A vida é feita de "continuamentos".

Todos nós, em algum instante em nosso viver, 
viveremos a emoção de cobrar um pênalti. 
Um daqueles momentos existenciais que de seu resultado, 
haverá ou não, 
a alteração do curso e sentido de nosso viver. 
Contudo, 
aprenda de uma vez por todas, 
a vida nunca será uma decisão por pênaltis. 
A vida é muito maior do que vencer ou perder. 
A vida é um continuar...
Apesar de tudo. 
Na alegria ou na tristeza, no sucesso ou no fracasso. 
Continuar. 
A vida é feita de "continuamentos". Nem toda decepção será para sempre, nem todo júbilo também. Paradoxalmente, é justamente nisso mesmo que reside a mística e magia da vida e do viver. 

. "Ninguém pode fazer a sua vida no seu lugar. Não deixem que vos roubem a esperança. Mas digo também, não roubemos a esperança. Pelo contrário, nos tornemos portadores de esperança."  Papa Francisco

Paus de Escora


Vinha descendo pela Avenida do Sol e à minha frente um caminhão carregado com pau de escora. Para quem não conhece, o pau de escora exerce um papel fundamental na construção civil. Ele é quem apoia a armação de trilhos e isopor da laje, sobre os quais será depositado o concreto.
Depois de seco, de curado como se chama, o pau de escora é retirado e a laje fica solta no ar, suportada por colunas e vigas fincadas no alicerce, num lance genial de engenharia.
Aí, ele vai para o monte de madeira. Se der sorte, será revendido e continuará sua missão. Na maioria das vezes, o custo para vir buscá-lo não compensará o valor obtido com a revenda e ele acabará virando uma fogueira, servindo de lenha para fornos de padaria e cerâmicas, ou sendo simplesmente descartado em lixões urbanos.
Trafeguei uns 10 minutos atrás deles. Não tinha como cortar o caminhão naquela descida perigosa da Avenida do Sol, aqui no Jardim Botânico, em Brasília.
Durante aquele trajeto conversei com alguns deles.
Alguns eram mais tímidos, outros falantes e alegres. Eles não sabiam do que eu sabia. Sabiam que iriam servir e só.
E, não sabiam que após seu serviço, seriam descartados na maioria dos casos.
Naquele breve instante, refleti sobre o quanto podemos ter sido paus de escora para alguém, ou algo.
Ou o pior, tratarmos os outros como pau de escora, infelizmente muito comum.

a. Tem empresa e gestores que tratam seus funcionários como pau de escora. Na hora da precisão são valiosos, paparicados, “até de caminhão andam”.
São tratados com cuidado e valorizados. Alguns deles chegam a aparar arestas dos pau de escora, serrá-lo, prepara-lo para a missão que desempenharão. Depois de feita, após a laje secar, tchau e bença! Virão itens descartáveis, desprezados numa pilha de entulho humano qualquer.
Depois da obra pronta, bela e habitável, ninguém mais se lembra dos pau de escora que suportaram o peso da laje, até que o cimento, areia, concreto e brita adquirissem consistência e se firmasse. Não mais são lembrados. Na hora da premiação, sequer são citados. Eles estão ali, fazendo o melhor que podem para o serviço sair, mas são humildes, são simples, são de nível hierárquico inferior, por isso, para gestores ignóbeis: são sem valor.


b. Tem casal que um age para com o outro como o pessoal da construção civil age com os pau de escora. Na hora do sexo, meu benzinho pra lá, meu benzinho pra cá. Depois, tchau e bença.
Na hora de criar os filhos, preparar o lar, é só amor. Depois que engorda, fica cansada, com rugas... tchau e bença.
Na hora de tocar juntos projetos para o quais um precise do outro, só amor. Depois, um deles passa a tratar o outro como pau de escora usado e tchau e bença.
Tem relação pau de escora. Doentia. Relação que se mantém pelo o uso que um faz do outro, até que esse lhe sirva. Depois, tchau e bença.
Esquece o quanto um segurou a barra do outro. Um varou noites e dias esforçando-se para que o outro crescesse. Esquece num canto qualquer, numa pilha de madeira usada, aquele que um dia lhe deu tanto suporte.

c. Tem filhos que tratam seus pais como pau de escora. Na hora da precisão, só amor. Depois, tchau e bença. Passam séculos sem um telefonema, uma visita, e os pais agora os aborrecem.
Tem filhos que enquanto precisavam de roupa lavada, teto, comida, saúde estavam ali todos amiguinhos, ternos, afetuosos. Depois que crescem, pegam sua mãe-pau-de-escora e seu pai-pau-de-escora e os desprezam. Não os convidam para passeios, lazer, almoços ou outros itens de convivência. Não os ajudam financeiramente e, o mais importante, amorosamente. Os jogam no mesmo monte de madeira usada que fica no término de uma construção.
Filhos que acham que não devem respeito, gratidão, compaixão. Acham que os pais não precisam dele. Que os pais já não os entendem e não pertencem mais ao seu mundo. Envelheceram em seu coração.

d. Tem relações de amizade do tipo pau de escora. No momento que um precisa do outro, tudo corre bem. Tão logo satisfeita a necessidade, ou não mais seja importante, o amigo é desprezado ou trocado por outro, mais "útil".

São amizades pau-de-escora de construção. 

Tem relações de todos os tipos pau-de-escora. Um, só dá valor ao outro, enquanto enxerga nele uma fonte de serviço, poder, ter, prazer... Depois que isso acaba, ou quando não mais precisa disso, chutá-lhe a bunda e parte para explorar outros pau de escora, vida afora.

O caminhão freia. Volto à realidade e vejo um deles sorrindo para mim.
Pergunto-lhe por que ri.
Ele me responde que sorri, pois foi cortado de uma floresta de eucaliptos e que poderia ter virado carvão.  E que ri de minha visão negativa, essencialmente, de sua sina. Que nem todos são abandonados em pilhas de madeira velha.
Conta-me que na cadeia alimentar de seu destino, virar carvão precocemente é a pior sina. A melhor é virar um lápis da Faber-Castell. Mas, isso é para poucos.
O intermediário é virar pau de escora. Pois, da floresta até a loja de material de construção, e dali até a obra, ele prorrogará sua existência. E depois, ainda poderá ter a sorte de virar um novo pau de escora, caso revendido. Ou um trapiche. 


Falou-me de pessoas que servem aos outros perante a vida e que não são largadas num canto qualquer. 
São paus-de-escora diferenciados. Possuem o sentido e propósito do que fazem, e eles próprios podem procurar novos trabalhos.
São conscientes e possuem elevado senso de autonomia.
São empreendedores e aproveitam todas as possibilidades que a vida oferece para crescerem.
Servem com dedicação. Mas, caso tratados com desprezo saber sser resilientes e aguardar o melhor momento para reagir.
E lutar por dias melhores, rompendo a cadeia de opressão.
Era disso que ele sorria.  Sorria, pois sabia que podia fazer com as mãos seu viver e destino. Um pau de escora mais rebelde gritou lá do fundo da carga:
é, mas são poucos!

Não me contive e sorri também. 

Um do meio da pilha falou que conhecia muitos amigos paus de escora que após a obra tinha sido valorizados ali mesmo. Só mudaram de vocação. Foram reconhecidos.

O do fundo gritou... É mas são poucos.

Um pau de escora rebelde, era esse do fundo, pessimista com a natureza humana como o início desse texto.

O da frente explicou que alguns deles continuarão sua missão: sendo um suporte para horta, um pergolado, um trapiche, ou até voltar a ser escora de laje, caso reaproveitado. 

Aprendi, então, que mesmo o sofrer de ter sido jogado para fora e desprezado, após ter sido usado, pode aniquilar a pessoa humana. Ainda assim ela poderá transcender e renascer das cinzas.
Tem paus de obra que não são desprezados por aqueles que serviu. São felizes, são prestativos a vida lhes fez bem. Continuam servindo, seja no que for. 

Tem pessoas que uma vez precisaram em suas vidas de paus de escora e souberam reconhecer sua ajuda.
E até hoje são amigos. Sabem que entre si há uma dívida nunca resgatada.  Meus pais e irmãos foram meus paus de escora, e em vários momentos souberam sustentar minha existência, como os paus de escora suportam o peso da laje. 
Tive amigos com esse status também.  Souberam me ajudar em momentos difíceis, relacionados com a vida a dois, por ex.
Sem eles, teria sido tudo tão mais difícil!
Até hoje sou agradecido a essas pessoas, pais, irmãos e amigos que tanto me ajudaram, e foram meus queridos paus de escora. 
Nunca os deixarei numa pilha de lenha, para um forno de padaria. 
Estarão sempre presentes em minha vida, e serei eternamente grato pelo que um dia fizeram por mim.

Voltei a olhar a montanha de paus de escora seguindo na carga do caminhão à minha frente.

Fiquei embevecido com o diálogo que rolava na carga e de tanta sabedoria que dali saia.
Fiquei pensando no copeiro de meu andar, no porteiro de meu condomínio, na mensalista que mora conosco, nas moças que limpam nossas estações de trabalho, nas telefonistas, nos vigilantes, no pessoal da portaria. Fiquei pensando nos colegas que não aparecem à frente dos grandes projetos, mas que nos bastidores ajudam – com o que podem e sabem, a fazê-lo acontecer. Fiquei pensando em quantas pessoas passaram na minha vida e ajudaram a construir a laje de meu ser existencial, e quantas delas foram por mim tratadas como pau de escora, ou seja, desprezadas após me servirem. Para elas peço desculpas.
Queridos amigos que se sentem um pau de escora, lembrem-se que vocês ainda poderão vir a ser um lápis Faber-Castell, ou um belo trapiche ou pergolado. Portanto, caiam fora de relações que só te exploram. Todos nós, em algum momento em nosso viver, fomos ou seremos pau-de-escora para alguém. Mas, resistir e transformar essa situação é crucial - e pode ser feito, muitos fizeram e venceram. São exemplos.
Mesmo que te causem segurança e conforto momentâneo, fuja de situações nas quais é usado como um pau de escora.
Mesmo que doa. Mudem enquanto é tempo.
A construção de tua laje existencial está acabando. Logo, caso se sinta assim e não mude, será tarde demais.

Lembrei aquela canção que dizia assim "Tá vendo aquele edifício moço...?"
Tudo a ver com a sina de muitos paus de escora humanos.

O desafio é reencontrar-se após o desprezo e a dor da indiferença!

Reencontrar-se após rupturas, quebra de vínculos, dependências. Achar a identidade perdida no meio de tanta subjugação e exploração.

Será esse nosso desafio vida a fora. 

Servir como pau de escora, mas romper para outros desafios, sempre que o desprezo se fizer presente.

E, tudo pode ser uma questão de voltar a gostar de si mesmo. 

Saber do valor que tem, mesmo que para engenheiros, arquitetos só vejam em você um pau d escora desprezível diante de tudo que acontece numa construção civil. 
Não se preocupe, o mestre de obra maior, nosso Deus, sabe de sua importância. Sabe que se não fosse sua ação no mundo, seu existir, pessoas ficariam infelizes, mudanças não teriam acontecidos, bênçãos não seriam distribuídas por suas mãos.

Diversidade






Diversidade é uma banca de feira-livre. 

Cajá-Manga, Tamarindo, Alho, Kiwi, Jabuticaba, Goiaiba, Pera e Morango.

Só não entendi o alho, mas precisa entender?
Afinal, no reinado do amor a diversidade não precisa de entendimentos. 
Precisa de encantamentos.
Para aprendermos a respeitá-la e conviver com o que,
longe de nos dividir,
nos complementa como pessoa humana.

Mudar


No retrovisor pode se esconder nossa melhor essência, a magia do que fomos um dia e os projetos de vida que queríamos vir-a-ser. Olhar, vez por outra para trás, com esse foco, pode nos ajudar a saltar para frente! Tem hora que mais do que pendurar as botas, precisaremos pendurar aquilo que carregávamos em nosso ser e lhes atribuíamos valor, numa espécie de bolsa existencial sufocante. Nada como, vez por outra, jogar essa bolsa para cima e recomeçar. Atribuindo novos valores a tudo aquilo que nos diz respeito.

Oribá



Gostei muito do significado da palavra Oribá. A vi numa placa no Jardim Botânico de Brasília, uma extensa área do Cerrado, muito bem cuidada. Em cada texto que escrevo procuro transmitir Oribá. Que não significa que eu não esteja pelejando ou sofrendo, significa uma escolha. Crio com meus olhos, nas coisas que observo e que me cativam o meu infinito particular. Escrevo como quem pinta um quadro, no qual registro cenas para não esquecer. Gostaria de ter um gravador que ao ditar as escrevinhações que habitam meu ser ele digitasse, editasse, fizesse o copydesk. Seria bacana. Não esqueceria de nada. Parei de tentar me lembrar. Já não sofro mais e como diz a canção, "hoje faço com meu braço o meu viver". Parei. Meu ser é repleto de lacunas, de pausas, de lapsos. Aprendi a gostar de mim assim mesmo. Cerco-me de pessoas de excelente memória que me contam o que vivi. Fico ouvindo-as como se fora a primeira vez. Elas, um tanto espantadas, acham que brinco. Outras, ajudam-me a lembrar pintando as cenas numa fotografia. As fotografias me fazem lembrar. Tiro muitas fotos. Comecei a escrever para não esquecer que escrevo. Para exercitar minha memória, cambaleante e anêmica. Agora, escrevo por puro tesão. Como um coito interior que após saciado inunda-me de prazer. Escrevo, pois não saberia mais ser diferente. Escrevo, para abraçar quem me lê e juntos caminharmos para a tela que pintei, ou a cena-foto que descrevi. Este sou eu, um espaço Oribá!

Tempo de fazer a mudança para a cidade de si mesmo.

Era uma sexta recente, de algum mês que já se passou. Logo cedo fui ao Colegiado despachar umas Notas Técnicas. Compartilham aquele ambiente outros Gerentes Executivos.  Sentei-me à mesa do meu Gerente e aguardo ele voltar de uma reunião que ocorria na sala do Diretor.
Ao lado, observo um Gerente Executivo arrumando alguns papéis em sua mesa. Estranho o silêncio no Colegiado. Geralmente na sexta o ambiente é mais informal e sempre um fica zoando com o time de futebol do outro. Todos estão sérios. 
Algo ocorrera.
Continuo então a observar. Gosto de observar. Para mim pessoas são pinturas, são belos quadros expressionistas e gosto de observá-las em suas atividades corriqueiras.
Percebo que alguns papéis ele olha fixamente e os coloca numa caixa de papelão, que jaz aos seus pés. Outros, ele coloca numa fragmentadora que desafia o colossal silêncio do ambiente.
Lembro-me que ele participou de um evento de preparação para a aposentadoria que fizemos. Lembro-me, porque ao final ele me procurou e me contou que fizera o exercício que eu passara. E que ficou com a pontuação de 7-10: “Céu de Brigadeiro”, achando que estava chegando a sua hora. 
Essa pontuação faz parte de um momento da palestra que conduzo, chamada Aposentável, decifra-me ou devoro-te – aspectos psicossociais da aposentadoria.
Caiu a ficha do silêncio, e do que ele fazia com aquela caixa de papelão. Estava despedindo-se do BB, iria aposentar-se e guardava seus objetos pessoais, sua memórias.
Chorei por dentro da singularidade da cena. Nunca tinha testemunhado uma cena daquela.
Ele não via que eu o observava, quase como um voyeur. Ele estava absorto. Longe.
Tirou as fotos que emolduravam sua mesa e as olhou. Quantas horas com a família foram deixadas de lado pela dedicação integral ao trabalho. Todos que trabalham, que gostam do trabalho e são comprometidos, fazem essa escolha. Mas, ao fechar o ciclo, um dos ciclos, ela cobra sua fatura. 
Ele olhava seus entes queridos... aqueles que renunciaram ao seu convívio mais próximo, apoiando-lhe na sua dedicação. Agora eles iam para a caixa de papelão. Seu pedaço de família, naquela mesa, era guardado, desfeito, revivido desde a posse. A partir de agora iria ocupar um outro lugar em sua "baia" existencial.  
Foi desarmando seu ethos corporativo, sua toca, sua “baia”.
Abria as gavetas com cerimônia. 
Limpava, uma a uma, escolhendo o que levaria de pessoal. 
Até o som e cheiro do ambiente ele sorvia. Foi fazendo sua mudança para outra estação da vida e do viver.
Lentamente, sem pressa, como que a confirmar em cada gesto sua decisão.
Lá se iam 32 anos de dedicação ao BB. 
Quando ele falava dos seus projetos, em algumas reuniões que fiz, não tinha como não se contagiar pela sua vivacidade e satisfação com o trabalho. seus olhos brilhavam. Ele falava de mais do que um projeto, ali era sua identidade, sua razão e sentido da vida. Agora chegara a hora da partida. Do divórcio, de uma quase-morte.  
Aproximei-me e ofereci um aperto de mão. Ele olhou-me fixamente, com um sorriso no rosto. Disse-me, “vou aproveitar o Céu de Brigadeiro e voar para as coisas que deixei para trás e para as novas que virão”.
Mordi a língua para não chorar.
Saí de perto e perguntei a outro executivo se não haveria uma despedida, uma festinha. Ele falou que foram pegos de surpresa e que ele pedira que nada fizessem no seu último dia. 
Entendi então que ele estava vivendo seu velório corporativo. Ele estava velando seu próprio crachá.
Se despedindo do sobrenome corporativo. Do ramal. Dos cartões personalizados.
Era um momento de profunda grandeza e humanidade. De rara beleza e sensibilidade. Nunca tinha presenciado.
Aquele dia ele dedicara ao seu luto, às suas próprias despedidas, de silêncio, de contemplação.
Inventei uma desculpa ao meu executivo e fiquei mais um tempo. Uma eternidade observando-o.
Alguns itens de sua mesa eram troféus, com certeza. A maneira que ele os guardava na caixa mais pareciam objetos preciosos.
Aos poucos, a sua mesa a  sua estação de trabalho foram se despindo, ficando sem cheiro de gente. Sem nenhum toque pessoal.
Era como se ele desarmasse sua barraca. Fizesse as malas. Para uma nova viagem, agora definitiva.  Uma viagem em busca de si mesmo, das fantasias perdidas, dos projetos adiados, dos sonhos adormecidos. 
Lentamente ele tirou o crachá.
O olhou...o  olhou... Num olhar de séculos de expressão.
Quanta dedicação estava presente naquele plástico!
Quanta história, realizações, sofreres e prazeres carregava aquela matrícula de oito dígitos!
Por fim, contemplou os lados, como que olha pela última vez. Os seus pares executivos sentiram o peso do momento e fingiam estarem ocupados, lendo documentos vazios.
Lentamente ele tirou o cordão do crachá do pescoço. 
Depositou na caixa. Levantou-se da cadeira, ergueu a caixa como quem carrega parte de sua vida, como quem está de malas prontas e caminhou para a saída da sala.
Iria somente guardar a caixa no carro? Ele voltaria ainda para se despedir? Ninguém ousara erguer a voz e perguntar. Todos emocionados com o momento.  Talvez a dor da separação de amantes fosse tão grande que ele preferiu faze-la como quem sai de casa apenas com as chaves do carro e nunca mais volta. Talvez... Tem apegos, vínculos que de tão fortes precisamos negar a sua perda para sobreviver. E, e uma das formas, e fantasiar a realidade, não olhar pelo retrovisor a vida e tocar pra frente. Atrás tem muita saudade chorada. Muito apego amoroso. Muita coisa boa vivida. Saudade é caprichosa, se se olha muito para ela não se viverá o presente do futuro. Saudade é saudade, não se explica, se vive. Talvez carregando uma caixa de papelão cheia de memórias, sem olhar o que deixou, para ter forças de caminhar para o que virá. 
Na saída, parou... voltou-se para mim e sorriu!  Um sorriso de quem sabe que tudo que fez ecoará na eternidade. Um sorriso de infinitos, de quem está prenhe de novas possibilidades.
Um sorriso de abraços incontidos, um sorriso de quem se vai de bem com a vida, um sorriso cheio cumplicidades, de até-logos. 
Quando a porta fechou eu chorei! 
A gente se apega aos colegas. Somos seres de vínculos. E passamos boa parte do tempo no trabalho. É importante preparar-se para a despedida do crachá, da esposa-instituição. Creio pelo que conversamos meses antes, que ele preparou-se direitinho. 
Que ele voe e ajude a construir um outro mundo possível, com tudo que aprendeu em 32 anos de dedicação. 

Nas horas que agora lhe sobrarão, optará por trabalhar no que quiser e no ritmo mais apropriado, seja em funções remuneradas, ou não, como, por exemplo, as de adotar uma praça, ler para um doente, voltar a estudar ou simplesmente fazer nada, ou tudo ao mesmo tempo, como viajar e aprender finalmente a cuidar de si mesmo e dos amados que foi deixando ao longo do caminho.

Um tempo de delicadezas...


A manhã da sexta (19/07/2013) começou com uma notícia triste. A morte de um colega de Banco em Niterói-RJ, ontem. Ele cortava o cabelo num salão e o estabelecimento foi assaltado, quando saia do salão o marginal o atingiu com uma arma de fogo. Todos no nosso setor estavam chocados. O colega do BB que faleceu, tem um irmão também do BB e que trabalha em nossa diretoria. O que aumentava ainda mais o pesar. O silêncio de um luto mórbido, de uma morte besta, que chega sem pedir licença, reina.
Eis que um som de criança invade o setor. É sexta feira e uma colega resolve trazer sua filhota para conhecer o local de trabalho da mãe. Ela se chama Alice, tem três anos. Quando soube da idade fiquei surpreso. É uma menina desenvolta, comunicativa e mais parece que tem uns cinco anos, apensar de ser miudinha.
Por um momento a alegria de Alice, sua força vital, sua presença angelical, nos abençoa e sara atenua nossa dor.
Acho que as crianças têm esse dom de nos fazerem melhores e de acreditarmos em dias melhores. De tão serelepe, a Alice mais parecia a Emília, do Monteiro Lobato. Logo os colegas aproximam-se dela tome mimos.
Parece que todos estamos precisando da Alice. Aproximo-me também. Pergunto-lhe o que ela gosta de comer e ela responde com um sorriso doce: arroz, feijão, batata frita, cebola. E digo, Cebola?
Eca Alice!
Eu não gosto, e dentro dela mora um mostro. rsrsrs
Ela me olha assustada e feliz. Sacou que era uma brincadeira.
Como por mágica e bênção o ambiente fica mais leve. Além do luto, estamos muito cansados. Findamos a primeira semana de um enorme processo seletivo, coordenado por nossa Área.
E as tensões, são quase que intrínsecas em processo da espécie.
Alice, “anja” Alice, reina entre nós. Com sua vivacidade, com sua eloquência tagarelante, vai dialogando com cada um da gente.
Noemi, a sua mãe, olha para ela toda explicada e falante, no meio de marmanjos e marmanjas, e fica cheia de si - vaidosa e amorosa, como todas as mães.
Após um tempo vamos nos dispersando.
Noemi senta Alice numa das estações de trabalho que estava vazia. Fornece-lhe lápis, papel, e ali ela finge trabalhar. Passo perto e pergunto-lhe se já ligou para o Papai-Noel. Ela me olha com olhinhos faiscando de curiosidade. Apresento-lhe o telefone e digo-lhe para tentar.
Uma amiga saca a fuleiragem e chega perto pra contracenar. Eu vou saindo, e, por sinais, digo-lhe para ligar da “mesa da Alice” para o meu ramal, botando-lhe para falar com Papai Noel.
Na minha “baia”, escondo-me debaixo da mesa. Puxo o telefone e aguardo o toque.
Passado uns segundos o telefone toca. Atendo. Na outra linha era a Alice. Falo que sou o Papai Noel, ligando da Groelândia-Baia-mais próxima. OH OH OH...
Ela toda feliz.
Pergunto-lhe o que quer ganhar de Natal. Ela diz que um anel.
Pergunto-lhe se de ouro ou lata. Ela diz lata.
Pergunto-lhe mais uma vez, atônito que fiquei, e ela confirma: de lata.
Sua voz é decidida.
Ficou um tanto frustrado, gastei minha porção mágica de papai-noel para levar da distante baia-Groelândia, para a Alice, um anel de lata.
Todos caem na risada. Continuo fingindo e pergunto o que ela quer para a sua mamãe ela diz: um vestido.
Despedimo-nos, não sem antes desejarmos votos de feliz Natal.
Passo perto dela e pergunto-lhe se falou com o Papai Noel. Ela diz que sim, que vai ganhar um anel de lata e que o Papai Noel estava sério.
Pronto. Até minha performance caiu na esperteza da Alice.
Não sabe ela que fora sua lata que me desconcertara e por isso perdi a graça da brincadeira.
Fiquei serio e emocionado com tamanha singeleza.
Despedi-me do pessoal e da Alice, iria usar à tarde para fazer uns exames que o periódico de saúde recomendou. Nada sério. rsrs
Dirijo para um dos hospitais pensando em como são belos os sonhos de Alice, que agora deixou de ser Alice, tornando-se Alice das Maravilhas.
De tão mobilizado que fiquei acho até que passei por um pardal (radar) com velocidade acima da permitida. Paciência.
Da maravilha que é se sentir bem usando um simples anel de lata. Místico e mágico anel.
Da maravilha de ser quem é, da maravilha de SER, só SER, em relação aos outros pobres e insustentáveis, do ponto de vista de felicidade existencial, outros “ER” - Poder e Ter.
Alice é.
Amanhã vou procurar um anel de lata para a Alice.
Saindo do trabalho deparo-me com as painas das paineiras brancas forrando o solo qual um lençol alvinho, alvinho.
Na outra esquina deparo-me com uma árvore alta, cheia de galhos secos, nenhuma folha sequer. Toda seca. De sua “copa” emergem flores vermelho-carmim, de seus galhos idem. , Trata-se de um bougainville que nasceu ao seu lado e subiu por ela, enroscando-se numa simbiose fraterna. De longe, ver aquela árvore ressecada e florida fornecia uma cena de indescritível beleza. Da morte nascia a vida. Uma vida que encontrou, mesmo que numa árvore seca, um suporte para sua existência e brilho.
Vou voltando então para casa.
É perto das quatro da tarde. Agora estou bem perto de casa, já sigo pela Avenida do Sol do Jardim Botânico, em Brasília.
Não sinto fome e não almocei. Estou saciado, num frenesi para sentar-me e escrever o que vivi. Confesso que vivi.
O coração cheio, transbordando de emoções de um dia intenso.
Eis que à minha frente segue uma carroço de burros. Reduzo a velocidade para ultrapassá-la com segurança e noto que seu proprietário fizera tal quais as carroças do velho oeste dos EUA, fazendo uma espécie de barraca improvisada, com uma colcha laranja.
Agora é que fico curioso mesmo.
Quem será que a dirige?
O que ele leva ali de tão precioso que fez aquela “casinha rústica." Fiquei me punindo por está sem a máquina. Daria uma foto linda. Aproximo-me, vagarosamente, e o corto. Vou olhando, olhando. E me comovo, mais uma vez.
Trata-se de um senhor idoso, cabelos brancos, tocando seu burro com altivez de um puro sangue. Sentado ao seu lado, no banquinho da carroça, duas crianças.
Que cena linda!!! Quanto cuidado e carinho para com seus filhos ou netos. O sol estava implacante e ele teve a ideia de fazer uma armação rustica e sobre ela colocar a colcha. Se aquele senhor tiver um nome, na eternidade, será Protetor.
Quantas emoções invadiram meu viver e que necessito publicá-las ao compartilhar com vocês:
Uma criança e seu anel de lata; Um tapete branco sobre o solo, fofinho, fofinho, cheio de plumas das painas; Uma árvore que mesmo morta, ressurge com a força das flores de quem a toca, tomando-lhe por empréstimo seu brilho, sem anulá-lo. Um carroceiro e suas crianças, protegidas do sol por uma velha colcha laranja.
Que dia de vivências felizes: o anel de lata da Alice; o solo forrado de plumas brancas; o vermelho-carmim de bougainvilles, em cio, apoiadas em galhos secos; a colcha laranja que protege do sol e poeira do Cerado. .
Em cada cena uma pitada de infinito.
O infinito da humildade e sabedoria, de um simples anel de lata.
O infinito da paz e harmonia, de um campo vestido de plumas brancas.
O infinito da compaixão e solidariedade, das flores que só se embelezam quando servem aos galhos secos que a acolhem.
O infinito do cuidado e amor, de uma colcha laranja que protege do sol e poeira.
Em nós habita a eternidade, com esses valores. É só deixarmos que eles aflorem.
É só deixarmos falar e agir em nós a Alice que se encontra adormecida e que um dia fomos.
Aquela Alice que ficava tão feliz brincado com coisa pouca.
Aquela Alice plena de autoestima e sentido da vida.
Aquela Alice que em meio ao caos de um dia desgastante, no desgastante processo de amadurecer, encontrava razões para brincar e fantasiar que cuidava de um monte de bonecas, algumas sem braços, desformes, mas que na sua fantasia eram plenas.
Todos temos essa Alice em nós adormecida.
Todos podemos converter nossos anéis de lata de cada dia, no mais belo e significativo anel que alguém já usou.
É só vê-lo com os olhos do amor.
Onde mora seu tesouro? Onde mora seus valores?
Nem ouro, nem prata poderão nos fazer felizes se não temos a nós mesmos, e aos outros, em consideração e estima.
E, quando assim nos e os tivermos, um simples latão será suficiente para alegrar-nos e dá sentido ao nosso viver. Quanto ao luto, percebi que o amor o invade e o processa, no seu tempo, no seu ritmo. Basta acreditar na força de uma anel de lata, de um chão de plumas, de uma flor em galho seco, de uma colcha laranja. Viver é terapêutico e a vida cura. Mas, não apresse o rio da dor e do luto. Ele precisa de choro e de sofrer para seguir seu caminho.
Fiquei surpreso ao constatar uma coisa tão óbvia. Onde você guarda seu tesouro, e o que lhe atribui de valor, será ali que habitará e crescerá o amor em seu coração. Pense nisso!
Não me contive e voltei para fotografar a Paineira Rosa, e seus frutos que se abrem em paina de plumas brancas; além da trepadeira vermelho-carmim que fez amizade com os galhos secos.
Alice, eu e vocês merecemos essas fotos que ilustrarão essa crônica pela vida afora. 
Antes que me esqueça deixo-vos conselhos simples:  Vivam intensamente e perdoem-se sempre. Não guardem mágoas, ódios encardidos. guardem só por uns tempos. Até passar a raiva. Se demorar muito, você estará passando recibo contra si mesmo. 
Nunca saberemos o quanto de vida nos restará. 
Portanto, esteja sempre com a contabilidade dela em dia. Que no teu balanço sobre amor no ativo e falte indiferença no passivo. Amém!

"Amarre seu arado a uma estrela"


Aprendi a descarregar minhas emoções num celular-pedra. Quando estou nervoso, estressado, ligo para um "ente" qualquer e desabafo. Ou xingo! Ou ambos...
O pessoal da equipe se assusta. Param o que estão fazendo. Depois, ao perceberem que é uma pedra, riem e também relaxam.
Por outro lado, aprendi a carregar minhas emoções contemplando um frágil pássaro de papel que fez ninho no meu celular-pedra.
Faço votos de amor ao infinito, contemplando-o.
Somos assim; rocha e liberdade. Utopia e realidade.
Esperança e cansaço. Fortaleza e fragilidade. Brutalidade e poesia.
Somos assim. E e E. E não é e ou. Somos completos, enquanto diversos. Em nós cabem muitos nós. Todos os nós, nós nossos, nós que tecemos nos encontros com os outros e que agora constituem nossos próprios nós, e dão sentido à nossa rede existencial.
O lastro no qual apoiam-se o celular-pedra e o pássaro-alado é feito de esperança. Ela, filha do amor de Utopia com Realidade, está sempre grávida de possibilidades.
Assim, não desanime. Haverá em seu viver dias mais fortes, dias mais frágeis.
O que nos diferenciará é a mística e magia de viver. É a abertura ao aroma do viver, com todas suas contradições e dificuldades.
É o "amarrar nosso arado a uma estrela". Isso fará toda a diferença no sobreviver.
Hoje foi um desses dias, rocha e pássaro.
Um dia difícil. Duro de engolir. Repleto de sentimentos contraditórios, de impotências comportamentais. Eis que caminho envolto em sentimentos-rocha, caminho por entre silêncios de carros em movimento, contemplo o nada.
Paro, para atravessar para outra calçada, fito o alto de uma bela árvore.
Miro numa flor que desafia suas folhas e irrompe no alto em busca de luz. Quase uma flor-troféu. Ajeito a máquina e tiro uma foto.
Pronto, a poesia invadiu a dureza do dia, da rocha, e eternizou meu olhar num fim de tarde, um olhar em busca de horizontes, que chamamos de amanhã.
Respiro fundo e agradeço as pitadas de poesia que atenuam o meu existir. Melancólico e feliz aceito as dores do parto do existir.

E sobre mais do que gatos vadios...


Hoje vi uma cena inusitada. Um ratinho com ração e outro com água denunciava que ali havia alguém que cuidada de um animal. Procurei a informação e descobri que era de um gato. Felizardo gato.
Um gato corporativo. Ele mora no maior complexo de tecnologia de informação da América Latina, no Ed. Sede IV do Banco do Brasil.
Deve ser um gato tecnológico, daqueles que têm fixação por mouses. rsrs
Gosto de observar o novo e o velho se imbricando. Gosto de ver as contradições no muro do oficial, o espaço do demens, no sapiens sapiens que somos.
Fico imaginando o carinho do cuidador do gato ou gata. Todos os dias observa o nível aração, a quantidade de água.
Imagino quanto os homens-das-“ordens-são-ordens” já tentarem “limpar” as tigelas do local. Expurgar aquilo que contraria a ordem reinante: “Imagine, um gato por aqui! Que absurdo!”
Como são felizes os arautos do inusitado, do fazer o não feito, do pensar o não pensado.
Os que saem do quadrado e são eles mesmos, autênticos.
De tanta padronização, de tanta overdose de “seja assim”, “compre isso”, “vista aquilo” vamos perdendo nossa identidade que nos diferencia.
Vamos nos homogeneizando e ficando todos moldes.
Um gato nessa hora se alimenta desafia nosso senso de realidade, fantasia que é. No escuro de bits e bits, no frenético pulsar de transações que processam alegrias de créditos recebidos; tristezas de dívidas que caem: “o cheque caiu na conta”, ansiedades de transferências que nunca chegam, embora prometidas; um gato ronrona pelos corredores.
Um gato que circula a nos ensinar que somos mais que máquinas. Somos seres de afeto. De cuidado. De mística e da mágica de um eterno acontecer, todos os dias, nunca igual.
Um gato que circula e agradece a água, a comida, deixada por uma pessoa que transcende a natureza das coisas.
Quem espera sua bacia de água e alimento?
Quem espera um cuidado qualquer, mesmo desafiando a natureza imanente das coisas dada pelos alienados como perenes?
De quem você cuidará, sem esperar nada em troca?
A quem fará o bem, só pelo simples fato de que é uma pessoa e que merece, como você, atenção, respeito e paciência.
Quem...?
Para quem se não encher sua bacia de água e colocar ração fará uma diferença danada?
Para quem você pode fazer a diferença, mesmo que com gestos simples, gentis, gratuitos?

Sobre todo existir pessoas recai uma hipoteca social.
É tão fácil esconder-se por trás das normas, dos processos, das vestimentas do poder fantasiadas de hierarquia e não ser.
É tão fácil se embrutecer.
É tão fácil, repetir os não que ouviu. Reproduzir a secura com qual foi tratado. Negar o reconhecimento que nunca recebeu.
É tão fácil ser chato, ruim, bruto e insensível.
É só deixar de alimentar o gato.
Romper é um convite que te faço.
Romper ao estabelecido. Romper ao previsto. Romper ao concebido.
Romper para abrir espaço ao novo que teima em querer aflorar em teu coração.
Romper.
A cadeia de mentiras; a corrente de descrença; a falsa proteção de fazer tudo como sempre foi... Romper!
Criar novos tempos. Ser gente. Manso, humilde e cooperativo.
Alimentar os gatos e gatas que só precisam de um pouco de teus dons, de tua atenção, de tua fortaleza e liderança.
Nessa noite compartilho a esperança na humanidade. Se ainda tem gente que num ambiente de trabalho alimenta um gato vadio... Imagine o quanto podemos fazer uns pelos outros.
Corta a cena.
Hoje testemunhei um gesto recíproco de perdão entre colegas de trabalho. De tão emocionante, sai um pouco da sala para tomar ar e não me emocionar na frente deles.
Mais dois cuidadores de gatos corporativos a humanidade ganhou.
Quem guarda ódio morre um pouco a cada dia. Meus colegas reviveram pela arte do diálogo. Pela arte de ouvir as razões do outro. Tentar entender seu mundo e o que lhes fizera ficar tão triste - um com o outro.
Meus colegas alimentaram o melhor gato que habita em seu interior e fizeram-se afeto, compreensão e justiça à minha frente. Que dia rico em ternura... Quantos ensinamentos. Vou encher uma panelinha de água e ração amanhã. Vou conservá-la sempre perto de mim, podendo vez por outra servir para alimentar pessoas sedentas e esfomeadas de cuidado, respeito e dignidade que possam circular por onde habito.

Me perdoou por me trair.



Era um sábado nublado, como nublado estava meu amigo com quem sai para conversar.
Sua expressão era triste, sem viço, sem energia.
Antes tão cheio de fé, força, pujança, agora vê-lo daquela forma, barba por fazer, cabelos desgrenhados me doía no fundo do coração.
Revelou-me que estava desencantado. Sentiu o peso de não ter sido compreendido, o peso da ingratidão, do jogo de poder.
Não conseguia mais jogar o jogo.
Ele me conta que cansou de combater, que coisas que antes eram fáceis tornam-se difíceis, e talvez, a mais difícil seja constatar que cansou – pois ele nunca antes cansara.
O mundo do trabalho, antes tão estimulante, agora gerava medo, pânico, terror em não fazer frente aos desafios.
Em sua pequena agência ele fazia tudo. Encarava metas, falta de recursos, intrigas da corte. Tudo encarava com um enorme júbilo, como que em cada desafio ele tivesse que mostrar a si mesmo que era capaz de vencê-lo.
Um dia quebrou-se por dentro. Algo parou de fazer sentido.
Olhou-se no espelho e já não se sentiu o mesmo guerreiro. O mesmo desbravador e líder de antes.
Seu grupo notara e a cobrança de viver o papel costumeiro o tornara mais impotente ainda.
Tinha vergonha do que sentia. Tinha medo de atender o telefonema e na outra linha deparar-se com mais um desafio a ser perseguido.
Sentia que não tinha mais as mesmas forças de antes.
O que lhe acontecera? Ele que sempre amara o trabalho e por ele tinha dedicado boa parte de sua vida?
Eram as perguntas cíclicas, que entre uma fungada e outra, ele me fazia.
Chorava vagarosamente, internamente o choro, eu podia sentir, era copioso.
Choro de séculos adormecidos, de noites mal dormidas, de dedicação exclusiva – agora não mais percebida como fazendo sentido.
Perguntei-lhe o que aconteceu nos últimos. Ele revelou coisas cotidianas em qualquer organização do trabalho: falta de reconhecimento, ingratidão, jogo de vaidades, exercício indevido do poder, cobranças descabidas, sapos digeridos, sapos expelidos...
Perguntei-lhe o que mudara de tempos atrás, se essas mesmas situações ele já vivenciara.
Falou-me que sim. E isso era o que mais o maltratava. Antes ele tirava de letra, sacodia a poeira, começava novamente, ou ligava o “tou nem aí”.
Agora ele me vela que ficou sentimental. Emotivo. Tudo o machuca. Ele sente-se estranho, assustado e esquecido por todos; tal qual o verso do poema do The Doors

People Are Strange

“Quando você é um estranho, rostos saem da chuva.
Quando você é um estranho, ninguém lembra seu nome...”

Naquele sábado sofri com aquele gerente de agência, com tantos anos de dedicação.
Perguntei-lhe como andava a vida pessoal e ele me revelou suas dificuldades.
Não tinha senso de humor, tinha perdido a vontade de fazer coisas para ele mesmo que antes lhe dera prazer. Vivia cansado e só queria dormir ou zapear o invisível à frente de uma TV.
Assistia a todos os programas de TV, mas não via nenhum.
Perdeu a vontade de receber amigos, de sair, de ir a festas e até de “conhecer” sua mulher.
Tinha fobia social e temia que parentes mais próximos fizessem a pergunta cruel:
“O que você tem, está me parecendo tão murcho?”
Revelou-me que seu maior medo era deprimir e não conseguir reagir, voltar a sentir a alegria de viver e de encarar os obstáculos da vida como antes fazia.
Ele temia que seus filhos e esposa cobrassem dele uma postura mais participativa no lar, mais atenciosa e que ele não encontrasse forças de desempenhar esse papel.
Na verdade, sentia-se murcho tal qual maracujá de fim de feira.
Queria respostas de mim. Queria que eu enquadrasse sua “doença” numa planilha de sintomas e causas, prescrevendo-lhe uma “solucionática” para sua problemática.
Tive uma profunda compaixão nessa hora.
Já vira esse filme antes, até comigo mesmo, e sabia o quanto seria lento o processo de cura interior do que quebrar por dentro.
Ele, por amar seu trabalho e não mais conseguir lidar com as limitações entre o sonho e a realidade, estava com a Síndrome de Burnout.
Minha velha conhecida que a mantenho com fome em meu interior.
Afinal, nunca a matei.
A domo, do verbo domar, por inanição.
Os sintomas dessa síndrome do esgotamento laboral são diferentes do estresse ou depressão.
Elas atingem a autoestima laboral, o sentido do trabalho. E, paradoxalmente, só são acometidos por ela aqueles que encontravam um enorme sentido no seu trabalho.
Seus “clientes” prediletos eram o pessoal da saúde, da educação, policiais e funcionários públicos. Hoje a Síndrome, melhor estudada que foi, não escolhe profissão.
Têm em profissionais perfeccionistas, líderes mobilizadores, altamente engajados e comprometidos com a profissão – seu público-alvo predileto.
Atinge-lhes no cerne da autoestima ao fazê-los perceber que não mais conseguirão manter a voltagem para cumprir prazos exíguos, atingir metas ousadas, mobilizar equipes apáticas e negociar com áreas difíceis.
Aos poucos vão fenecendo.
Um dia o filamento queima (burn). E queima na relação dele com tudo que está no exterior (out.), ou seja: Burnout.
Olhos vazios no pôr-do-sol do DF que iniciara seu espetáculo diário perguntou-me o que fazer.
Respirei. Respirei.
Uma palavra errada, um tom fora do prumo podia aumentar sua crise.
O que falar? Como nós psicólogos sofremos com essa questão.
Falar ou não falar. O que falar? Quem fala?
Pra que falar? Quem escuta o falado se o falado não for falado pelo próprio receptor da fala querida.
O que falar?
Saia do emprego? Isso acontece com todo mundo? Coragem você é forte?
Vai passar?
Fulano já teve isso e fez assim...?
Ou, isso já aconteceu comigo?
Procure um psiquiatra?
Procure ajuda na fé?
Faça yoga, tai-chi, alimente-se com alimentos naturais?
Faça caminhada, tire férias, passei?
O que falar?
Por que falar?
Quase lendo meus pensamentos ele pede uma cerveja para brindar o encontro de amigos.
Troca de assunto e fala de sua família, de sua casa, de seu cachorro.
Fala de nossa região na Paraíba. Da saudade e da última vez que lá foi.
Fala de seus planos para as próximas férias e da última lente de máquina fotográfica que comprou.
No fundo de sua alma escuto a pergunta: “O que faço?”
Sua razão desvia o assunto, acomoda meu silêncio numa profusão verborrágica de cenas cotidianas.
Peço outra cerveja e brindo ao mais normal dos sentimentos humanos, mais normal do que o amor ou o ódio, mais normal do que o júbilo ou a esperança, convido-lhe a brinda ao perdão.
Ele não entende.
Falo que uma possível saída, sem excluir a busca por ajuda na psiquiatria, é o seu auto-perdão.
Confuso ele para de sorver a cerva, bigode branco fustiga-me um olhar como que a me pedir explicações.
Revelo a ele como domei meu mostro interior que em 2003 acordou.
Domei perdoando-me.
Perdoando-me por me trair.
Como diz a canção do Chico Mil Perdões

“Te perdôo. Por contares minhas horas. Nas minhas demoras por aí. Te perdôo. Te perdôo porque choras. Quando eu choro de rir. Te perdôo. Por te trair.”

Traí a mim mesmo. Ao que esperava de mim. A minha própria autoimagem.
Traí e me perdoei por me trair.

Não dei conta. As situações enfrentadas deixaram sequelas, acumularam-se e foram mais fortes do que minhas forças - e trai a mim mesmo, sendo frágil.
Ajoelhei-me, prostrei-me no chão diante de tantas coisas a fazer, situações a vencer, imagem a zelar, pessoas a encantar, agradar, convencer, tolerar.
E me perdoei por me trair.
Perdoa-me, perfeição, profissionalismo, comprometimento, me perdoa por te trair.
Não consigo mais render como antes. Perdoa-me!
Perdoa-me por não ser mais o que esperam de mim, nem ao que eu espero de mim mesmo.
Cansei do papel e tiro férias por uns tempos.
O não já tenho. O zero idem. Que mais, de mais difícil, pode acontecer que olhar minha própria face desfigurada no espelho, sem formosura e graça, revelando o peso de me sentir impotente para reagir às mais corriqueiras situações?
Que mais?
Perdoei-me por ser frágil. Por não desempenhar mais meu predileto papel a contento.
Compreendi meus limites.
Aceitei-me na dor, da angústia, na incompreensão que tudo me causava.
Aceitei-me como triste, melancólico, sem vigor.
Abri meu coração para amigos, para familiares.
Contei-lhes que estava vivendo um tempo diferente, um momento novo.
Que não era nada pessoal com eles, era o meu momento de perder parte da casca e num doloroso processo de metamorfose reencontrar outros sentidos para o viver, afora o trabalho.
Pedi ajuda.
Pedi que não tomassem como pessoal minha cara amarrada, minha falta de humor, minha descrença nos tempos melhores.
Disse-lhes que estava quebrado por dentro e que o processo de reconstrução seria lento.
E que talvez, desse processo, não brotasse mais o mesmo Ricardo de antes.
Mas que seria o Ricardo possível. O Ricardo vivido, envelhecido, processado e aceito por ele mesmo como um ser em contradições.
Perdoei a mim mesmo. Revelei o que sentia aos meus amigos e familiares, pedindo-lhes para não mudarem para comigo mesmo e me aceitarem em meu período de deserto.
E, por último, aprendi a vencer um dia de cada vez.

A tolerar-me em minhas imperfeições, um dia de cada vez.

A tentar vencer mais um desafio para o qual parecia que não teria forças, um de cada vez.

A superar a fobia social, uma vez por dia.

Aprendi que nem sempre venceria. Que teria dias melhores e piores.
Aprendi a conhecer meus limites.
E a nem sempre vencer o medo e o terror de não dá conta.
Aprendi que entre uma crise de autoestima, de sentimentos de impotência e de querer desistir de tudo e hibernar numa rede, sempre haverá outro dia, que às vezes, sem razão nenhuma, acordaremos melhores.
Aprendi, por último, que a fé em Jesus é um bálsamo e porto-seguro para juntar-me á sua misericórdia paixão e sofrer com ele no caminho para o calvário.
Meu amigo congelara a cerveja no ar.
Não sabia se o que falava era absorvido.
Ele pediu para repetir o lance do perdão por me trair.
Expliquei-lhe que a maior porta de entrada do Burnout é nossa autoimagem. Nossa autoestima.
É a imagem que projetamos de nós mesmos nos outros que tememos perdê-la, e ao fazer isso, alimentamos o monstro interior do Burnout e ele cresce, invade todas as áreas de nosso ser.
Ao nos perdoar por não ser mais a imagem que construímos de nós mesmos, abrimos espaço para a reconstrução de nossa identidade, de nosso infinito particular.
Ele chorou.
Revelou que desde pequeno sempre foi o mais aplicado. Sempre foi o mais atenciosos, mais comprometido, mais envolvido.
Sempre ouviu elogios ao seu desempenho, aos seus resultados e que aquilo seria difícil e não mais ouvir.
Falei-lhe que seria um luto, um divórcio dele mesmo, mas que ele sobreviveria e encontraria outro tom, om outro jeito de ser que o explorasse menos, que o mobilizasse na busca pela excelência de outra forma.
Que se ele não se cobrasse tantas respostas, tanta valentia, tanta disposição, tantas mudanças de situações difíceis e nem sempre fáceis de mudar ele não teria adoecido, como não adoecem milhões de trabalhadores que aprendem desde cedo a diferença entre fazer do trabalho o sentido da vida e fazer da vida o sentido do trabalho.
Ele agradeceu-me e pediu a conta.
Meses depois ligou para mim. Estava alegre. Comemorava o primeiro dia que se sentia novamente em paz e feliz.
Perguntei-lhe o que aconteceu?
Ele disse-me que se traiu e que adorou. Que finalmente relaxou e que parou de se cobrar tanto e de se importar com quem não se importa, ou com coisas que não importam. Só no dia anterior e por isso ligara. Disse-lhe, então siga em frente, um dia de cada vez. Um melhores, outros piores, mas o dia de ontem mostrou-lhe que é possível.

Empatia

Como seria bom se tivéssemos a função CHKDSK (Check Disk), nas nossas vidas.
Esta função, presente no Sistema Operacional Windows checa a integridade do sistema de arquivos de um disco rígido, corrigindo os arquivos/áreas defeituosas. Tal qual a foto tirada de meu notebook, ao ter a função chkdsk ativada.
Arquivos não indexados, corrompidos e com entradas órfãs vão sendo corrigidos, com o CHKDSK.
Como em nossa vã pretensão de ter controle sobre as coisas sonhamos com a possibilidade de reconectar-nos ao nosso diretório central. De aproximar sentimentos órfãos, pessoas órfãs - de nossa caminhada afetiva, situações órfãs, e por órfãs, tão distantes que nem lembranças mais são.
Como em nossa vã pretensão acabamos por achar que será fácil reviver sentimentos, saberes e momentos, num todo que nos façam sentido, tal qual o “diretório central” do Windows.
Nem sempre podemos. Nem sempre, por melhor que seja nosso Sistema Operacional e o seu CHKDSK interior daremos conta de “corrigirmos entradas órfãs, arquivos corrompidos ou não indexados”.
Quando a ação para correção depender de nossas posturas, atitudes e comportamentos, bacana, a isso chamo de crescimento existencial.
Mas, quando a situação que causa um desconforto no nosso SOI (Sistema Operacional Interior) depender de mudanças no outro, de situações sobre as quais não temos controle, ingerência e responsabilidade, aí já viu né!
Afinal, viver é se perder e perder.
Um perder de coisas que nos atrapalham de crescer, de vistas de um ponto, de referências, e até de nós mesmos. Faz parte do pacote. Vamos perdendo para achar. Para filtrar a essência, descartar o supérfluo e acumular realmente o faz sentido guardar e ficar.
E assim, vamos largando uma coisa aqui, outra acolá.  Hoje um amigo muito me tocou. Ele está precisando demais passar o CHKDSK no seu ser.
Precisa voltar a “indexar” seus arquivos interiores, que estão órfãos de sentido.
O que o fez sentir-se órfão de si mesmo? As mudanças pelas quais passaram sua família nos últimos dois anos.
Vejam como ele as descrevem:
“Eu cresci com aquele sentimento de família unida, de muito amor, de união, que não tinha problemas. [...] cresci com a ideia de família perfeita, de muita união, de sinceridade. Via as outras famílias em crise, em discussões e sentia um orgulho muito grande, pois pensava que aquilo ali não acontecia na minha família. Minha mãe faleceu há pouco mais de dois anos e de lá pra cá as coisas deram uma desandada. Estou com um irmão que está com problemas com alcoolismo. [...] Estou com uma sobrinha adolescente com problema de drogas. E fui descobrindo, tomando ciência dos fatos, acordando para a vida.  Claro que nunca fui cego, mas talvez por não ter sido "treinado" para enfrentar essas dificuldades, por ter crescido com a ideia da perfeição. Acredito que eu somatizo muito. Eu choro a dor dos outros, em me preocupo, eu deixo de dormir bem, meu humor mexe... Enfim, fico uma bosta. Não é um problema meu, não vou conseguir impedir muita coisa, mas isso me cria uma angústia, um sentimento de impotência, de raiva e tristeza.”
Li e reli seu relato umas dez vezes. Em cada linha um brado, um grito, uma sensação de estranhamento com tudo que lhe ocorre.
Ele pede socorro. Sente-se inválido emocionalmente para lidar coma situação.
Na sua vontade de sentido criou um mundo seguro, em paz, no qual habitam todos os que ama.
Criou um ethos de amor, uma “casinha na roça” para cultivar relacionamentos.
Eis que as coisas começam a sair do controle. Um irmão que dá trabalho, que dói vê-lo estragando sua vida com o álcool. Uma sobrinha, de outro irmão, que sucumbe às drogas, numa trajetória muitas vezes sem retorno.
Aí ele sofre. Aciona o modo compaixão e absorve as dores de todos. Afinal, eles são seu “diretório central”. E, cresceu “com a ideia de família perfeita, de muita união, de sinceridade.”
Entranho tudo isso lhe martiriza e agride.
Em luto, procura insistentemente reconectar seus arquivos familiares – órfãos pelas escolhas que fazem em seu viver.
Em luto sofre.
Ao sofrer, alargar a dor numa avenida, irradiando na sua própria família o pesar com o qual convive.
Como é comum essa cena.
Como queremos que as coisas sejam do jeito que foram um dia. Queremos resgatar situações bacanas, sem ter que nos despedir delas.
Viver sua morte. Seu ponto de mutação.
Assim, vamos acumulando – tal esponjas, as dores da humanidade.
Um pedido de socorro. Ele precisa reconectar-se para encontrar a paz. E, é justamente nessa necessidade de reconexão, que ele se perde novamente e sofre.
Ele quer juntar ao diretório central de sua família valores de tempos idos. Como se pudéssemos voltar ao passado, trazer dele as coisas que nos fizeram bem e consertar o futuro.
Como queremos que as coisas sejam do jeito que foram um dia. Queremos resgatar situações bacanas, sem ter que nos despedir delas.
Viver sua morte. Seu ponto de mutação.
Assim, vamos acumulando – tal esponjas, as dores da humanidade.Como se pudéssemos ativar a função CHKDSK no outro.
Não, não podemos. A decisão de mudar é dele.
A escolha, idem. Os ônus, bônus, e renúncias idem.
Todo mundo que tem uma pessoa que precisa de atenção e cuidado na família sofre esse dilema. O dilema do cuidador – mais cedo ou mais tarde será ele quem precisará de cuidados.
De tanto envolver-se na dor do outro, numa empatia simbiótica, esse ser quebrasse em mil pedaços, como que para conter, lidar, estancar a dor que sente pelo outro.
Desindexa de seu próprio diretório central, dando vida a outros núcleos de diretórios centrais que agora farão parte de sua tentativa de perceber-se como um ser de sentido – mesmo que um sentido projetado no outro que é percebido como alguém que sofre.
Tem casamento vivendo esse dilema. Pais que cuidam de filhos “especiais”. Filhos que cuidam de pais “especiais”.
Especiais seres que cuidam de “especiais” amigos ou familiares.
Veja relato abaixo:

"Desde a infância, passando tbm pela adolescência, tive facilidade no Estudo no campo das Exatas. Matemática, Física, etc. eram matérias que me dei sempre bem. Eram meu chão. Sabia resolver fórmulas nas quais muitos de meus colegas tinham dificuldades. Criei na minha cabeça ingênua que tudo na vida era fácil. Bastava encontrar a fórmula (de Báskara por exemplo) e tinha-se sempre uma solução (até como resultado de números irreais/imaginários). Mas fui crescendo e vendo que a realidade é outra, muito mais abstrata. Como seria excelente se tivéssemos Fórmulas para se resolver Problemas! Era só dar o comando e Vapt-Vupt! CHKDSK no Winchester e pronto!!!! Mas não!!! Não dá pra ser assim!!! Fiquei sem chão! Fiquei Deprê! Que ignorante fui! Não dava a importância devida às áreas de Biológicas e Humanas! Mas nunca é tarde pra acordar!!! Tombos, cabeçadas, tropeços, erros, são necessários para dar valor às coisas!!! Não é fácil encontrar o seu ponto de equilíbrio. Mas, conseguimos!!! Temos que ter fé!!! Primeiro em si, não é fácil, não. Depois contar com seus parceiros. Mas a vida é assim. Cheia de obstáculos. Fórmulas a gente precisa encontrar continuamente não só no campo das Exatas. "

É... nunca é tarde para entender o quanto é empatia, sentir a dor do outro,  e o quanto vai virando uma espécie de fuga de nossa própria vida, de indigestão emocional por excessiva compaixão ao sofrer do outro. Vamos deixando de viver nossa própria vida e encontrar sentido nela. Absorvermos em excesso o pesar do próximo sem cuidar de nossa própria saúde mental.
E aí vamos juntos. Embarcamos juntos e la se vai nossa família, vida profissional, amigos.
Esse comportamento é muito comum em cuidadores de doentes crônicos que vão se esquecendo de seu próprio viver. Não se cuidam mais e sua autoestima fica refém da autoestima daquele a quem destinamos nosso tempo e amor para cuidar.

Não temos como ativar a função CHKDSK no outro. Por mais amor que tenhamos. O máximo que podemos fazer é orientá-lo, ajudá-lo, perdoá-lo, amá-lo, mas a decisão de mudar será sempre dele. E não devemos nos punir, culpar e flagelar por isso.
Não temos esse controle todo sobre as coisas que gravitam em nossa emoção. Família, por exemplo.
Isso não quer dizer que devamos ficar frios, indiferentes, com falta de solidariedade e compaixão. Nada disso.
Significa que é do hiato entre o que queremos fazer e o que de fato pode ser feito que residirá o espaço da aceitação.
Aceitação de nossos próprios limites em teimar em devolver as situações á normalidade anterior. Isso só dá certo em computadores. E, mesmo assim, tem situações que de tão estragado que o HD está o CHKDSK não funcionará.
Tem que formatar.
Diria ao meu amigo que sofre pela sobrinha, pelo irmão: - você é eterno.
Quando sofremos pelo outro nos eternizamos.
Diria a esse mesmo amigo que sofre pela sobrinha, pelo irmão: - você não tem tanto poder quanto queria ter para mudar as situações com quais convive e não gosta.
Então, aceitá-las numa perspectiva crítica e tolerante, para longe de ser uma atitude de comodismo ou resignação, é sinal de autocontrole emocional e de realismo.
As coisas mudam. Configuram-se, desconfiguram-se.
Configuram-se novamente e assim vai.
Viver é se achar.
Achar as pontas do novelo da trama do viver e religa-los num tecido possível e que faça sentido.
Aperte seu CHKDSK interior e encontre sentimentos órfãos, lembranças desindexadas, pessoas que sua velocidade em viver as corrompeu de seu HD interior.
Viver é se achar, mas também é se perder.
Se perder de suas verdades sagradas. De sua mania de querer que as coisas voltem a ser como dantes. De querer controlar a tudo e a todos. Se perder de pessoas que te sugam, te oprimem.
Se achar de suas melhores fragrâncias, de suas melhores ternuras, de seus melhores momentos, de suas melhores pessoas.
Ligar o modo “hibernando” e compreender que as coisas evoluem ou involuem. Sem se levar tão a sério e sem querer viver o personagem principal, o mocinho, que muitas famílias associam a um de seus familiares. Sobre o qual é depositado o jogo, o fardo emocional de todos, como que nele as culpas e mazelas fossem expiadas.
De tanta dedicação aos outros acabam esses personagens acabam destruindo sua própria vida, pois só se encontram no papel do outros.
Casamentos vão para o saco. Relações pais e filhos. Relações entre amigos, do tipo sanguessuga. Até relações laborais. Tudo fica permeado por uma extrema codependência afetiva, mórbida, pois que destrói a mais tenra forma de vida que termina em nós se fazer presente, caso a morte ronde o outro, idealizado e mitificado em nossa fantasia de onipotência.
Só ficamos felizes se em nosso modelo mental tudo estiver ok. Nosso irmão alcoólatra, nossa sobrinha viciada...
De tanto viverem a vida e papéis do outro, tomando sobre si seus sofreres, perdem-se de si próprios.
Aceitar situações limites - sobre as quais pouco podemos fazer para mudar, visto que em última análise dependem do outro, mas sobre as quais podemos ainda assim mudar a nós próprios, no sentido do impacto que deixamos acontecer em nosso interior como resultado de sua convivência.
Se a situação é difícil, preliminarmente insolúvel, mude a si mesmo. Mude a forma com a qual reage e se mobiliza quando a situação, tida como difícil, ou fora de controle, acontece.

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