O Risco Social das Autoverdades. (Por Ricardo de Faria Barros)


Imagine que uma pessoa, tua amiga, está no centro cirúrgico de um hospital, submetendo-se a uma operação, e você tem acesso a esta foto do texto, postada pelo médico-cirurgião dela, no exato momento que a opera.
Não. Não é fake. O médico existe, e deixou entrar uma quentinha no centro cirúrgico, saboreando-a, na boquinha, ao lado de um infeliz com o corpo aberto.
Perguntado sobre o surrealismo da cena, ele assim se explicou:
“Quando você está no auge da profissão, atendendo pacientes que vêm de fora do país para operar o nariz com você... Dai vem Deus, e com a fome lhe mostra que você é igual a todos...” Dr. Marcos Harter, cirurgia em 18.03.2019.

Isto é o reino da autoverdade. Autoverdades são sentenças que declaramos sobre nós mesmos, sobre os outros ou sobre a realidade, que não se deixam submeter ao crivo dos conhecimentos, em sua complexidade multirreferencial.

Você define que comer numa UTI, operando um paciente, é se mostrar um ser humilde e normal, e que não há risco algum da entrada de alimentos no campo cirúrgico, e pronto.
Vale a tua verdade.
Não importa centenas de tratados sobre o risco de infecções hospitalares, nem normas de conduta, nem tampouco as aulas sobre a ética médica.
E, os profetas das autoverdades têm seus seguidores.
Se você se der ao luxo de pesquisar os comentários sobre esta “singela” foto, verá que muitas pessoas defendem a atitude deste médico:
“Afinal, ele estava com fome!”
“Afinal, ele é gente como nós!”
“Afinal, não tem bactéria em comida que foi pra o micro-ondas”. (SIC!)

Na era das autoverdades, voltamos à idade média e perdemos capital intelectual de análise - sistêmica, vertical e holística.
E aí qualquer pessoa cria sua própria verdade, posta, e arruma um monte de seguidores que a compartilham, conseguindo novos seguidores.
A Humanidade está perdendo o senso crítico e a capacidade de avaliação, de algo que lhe ocorre, sub as luzes do conhecimento científico.
Os gurus da autoverdade dizem e fazem, o que pensam e o que querem, sem nenhum dilema, ou pudor ético, afinal eles têm seus seguidores, que autoalimentam em posts de reconhecimento às insanidades que afirmam.
Vejamos algumas, dos tempos atuais:
 Funcionário público é ineficiente.
 A terra é plana.
 Não houve o holocausto.
 Os negros têm menos capacidade cognitiva que os brancos.
 As mulheres são mais frágeis que os homens.
 Nordestinos tomam empregos de paulistas.
 Presos não se ressocializam.
 Índios são preguiçosos.
 Brasileiros nos EUA não têm boas intenções.
 O carnaval é um bacanal.
 Falar em camisinha aumenta a precocidade sexual.
 A gestão da diversidade aumenta os conflitos.
 Não há assédio moral, nem sexual, no trabalho, isto é invenção da ideologia de classes.

Então, caros amigas e amigas, como reverter esta cultura tão perniciosa das autoverdades?
Só tem um jeito. Fazer como o Iluminismo fez: visitando as enciclopédias. Ou seja, lendo, estudando, questionando e se abrindo a outras interpretações de mundo, fruto do acúmulo de conhecimento da humanidade.
Rompendo a bolha da autoverdade em que se insere.
Se você está numa bolha de autoverdade ela se auto-alimenta, protege-se, e cria as condições para que o mais absurdo dos julgamentos, das avaliações sobre algo, sejam de fato percebidas como verdadeiras.
Você só consegue crescer, em autonomia, justiça e ética, rebelando-se contra chavões simplistas de explicação da realidade, do tipo de uma lógica 0 e 1.

Comece perguntando-se assim: Não haveria como aquele médico ter comido antes da cirurgia? Não havia como deter o instinto da fome, diante de um trabalho que está fazendo? Não havia uma área mais apropriada para um lanche? Objetos não esterilizados que ingressam no centro cirúrgicos são portadores de bactérias?

Quando não tenho todas as respostas, desconfio de afirmações excludentes, totalitárias, que colocam todos no mesmo padrão de julgamento.
Então, faço perguntas. E vou em busca de outras fontes de conhecimento sobre o tema.
Isto vale também para as horríveis fake-news. Que viraram uma espécie de autoverdade digital.
Como a foto de um cachorro em meio a lama, associada à Brumadinho, e que nunca foi de fato tirada lá. Mas, queremos acreditar nela, e passamos a decretá-la verdadeira, pois ela atendia aos nossos desejos mais íntimos de solidariedade.
E, para finalizar, cuidado com tudo que começa com “Segundo pesquisas”, usado para defender uma autoverdade. Não esqueça que as pesquisas, dos cientistas contratados por Hitler, terem afirmardo que o tipo de curvatura do crânio e nariz determinavam a pureza da raça.
E olhe no que deu!

O termo "Autoverdade "fui cunhado e definido, do jeito que este texto lhe apresenta, pelo filósofo Zygmunt Bauman (+2017), no livro Vida Líquida, no qual ele denuncia comportamentos que estão arruinando com o sentido de coletividade e de humanidade, na pós-modernidade.

Não. Não é fácil ser mulher! (Autor Ricardo de Faria Barros)


Não. Não é fácil ser mulher! E é preciso ter muita coragem.

Coragem de andar em ônibus e metrô sem ser molestada.
Coragem de chorar em reunião da firma, frente a decisões que impactarão a vida de muitos.
Coragem de brincar com os meninos, sem ser tida como masculina.
Coragem para arrumar o quarto de um filho que se foi
Coragem de vestir azul, ou não gostar de rosa.
Coragem em não querer assumir qualquer dos papeis esperados dela pela sociedade machista e patriarcal, inclusive o de ser mãe.
Coragem de se reinventar, após romances nos quais se entregou de corpo e alma, terem ido para o brejo.
Coragem em chamar atenção para os aspectos subjetivos da gestão, em meio à tanta racionalidade fria e desumana no gerenciamento.
Coragem de criar os filhotes, e tocar  lida do lar, sem a justa divisão de tarefas com o cônjuge.
Coragem de trabalhar em funções similares, porém ganhando menos.
Coragem para dizer que às vezes cansa ser mãe, e que ela precisa de seu próprio espaço.
Coragem em levar o carro na oficina, e não ser ludibriada.
Coragem em tirar "a burca" e reivindicar direitos civis, sofrendo ameaças de morte.
Coragem de receber em seu apartamento e não ser tida como fácil.
Coragem de sair na noite sem perseguida como caça sexual.
Coragem de discutir a relação sem ser agredida.
Coragem em continuar sendo sensível num mundo de tanta insensibilidade.Coragem de denunciar todo tipo de violência ou exploração que sofre.
Coragem de lutar por melhores condições de trabalho nas senzalas urbanas, com seus minúsculos quartos de empregadas.
Coragem de se erguer após ser violentada, muitas das vezes por pessoas que gravitam perto do ecossistema familiar.
Coragem de buscar a ascensão profissional, sem ser assediada pelos detentores do poder.
Coragem de usar a roupa que quer, a maquiagem que quer, sem se importunar com gente que a quer encarcerar em suas próprias prisões comportamentais. 
Coragem em estimular e apoiar os filhos, quando todos já negaram-lhes o apoio.
Coragem de dizer que o não é não. 
Coragem de soprar uma brisa azul refrescante e rejuvenescedora, em meio ao deserto emocional dos tempos atuais. 
Coragem em teimar amar, teimar ter esperança, teimar perdoar, teimar ter gratidão e delicadeza, olhando a vida com um olhar de poesia, em meio à aridez de valores atuais da contemporaneidade.
Coragem de ser feminina e vaidosa, mesmo cansada após uma manhã de trabalho, ao pedir para repetir a foto: "Agora sem os óculos, para eu parecer mais bonita".  Como falou a Carla, a da foto, que nos atende tão bem no estacionamento do Deck Sul, na QI 11 em Brasília-DF, ao nos brindar com sua visão positiva, otimista e bem-humorada da vida.  Ela vende mais que café, vende esperança!

E são assim as mulheres avós, mães, filhas, tias, parceiras afetivas e trabalhadoras, são portais da coragem e com esperança elas estão na batalha ousando subverter a ordem reinante!

Cartas ao JG – Na vida, aprenda a se curvar, escutar, ver e agir. (Por Ricardo de Faria Barros, pai do JG de 9 anos)

Sabe filho meu, nesta noite de uma quarta-feira de cinzas evoco uma canção para escrever a ti:

“Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais
Brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas
Foi o que restou...”

Escuto esta canção do Vinicius e lembro que nesta tarde, ao dizer-lhe que precisava ir deixá-lo de volta na casa de tua mamãe, já que ficara o feriado de Carnaval todo contigo, tu me abraçaste, todo choroso, e resmungando falou:
- Ah! Não!
Aí, tentei te consolar dizendo que o próximo dia de nos veros está logo ali, na outra semana, e faremos tudo outra vez.
Queria te confessar que estou reaprendendo a ser pai contigo, e após separado de tua mãe.
E tem sido uma experiência incrível e cheia de novas descobertas, de mil possibilidades de afetos, a cada reencontro nosso.
Lógico que as pessoas não precisam se separarem para aprenderem a ser pais, ou mães.
Mas, o desafio de cuidar de você, por 5 dias seguidos, sem uma mãe por perto a me socorrer, fez-me correr atrás e aprender a maternidade da paternidade. Um materno-pai estou me tornando.
Este carnaval, como diz a canção, deixou muitas saudades. Fecho os olhos e escuto tuas risadas, com os yuotubers que assistia.
Tapo os ouvidos e olho tu chutando bola, num campo deserto. De longe tu avistas eu me aproximar de ti. E, todo sorridente, grita:
- Papai, você veio jogar comigo, mesmo com a perna inflamada?
Vim filhote, fico agarrando. Tu chutas bola e eu tento pegar.
E foi uma festa.
Este carnaval teus irmãos estavam fora do DF, ou noutros programas. A casa do tio Guga e tia Patrícia, lugar de encontros aconchegantes, também estava fechada, pois eles foram para João Pessoa.
Então, era eu e tu. Tu e eu.
E como foram dias bons. Cada um deles tinha sua própria rotina. Acordar cedo. Sim, eu e tu acordamos cedo.
Preparar teu café: pão com queijo derretido, iogurtes e uma fruta.
Depois saíamos, cada dia para explorar um lugar e algo diferente.
Pedalamos pelas quadras desertas da Asa Sul.
Fomos ao Carreira, pra tu correr no Kart, depois brincar de autorama e no simulador de F1.
Também pedalamos no Eixão, Parque da Cidade e no Parque da Asa Delta.
Nadamos, fizemos churrasco e jogamos bola, no campinho de grama sintética, na AABB.
Cozinhamos em casa, uma deliciosa bisteca de porco com acompanhamentos.
Vimos filmes juntos. Daqueles com efeitos especiais dignos de um óscar.
E rimos muito, ao sincronizar o celular, que acessava o youtube, com o som do carro, ouvindo e vendo os candidatos do Programa Ídolos desafinarem e levarem bomba. Cada bomba mais engraçada que outra. E tu dobrava de rir.
Era entrar no carro e começar nossa risadagem.
A bicicleta ia sempre no porta-malas, cujos banco de trás eu deitei para que ela coubesse sem aperreio.
Mas, a cada pedalada tu reclamava do barulho que dela vinha. Eu não entendo nada de bicicleta. Um ciclista, vendo que estávamos parados olhando para ela, com um olhar de sei que lá, sei que lá, sei que lá, assumiu o comando dos trabalhos.
E, com expressão profissional, condenou a corrente. Segundo ele, tinha sido soldada e fazia o barulho. Mas que tu podias andar nela. E que nada ocorreria, até ela torar de vez. (Sic!)
No Parque da Cidade tu levou uma queda, ao frear dentro de uma poça de água. E, ao voltar a andar, o barulho cessou completamente. Milagre da queda, pensamos!
Mas, tão logo parávamos em algum lugar, e voltávamos a andar, o barulho voltava. Teco, teco, teco, teco, a cada volta que o pedal dava.
Eu condenei o cubo, dizendo que podia tá danificado. Tu, condenava o “médico da bicicleta” para o qual tua mãe já tinha levado ela, com este barulho, e umas três vezes. “Na última, ele nem cobrou”, dizia tu, em expressão tristonha. Não por não ter cobrado. Mas, por não ter consertado.
Aí, fiz algo diferente. Abaixei-me para ver e ouvir de onde vinha o barulho. Girei a manivela da bicicleta, que tava de pernas para o ar, e fiquei com olhos e ouvidos atentos.
E pensei:
- Achei onde é o problema.
- É a face interna do pedal que está batendo na haste do descanso da bicicleta.
De pronto, tu saltaste de onde estava, e, assumindo o controle da situação, empurrou a haste mais para dentro do pneu.
Montou na bicicleta e pedalou. E abriu um sorrisão tão lindo, como a tanto tempo não via vindo de ti.
- “Papai, achou o problema!”
E achei mesmo. O descanso estava mal afixado, então, dependendo de como ele retornava da posição para tu pedalar, ele tocava no pedal, e fazia o som chato de teco, teco, teco.
Não era a corrente, não era o cubo, não era nada que justificasse 3 idas ao “médico de bicicleta”. Era um prosaico roçar de peças, mal alinhadas, entre si.
Sabe filho meu, na tua vida que apenas começa, haverá muitas situações como esta.
Situações que para enfrentar um problema terás que se ajoelhar, ouvir e ver o que de fato está ocorrendo ao teu viver.
Ao se ajoelhar tu se permites colocar-se numa posição de humildade, frente ao não saber. Além de se conectar com o sagrado.
Ao ouvir, tu emancipas teus pensamentos, permitindo que outros sons, que não sejam os de tua própria mente, bem estressada e confusa, adentrem em teu coração.
Ao ver, tu expandes a consciência para além daquilo que teimava ver, dentro de um modelo mental modelado pela força de hábitos e emoções limitantes: as correntes barulhentas.
Quando o problema estava no descanso e pedal.
Esta situação que ocorreu conosco, neste inesquecível e saudoso carnaval, nos ensinou muito.
Nada mais triste ao desenvolvimento humano do que a arrogância do saber. Uma pessoa arrogante não muda. Não se coloca numa posição de ouvir os outros, sobre seus próprios comportamentos e os impactos dele em si mesmo, na realidade e em quem convive.
A arrogância do saber, e seu irmão gêmeo, o orgulho do proceder, limitam o crescimento do ser humano.
O segundo ensinamento é do ouvir. Ouvir com todo o ser. Para dos sons escutados e interpretados, fazer conexões de sentido. Foi ouvindo de onde vinha o som que se descobriu ser do choque do pedal com o descanso. Saber ouvir é uma atitude que rareia, nesta sociedade tão falante, numa babel de monólogos individualistas em que vivemos.
Ah! Como é bom ter quem nos escute. E, melhor ainda, como é bom dispormos de tempo e coragem, para nos ouvir, a nós próprios.
O terceiro ensinamento, para o crescimento dos ser, é a capacidade de ver para além de onde achamos que está o foco do problema. É aquele olhar inovador, sem se deixar aprisionar pela armadilha das certezas, ou dogmas, e expandir o raio de visão, melhorando a compreensão do todo que nos rodeia, e de uma forma holística.
Num abaixar para ouvir e ver de onde provinha aquele ruído atemorizante, uma lição para nossas vidas!
Aparecerão pessoas em teu viver com este dom também. O de se abaixarem até teu mundo, te ouvirem e te olharem, e verem em ti, o que talvez nem tu enxergues mais, tua essência reluzente e destinada a ser mais. Eu tenho uma delas, "a tia" que te salvou neste dia.
É preciso ajoelhar, ouvir, ver, e por fim, aprumar o que está desalinhado em nosso viver, para voltar a pedalar de forma mais plena e feliz.
Acredite, filho meu, cada vez que isto ocorrerá em teu viver tu sairás para a vida com aquele mesmo sorriso gostoso no rosto, o sorriso dos sobreviventes!
Sobreviventes são todos aqueles que passam pelo teco teco teco, do atrito de coisas que tiram o movimento do viver, e as enfrentam. Tal qual você enfrentou aquela haste, de descanso de bicicleta, pondo-a no lugar onde deveria estar, e de onde nunca deveria ter saído.
Sabe filho, nunca se acostume com o que te faz infeliz, com os teco teco teco, sabe por que? Chamo a canção do Vinícius novamente para te responder:
“ Porque são tantas coisas azuis.
E há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe”.

Sim, quanto ao milagre da bicicleta, aquele da tua queda no Parque da Cidade, ele foi proporcionado pela posição que a bicicleta caiu, empurrando a haste do descanso para dentro do pneu, e acabando com o teco teco teco. Mas, não se iluda, também há outros milagres naquela queda. Mas, para vê-los, precisa ajoelhar, ouvir e olhar para dentro de si mesmo. E perceber que só estarmos vivos, após um baque que levamos da vida, já é em si um milagre. 

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