Combinei com o Guga de chegar 12h30. São 12h e já estou no condomínio. Como sempre, chego antes nos compromissos.
Mas, eu tive pena de te acordar, e fiquei zanzando de carro, para que continuasse a dormir mais um pouco.
Lembrei-me do quanto era gostoso dormir no carro de meus pais, quando a maior aventura e felicidade, na tua idade, era ouvir a voz deles chamando para "dá uma voltinha de carro" pela cidade.
Como aquelas "voltinhas" sem parar em McDonalds algum, ou coisas da espécie, eram boas.
Sabe filho, a gente precisava de muito pouco para ser feliz, como crianças.
Só precisávamos de nossos pais inteiros ali conosco. "Dando uma voltinha". Sem estarem acessando, eles e nós, as redes sociais e os games.
Era o momento de uma prosa maneira, de se encantar com uma nova rua que recebia os paralelipípedos, e de falar das últimas realizações no Senai, local onde ambos seus avós trabalharam por mais de 40 anos.
Mamãe era a mais tagarela, e adorava saber de nossas novidades no colégio. Falávamos de nossos receios com as provas, pressão escolar, etc e ela só dizia, continuem se esforçando, isto também passa.
Papai era o bom-vivant, sereno e seguro, ele nos passava a sensação de que o amanhã seria melhor.
Com eles aprendi o valor concreto de duas posturas diante da vida.

Uma ligada à Esperança, de esperançar. Dizer que o "amanhã será melhor", nos energiza para mobilizar recursos no hoje, intencionalmente, para que este amanhã possa de fato ocorrer. E era assim que ele nos educava. Ao nos ensinar a ter paciência com as sementes que plantávamos. A ter tenacidade diante dos aperreios da vida, e continuar dando o nosso melhor.
Sabe filho, nunca esqueci quando sofri severo acidente de moto, e tive um traumatismo craniano.
Ao ter alta, e papai me levar para minha casa, eu pergunto pela minha moto. Onde estava, em qual oficina.
Aí, ele me mostra uma bicicleta que comprou pra mim, até com campainha de inox, e diz que investiu o que sobrou da moto nos remédios, hospital e na bicicleta. Quando ameacei ficar triste, com a perda e o ocorrido, ele solta um: amanhã será melhor. Vá trabalhar de bicicleta, é mais seguro. Pensar que foi esta bicicleta que me fez entrar no BB. Mas, isto já é outra história que depois lhe conto.
Esta era a marca de papai em tudo que fazia, e diante de todas as dificuldades que enfrentaram para criar três filhos, morando de aluguel e estudando em colégio particular.  Era uma esperança ativa. Ele tinha esperança dos filhos passarem de ano, mas não ficava sentado à beira do caminho esperando que algo de mágico ocorresse, neste sentido. Pelo contrário, apoiava mamãe nas exigências de tomar as lições, de cor e salteado.  E, bastava um olhar dele, para voltarmos à tabuada.

A outra é ligada a uma disposição atitudinal, o Otimismo. "Isto também passa", falava mamãe quando lhes trazíamos alguma dificuldade, ou resistência pra fazer algo. Como meus treinos de natação, tão jovem, para correção de um problema ortopédico no diafragma.  Era uma postura diante da vida, que quando algo de ruim ocorria sabia colocar aquilo como específico, passageiro e contido ao ocorrido, sem sair melando todas as áreas da vida. O que hoje se chama de Otimismo Aprendido, mamãe já ensinava no século passado, sem nunca ter lido nada de psicologia positiva.

Você deu uma roncada e me tirou dos devaneios da tal "vamos dar uma voltinha?".

Ainda faltavam dez minutos, para as meia hora de soneca boa que te daria, então lembrei-me que num determinado lote, ainda por construir, eu houvera visto uma ipê verde. Trata-se de uma das variedades mais exóticas dos ipês, e rara.
Fui contigo até lá e não é que avistamos os cachos de flores verdes! Uauuu, lá estava novamente aquela belezura de meu Deus, ali, toda oferecida para nossa visão. Você dormia, mas fiquei de passar ao sair do Guga por ali e te mostrar.

Chegando na casa do mano, tu ainda sonolento, arrumei o sofá da área de lazer e te deitei lá. E tu dormiu novamente. Não estava febril, nem tossia. Estava apenas cansadinho de noites em mal dormidas.

Pelas 16h, saí para te deixar na tua casa, que fica uns 500 metros do Guga. Como chegamos mais cedo do que o combinado (17h) tua mãe estava fora.

Então, aproveitei e fui te mostrar o ipê verde. Seus olhinhos custaram a ver as flores deles, a distingui-las entre as folhas.
É assim com mutia coisa boa da vida, às vezes eles estão ali, bem pertinho de nós, mas nossos olhos não conseguem mais enxergá-las.
Tu não via as flores do ipê verde.

Descemos do carro, e aprumei tua vista com minha mão.  Até tu soltar um:

- Ahhh!!!, eu vi papai, estão ali as flores!

Falei que tu estava vendo um espécime raro, e que logo, quando o dono do lote fosse construir, ele poderia ser abatido.

Tu deu a ideia de botar uma placa, avisando. Fiquei de pensar nisto, talvez uma faixa. Boa ideia meu filho. Quem sabe o dono daquele lote o protegerá.

Ainda faltava meia hora para as 17h, e lembrei que numa determinada barranca, às margens de uma avenida do Condomínio Amobb, tinha um pé de cajuzinho do Cerrado.

Te chamei para irmos ver se havia frutos. Confesso-lhe que fui desconfiado, geralmente os cajus nascem mais no final-início do ano.

Fomos passeando e mirando na barreira, e nada, e nada, e nada, aí, UAUUUUU!!!!

Lá estava, despencando de uma barreira, uma bela muda de cajuzinho do cerrado, toda cheia de cajus, maturis e flores.

Colhi dois deles, um pra mim e outro pra você.  Saboreamos aquele momento, diante de uma árvore igualmente tão rara no Cerrado, e em extinção, por não ter valor comercial. 

Deu 17h e fui te deixar. Na saída do carro, nos abraçamos. Falei que te amo. Tu falou que também me amava.

E voltei pra minha casa vendo o sol fazer seu espetáculo de todas os entardeceres no DF.

O coração cheio das vivências contigo, a alma cheia com o belo que contemplamos, em flores de ipê ver e cajuzinhos do cerrado. E o meu corpo descansando naquelas nuvens em fogaréu, que confirmavam, metro a metro, que o amanhã será melhor, e que isto também passa!

Se não fosse teu tossir, não haveria mãozinha dada na madrugada.
Se não fosse fazer hora contigo, pra tu dormir gostoso, não lembraria das voltinhas com meus pais.
Se não fosse isto, também não lembraria do lote do ipê verde.
Se tua mãe estivesse em casa, não teríamos lembrado de ir procurar o cajuzinho.

É assim com a vida, meu filho. Um monte de coisas vão ocorrendo que no somatório delas produzem um movimento, antes impensado, e de repente, não mais que de repente, algo bacana nos ocorre, fruto destes imprevistos e mudanças de planos.

Mas, precisa ajustar as lentes pra ver. Assim como tu fez pra enxergar as flores.  Precisa estar sintonizado ao bom, ao belo, ao justo, à paz, ao manso, ao Humano e ao Divino para ver, que apesar dos pesares, pra um monte de vida boa ocorrendo, pelas barrancas de nosso viver, ou disfarçadas entre as folhas.
Filho meu, na vida, esteja sempre 100% presente, atento e consciente às suas bênçãos e possibilidades. Module tua percepção seletiva para além do negativo, infeliz e crítico, presente como praga nestes tempos ditos modernos.
Ser mais feliz, ou menos triste, é uma escolha consciente, diária, possível, necessária e indelegável.
E, em grande parte, dependerá de ver que de uma barreira de Cerrado sequioso, com árvores cansadas pela inclemência do tempo, pende cajuzinhos vermelhos e suculentos.
E que, de um galho de folhas, iguais como várias outros do mesmo lugar, só ali, nele, há um buquê de flores a ti oferecido.
É preciso, filho meu, treinar o olhar para ver o lado bom da vida.
Apesar de todo o circo de horrores que temos presenciado, mundo afora, muita coisa boa ainda ocorre na vida.
Neste exato momento, em que digito esta carta para ti, algo de bom está ocorrendo. Uma Brisa Aracati caminha pela praia, agradecendo que as dores amainaram. Lucas chuta a barriga da filhota Priscila, pedindo comida.
Uma jovenzinha mobiliza o mundo para a defesa do Meio-Ambiente.
Papai, tira a meia anti-trombo, usada por 8 dias após cirurgia que fez no pulmão, e se sente finalmente de alta, já planejando a primeira saída de casa, com o amigo Renato.

Lá no térreo, escuto Antonio varrendo as folhas secas da calçada. Daqui a pouco desço, e ele com sorriso no rosto me dirá novamente, respondendo à minha provocação.

- É muita folha seca.

Ao que ele me responde sempre.

- É sr. Ricardo, mas elas nos dão sombra, flores e refrescam, e é só varrê-las todos os dias.

Quanta sabedoria. Sabe filho, tem gente que só ver as folhas secas, e seu incômodo. Nunca seja assim! Seja como o Antonio.

Não foi apenas uma Pirarara, foi amor. (Ricardo de Faria Barros)


“Aviz Júnior, depois quero uma foto tua e de teu pai (sr. Aviz) com um peixe, para eu usar nas minhas palestras sobre longevidade feliz”. 3/8/2019

Fiz este comentário num post de uma foto que o Aviz Júnior publicou no Face, documentando uma nova pescaria que faria com o seu pai.
Dessa vez, a pescaria tinha como destino um rio em Rondônia, e fariam uma surpresa ao Aviz pai, levando na viagem um de seus netos, e um outro filho.
Considero o Aviz Júnior um de meus melhores amigos e por um bom período de tempo, lá no BB, trabalhamos juntos. Hoje, ambos somos aposentados. E ambos, eu e ele, decidimos não nos aposentar da vida.
Acompanho estas pescarias dos Avizes (rs) há uns cinco anos. Tem ano que meu amigo se desloca de Brasília pra SP umas duas vezes, para levar seu papai para pescar. Inclusive para bons pesqueiros na América do Sul.
Ele me diz que faz isto por amor, que não é obrigação. Embora tenha que deixar a sua esposa sozinha aqui em Brasília, eles negociam estas saídas como prova de amor. A Shirley ainda está na batalha do trabalho formal. Shirley, incentiva estas aventuras de pescaria com o seu sogro. A isto chamamos de amor, amor de cumplicidade, de parceria e companheirismo.

O Sr. Aviz faleceu recentemente, um mês após chegar da viagem de sua última pescaria.

Tive acesso a um vídeo de sr. Aviz, dias antes de embarcar para sua última pescaria, a de agosto de 2019. Ele estava todo feliz ao saber que o seu neto iria também, além de dois filhos, Aviz Júnior e o seu irmão. Então, ele cantou para o neto a música que o inspira, quando sai pra pescar, e que nunca entra na jangada sem antes cantá-la. Cantou com voz firme, entoado, no ritmo e muito emocionado. A música é Mucuripe:

"Aquela estrela é dela
Vida, vento, vela, leva-me daqui
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou levar as minhas mágoas
Pra as águas fundas do mar
Hoje a noite namorar
Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar."

De forma predestinada, naquele vídeo, ele deixou documentado que precisamos seguir nossa jornada da vida, com o vento, e aprumando as velas...
Ganhei minha foto que pedi, e a usarei com carinho, já na semana que vem numa palestra que darei na Itaipu. Na foto que Aviz Júnior me mandou, seu pai pesca uma pirarara, cumprindo um dos objetivos desta pescaria, um peixe por ele muito cobiçado e nunca antes pescado.

Se Aviz Júnior não tivesse ido pescar com o pai em agosto como estas cenas ficariam nas memórias afetivas dele e família?

Se Aviz Júnior não tivesse sido este filho exemplar, que apoia incondicionalmente os pais na velhice, a que velhice estaria destinado o seu pai? Será que ele sozinho iria para dispendiosas, e ousadas, do ponto de vista logístico, pescarias?

Sabe Aviz Júnior, você nos inspirou e inspira. Todos nós que temos pais já velhinhos nos sentimos motivados a seguir teu caminho.
A reservar alguns dias do ano para ir visita-los e sair com eles para fazer algo legal.
Se tivéssemos o mesmo carinho que temos com animais que chegam a velhice para com os nossos pais idosos seria tão bom.

Ontem, vi uma vizinha passeando com a sua cadela, de 12 anos, e no braço. Pois, ela não consegue mais andar e tomar sol. Ela foi proporcionar uma das coisas que sua cadela mais gostava, acompanha-la nas caminhadas pelas entre-quadras aqui de Brasília. Doze anos num cachorro equivalem a 84 no ser humano. Será que fazemos este mesmo ato com nossos pais idosos?

Será que temos o espírito do Aviz Júnior de proporcionar momentos de intenso prazer a eles.
O espírito de quem nos últimos anos visitou o pai a cada três meses, deslocando-se uns 1..300 km, de Brasília para São Paulo.

Na maioria das vezes nos fixamos em um monte de muletas para não fazer isto. Dizemos que estão velhos para saírem. Que não gostam. Que estão muito frágeis. Que demandam cuidados médicos. Etc, etc. etc.

E vamos deixando eles mofando em suas casas, ou em abrigos. Quando muito os visitamos, achando que isto basta. E são visitas rápidas, de quem tem algo a fazer depois. Logo nos aborrecemos com o “tédio de uma casa de idosos”, ou com suas conversas antigas - mil vezes repetidas, ou com algumas doses de sincericídios que idoso nos prescrevem.

O Brasil está envelhecendo. Daqui a alguns anos ter um pai com 80 anos será super normal. E não podemos deixa-los à margem de nosso viver.

Precisamos de filhos cuidadores. Eles não desistem de seus pais, mesmo não recebendo deles, muitas das vezes, palavras amistosas. E, não fazem isto por obrigação. Como bem me disse o Aviz Junior, fazem-no por amor.

Nossos pais gostam de conhecer coisas novas. Também querem se divertir, relaxar. Eles dizem que não querem. Que não podem. Que não têm saúde. Etc. etc. etc. Desconsiderem.

Eles querem. Só não querem dar trabalho e não podem gastar $. Por nos amarem, eles dizem que não querem se divertir, que preferem ficar onde estão.

Recentemente enfrentei momentos tensos junto aos meus pais de 82 e 81 anos. Papai precisava de cuidados médicos, e passei uma semana por lá. Nesta semana, não deu para ir pra praia, mas deu para botá-los no carro e fazer uma rota pela vizinhança da cidade de Campina Grande-PB, num horário em que o dia estava bem fresquinho, e em estradas vicinais que cruzavam pequenas propriedades rurais. Num determinado trecho paramos o carro, para apreciar as flores da Jurema Branca, e sentir seu perfume que encanta de tão gostoso.

Quando é que terei a oportunidade novamente de levar meus pais para turistar pela roça?

Quanto isto me custou? Nada. Só o querer. Só mover uma montanha para convencê-los a entrar no carro e comigo partir. E foi uma delícia de passeio, de umas três horas.

Aprender a cuidar e ter empatia pelos nossos pais nos torna melhores. Desenvolve em nós as competências do capital psicológico positivo (esperança, otimismo e resiliência), bem como as da inteligência emocional (empatia, relacionamento interpessoal, capital social).

Fazer um turismo de aventura com os pais idosos, abrindo uma brecha na tão sobrecarregada agenda de filhos que ainda trabalham, ensina muito mais sobre gestão, comportamento humano e liderança do que muito treinamentos comportamentais.

Sr. Aviz pai, obrigado pela foto que fez pra mim e mandou pelo seu filho. Com certeza, o senhor foi um exemplo edificante de uma longevidade feliz e plena de sentido.

Aviz Júnior, meu amigo, obrigado pelas mais de 8 pescarias que fez com teu pai, ao longo destes cinco anos. Tu nos inspira a procurar as nossas próprias pescarias com os nossos pais.

Brisa, obrigado por não desistir de tua ranzinza mãe. E, continuar dando amor.

Papai e mamãe, em janeiro iremos conhecer o Projeto do Peixe Boi Marinho.

Arruma a mala aí!

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