Sobre tampas e panelas. (Por Ricardo de Faria Barros)



"Aqueles lá, são a tampa e a panela."

Outro dia ouvi esta frase, e nunca mais olhei para uma panela e sua tampa, da mesma forma.
Você já deve ter escutado, não é?
É uma frase pequena, com apenas cinco palavras, mas que possui uma imensidão de significados.
Num livro bem recente, a pesquisadora Stephanie Cacioppo estuda os efeitos da tampa e da panela no organismo. Este livro, que ainda não tem tradução no Brasil, se chama Wired For Love.
Recentemente, Stephanie deu uma entrevista à Folha de São Paulo a qual transcrevo um pedacinho:

Folha de São Paulo (20/04/2022): O amor é necessário para a sobrevivência?

Stephanie: O amor é uma necessidade biológica, assim como a água, o exercício físico ou o alimento. Minhas pesquisas me convenceram que uma vida amorosa sadia é tão essencial ao bem-estar das pessoas quanto uma boa alimentação. Essa vida amorosa pode incluir seu parceiro amado, seu círculo de melhores amigos, um grupo social, uma causa, sua família ou até mesmo seu time esportivo favorito.
(Veja em https://folha.com/2wy3zcpv)

Nunca tinha parado para pensar no amor como uma necessidade biológica, e este arcabouço teórico abriu janelas de entendimento em meu ser. Que compartilho com vocês.

Somos "programados" e destinados ao amor. E não é somente o amor entre amantes. Ou seja, o amor de romance, de enamorados. Como a autora fala, é o amor em todas as suas matizes e manifestações. Um padre não tem esposa, mas ama seu sacerdócio, sua comunidade pastoral. Uma pessoa viúva, ama seus filhos, netos. Uma pessoa que não têm relacionamento estável, um amado para chamar de seu, pode muito bem estar em paz, para consigo mesma, e feliz, ao criar laços amorosos com amigos e filhos (caso descasada).

Então, a tampa e a panela falam de relações bacanas entre pessoas. Relações que nos causam bem-estar, que fazem o tempo passar sem percebermos, que nos conectam ao outro, intensamente, de forma emocional.

Olho para minha panela de barro e sua tampa. Aparentemente tão frágeis, mas que num conjunto formam uma parceria exitosa. E convido-lhes a refletir comigo, sobre o amor.

Modelagem - O amor da Tampa e da Panela, precisou ser moldado. Creio que o amor também precisa ser moldado. E, não há uma panela igual a outra, e não há um amor igual ao outro. Pois que são estados da arte, do artesão do tempo, que amassa o barro do coração e vai dando-lhe forma. O barro, na mão do oleiro, é esperança de um outro amanhã possível. Eu e você, vendo o oleiro trabalhar, não vemos a tampa e a panela. Ele vê. Ele vê o que ninguém vê. Ele sabe, para além da razão, que algo legal sairá de seu trabalho. Eu vejo um monte de barro sendo amassado. Ele vê o infinito do amor, vindo logo ali dobrando a esquina, e já cozinhando uma moqueca capixaba. Ele saca que algo ocorrerá, de bom, mesmo antes do ocorrido. Para ele, aquele barro dará liga boa. E não é assim com o amor? Quantas das vezes conhecemos uma pessoa, por breves instantes, e algo ocorre dentro de nós. E já não seremos mais os mesmos, a partir daquele instante. Em nosso corpo hormônios são produzidos, antevendo que dali sairá uma tampa e uma panela, e das boas. Alguns chamam isto de amor à primeira vista. Eu, chamo de um instante mágico, do olhar do oleiro sobre aquele barro. Então, o amor pede construção, nunca acabada, pede investimento emocional em juntos amassar o barro. O melhor molde é o perdão.

Temperança - Uma boa panela de barro precisa ser curtida. Precisa ser cozida, em fogo lento, e colocada para esfriar. Depois, antes de seu primeiro uso, precisa ser untada com óleo e colocada em fogo baixo, para criar resiliência. As melhores panelas passam por este processo, e duram uma vida toda. Então, os relacionamentos amorosos precisam passar pelo fogo. Precisam de renúncia, transparência e verdade. Precisam ser provados, testados e submetidos a tensões. Relacionar-se é criar um espaço para mediar prazeres e sofreres. Um espaço no qual não há vencidos, nem vencedores, mas que se constrói pela comunicação não-violenta, pela empatia e pela compaixão. E isto se faz no tempo, no dia a dia, no cotidiano. Não se cria temperança da noite para o dia. A temperança do amor se faz ao longo da história de vida, de cada uma das pessoas que se unem na tampa e na panela. Seja no romance a dois, o amor de Eros. Seja com amigos e família, o amor de Ágape. Não se fortifica a panela e a tampa sem perdão, sem respeito, sem confiança. Então, o amor precisa suportar as batidas da vida, em seu lombo, e no lugar de ficar mais frágil, ficar é mais forte ainda. A melhor temperança é a verdade.

Encaixe – Uma boa tampa, encaixa sem pressionar, na panela. Uma boa panela, encaixa sem pressionar, na tampa. Quem encaixa em quem? A tampa, ou a panela? Ambos...
Tem gente que acha que este encaixe tem que ser perfeito, sem deixar sair nenhum ar da panela, quando ela vai ao fogo. Sinto dizer, nem na panela de pressão isto ocorre. Se não tiver uma folga, uma abertura, se a tampa for presa na panela, hermeticamente falando, ou a panela na tampa, aquilo lá vai explodir. Quando cozinhamos uma feijoada, é preciso que o vapor do cozimento escape, não totalmente, mas que escape um pouco. Creio que o amor também tem desse tipo de encaixe. Precisa de válvulas de escape, nas tensões diárias que ocorrem naturalmente nos relacionamentos. Precisa de espaços de individualidade, nos quais cada um tenha seus próprios motivadores, que funcionam como “respiros” e que arejam a relação. O amor pede este encaixe de minha panela de barro, que não aprisiona, que não domina, que não tem o outro como “coisa sua” e o manipula. O amor odeia Narcisos. Pessoas narcisistas tendem a querer que o outro se pregue nela, como se fossem fechados nelas mesmas, parte delas. Isto é uma fantasia de poder, terrível para quem já a viveu. Pois que sufoca o amor. E isto causa muito sofrimento. Causa uma co-dependência de modo que uma das pessoas, da relação, não sabe mais viver sem o outro, ou os outros, e isto tira dela mesma a vida. A pior forma de encaixe fixo, sem abertura, sem liberdade, é o ciúme doentio. Então, o amor precisa de liberdade, de autonomia, de individualidades a dois. Não deve ser panela e tampa de cara metade. Mas, panela e tampa de caras inteiras. O melhor encaixe é a empatia.


Então, quem tiver sua tampa e panela, cuide bem dela. Sua amada, seu amado. Seus filhos, netos. Seus amigos. Seus grupos sociais. Seus animais de estimação. Tudo aquilo em que deposita o mistério, a mágica, a tesão de amar e ser feliz!  
Felicidade tal aquela de quem acha uma Flor do Mar (*), para temperar sua moqueca, feita com uma boa panela e tampa.  

(*) Flor do Mar, ou Orvalho do Mar, era como a flor do Alecrin era chamada na Idade Média. Por seus poderes terapêuticos, gastronômicos e aromatizantes. Que cura, alimenta e perfuma, como um bom amor deve ser. 

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