Mamute Alexandre, um Cantor-Pescador de Esperanças (Por Ricardo de Faria Barros)

Alexandre Lins é um pescador de esperança.  Têm pessoas que chegam em nossa vida e a iluminam. Não precisam dizer muita coisa, não precisam aconselhar, não precisam nos oferecer nada, apenas sendo quem são.

O pescador Alexandre é uma destas pessoas.

Ele é dos pescadores da Ilha de Itamaracá, situada a uns 40 km de Recife. 

Às vezes, ele sai para pescar com sua pequena e valente embarcação, a Nayara. Outras, esegue com a Aninha, barco que construiu para seu companheiro de pesca, o "Renamp".

Você deve estar se perguntando o que há de especial no Alexandre, o que há de inspirador nele? 

Responderei com uma palavra: tudo.  

No primeiros anos de pesquisa e produção de conhecimento em Psicologia Positiva, entre 1998-2005, foram entrevistadas pessoas no mundo inteiro que sob as mesmas condições dos outros, ou não adoeceram, emocionalmente falando, ou se reinventaram, ou tinham um enorme entusiasmo pela vida e o viver, e elas eram pessoas inspiradoras e diferenciadas.  

Alexandre, bem que poderia ser uma destas pessoas.  Vou contar pra vocês alguns dos saberes do Alexandre, não é justo ficarem só comigo. 

1. Ser grato em todas as ocasiões e sob todas as condições.  Muitas das vezes, só somos gratos quando as coisas vão bem, quando elas dão certo. Com Alexandre é diferente. Ele, quando puxa suas redes de pesca, ou despesca os Covos (espécie de armadilha colocada no fundo do mar) e o resultado é pequeno, com pouco ou nenhum peixe, nunca o vi não agradecer.   Ele diz assim: "Está de bom tamanho. Nós não botamos nenhum peixe no mar..."  É ou não é um pescador diferenciado, alias, um ser de luz  A mesma coisa quando pessoas más roubam os peixes de suas redes. Ele diz assim, "certamente ela estava precisando mais do que eu, e pelo menos não roubou as redes". 

"Nós não botamos nenhum...".  "Pelo menos não roubou as redes".   Quanta sabedoria em lidar com os reveses da vida. 

2. Se alegrar com o que se tem. Um dia de pescaria em alto mar é muito desgastante. Alexandre acorda de madrugada e só volta para casa pela tardinha. E ele sabe extrair poções de felicidade desta dura jornada, enfrentando chuva, ventos, ondas e o sol, numa pequena, rústica e frágil jangada, a Nayara, que não tem coberta, nem quarto, nem cabine,  e sem nenhuma estrutura de apoio, que torne a pescaria mais cômoda. Mas, Alexandre cultiva o dom de se alegrar. Com o sol que está nascendo, com a lua que já se vai, com os peixes que pesca, conversando com eles antes de colocá-los na caixa de isopor. Alegra-se com o "ventilador" do vento que balança a jangada, e faz a bandeira dela tremer. Pela tardinha, voltando para casa, muitas das vezes sem nem o dinheiro da "Lambaca", como ele chama um apurado bom que terá com os peixes, aquele que cobrirá os custos com o óleo diesel e sobrará um dinheirinho de lucro, ele cozinha no convés da Nayara.  Animado, começa a tratar os peixes e frutos do mar, e quanto maior a variedade deles mais "adubado" diz que ficará o cozido. 
Ele prepara o almoço-janta num fogareiro à lenha, disposto dentro de uma lata de tinta, e que se, segura em pé por milagre, a cada balanço do mar. Com o caldo do cozido, ele faz um pirão rústico, bem grosso, que serve de base para sobre ele deitar o cozido de peixes. Esta argamassa deliciosa é colocada numa tampa de isopor, que vira um prato-mesa, sendo nele comido com as mãos mesmo. Todo o preparo é só alegria. Alegria de viver, de desfrutar do que a vida tem a oferecer. Veja um Atoleiro em: https://www.youtube.com/watch?v=ZTdh4AFR--4

3. Mover o Carrossel do Destino.  Alexandre não é de desanimar com coisa pouca. E não é de ficar esperando a vida passar, olhando-a pela janela. Outro dia, o motor da Nayara falhou, quando estavam a uns 10 km da costa. Não havia sinal de celular para pedir socorro. E, pelo avançado da hora, nenhuma outra jangada estava voltando pra casa, e passaria perto deles. Então, ele não contou conversa, amarrou uma corda em si mesmo, pulou na água, e começou a nadar em direção à costa. Nadou por uns bons 60 minutos, até conseguir sinal de celular e chamar o socorro.  Noutra ocasião, ele resolveu fazer uma jangada maior, que pudesse pelo menos receber uma coberta, protegendo-o das chuvas, ventos e sol.  Ele foi em cidades vizinhas, atrás de madeira apropriada e a preço justo, e num barracão abandonado, começou a desenhar seu projeto, em toscas folhas de papelão, que serviam de molde. Percebendo que seu ajudante de pescaria precisava mais do que ele de uma jangada, pois ele já tinha a Nayara. Ele alterou o carrossel do destino do Renan, abriu mão do sonho da sua jangada maior, e passou a construir uma jangada para seu companheiro de pesca, que foi batizada de Aninha. Alexandre tem sempre um sonho no forno de seu viver. Ele é daqueles que busca realizá-los, e não fica só reclamando da vida, sem nada fazer para mudá-la. Neste sentido se insere a carreira dele como compositor e cantor. Sim pessoal, o Alexandre tem CD gravado, o "Chama na Calanga!" e já se apresentou até em programa de TV. Move ou não move o carrossel do destino uma pessoa assim? Pessoa que faz dos sonhos de futuro, pequenas realidades no agir do presente. 

4.  Nobres valores. Alexandre é uma pessoa otimista, boa, mansa e justa.  Os peixes menores, sem valor comercial, ele doa aos ajudantes de pescadores que ficam na praia, esperando aparecer um serviço de carregamento, ou descarregamento dos barcos maiores. Ele costuma dizer que pescador vive de esperança. E que não desiste nunca.  Seu primeiro Covo era grande e meio desengonçado, e recebeu o apelido de Mamute. E assim ficou sendo o Pescador Mamute, o Mamute Alexandre.  Em dias de vento forte não sai para o mar. Ele respeita a natureza e seus propósitos. Neste dia, ele vai para o seu "Estaleiro" e continua a fazer sua nova jangada. Sua relação com a família é de paz e de interesse para com todos. Chama as crianças de Mamutinhas e para cada uma delas tem uma palavra de inventivo. Quando as coisas estão difíceis, ele costuma brincar com a situação, dizendo que na casa dele as formigas estão comendo até o sal. Ou seja, já não há mais nada que elas possam se aproveitar, e comem o sal.  O que restou. Usa de um esperto humor pra levar a vida, com mais leveza. Ele fala sorrindo, com olhos amigos e ternos para com a vida, sem murmuração, sem se maldizer, dizendo que ao redor do caldeirão tudo é beira. Fita o horizonte e professa que no outro dia a pescaria será melhor, esperando que no amanhã que se aproxima as redes sejam mais generosas para com ele, que está "sendo judiado".

5. Sabedoria e Espiritualidade.  Um dia perguntei ao Alexandre com que olhar ele vê a vida. E ele respondeu de forma muito bonita, a que reproduzo aqui:  "Devemos ter fé, positividade e alegria de viver. A vida já é bastante dura para você andar se lamentando. Devemos procurar viver com esperança e alegria, acreditando que Deus tem preparado o melhor para os que Nele acreditam.  Tenho uma máxima sobre o Passado, o Presente e o Futuro.  O Passado, nos ensina mutia coisa, dele tiramos aprendizado tanto das coisas boas como das ruins. O Presente, nele se vive da certeza que tivemos um passado, qual ele tenha sido, e assim podemos viver o presente mais intensamente. Colocando em prática, com os aprendizados do passado, a melhor forma de viver com o nosso semelhante e a natureza. O Futuro precisa ser planejado, esperando que Deus possa realizá-lo. E eu entendo que todo mundo vive o Futuro, porque a cada milésimo de segundo que passou, vivemos o passado, o presente e o futuro, e ao mesmo tempo".  Uauuu!!!  Para quem leu filosofia existencial, na obra de Sartre, por exemplo, chamada o Ser e o Nada, o Alexandre resolveu uma das inquietações daquele autor, sobre a brevidade e singularidade da vida. Um humilde pescador, ensinou o que doutores em filosofia ainda procuram aprender. Que o sentido na vida está em cada segundo vivido, em viver o que se vive de forma intensa, pois logo ali já será passado, e que longe de assustar, este passado, se tece ao presente, antecipando o futuro planejado, em ações cotidianas, no aqui e agora.  Caraca, o Alexandre foi longe nesta sua descrição, transcrita de forma literal, do seu olhar sobre a vida e o viver. Um olhar holístico, integrado, complexo e multifacetado, que considera o tempo como capital, investido num aqui e agora sempre presente.

Deixo-vos com um trecho da música Mundo Melhor, composta e cantada por ele, vejam que bela mensagem:

"Pense nas coisas que trazem alegria.
O mundo precisa de paz e harmonia.
Esqueça as mágoas, esqueça o rancor.
Viva a vida com mais amor..."

Falou tudo amigo pescador!
Um Pescador de Esperanças.


Contatos com Alexandre:

Canal Youtube:  https://www.youtube.com/channel/UC9ZalI3xTcPdOHn8CFzyjoA
Instagran: https://www.instagram.com/mamutealexandrelins/
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Não era apenas um pastel e um Ki-Suco. (Autor Ricardo de Faria Barros)

A pauta seguia faceira, numa manhã de deserto no Distrito Federal, e lá para as bandas de São Sebastião.  Acabara de sair do corte do cabelo, por R$ 12,00 na máquina 2.0, e com direito a aparo da barba-noel e uma boa prosa.

A meta agora era levar o carro para lavar.  Saí zanzando, sem compromisso com algum, até que lava-jato de esquina chamou-me a atenção com placa nele afixada: "Promoção para Uber".

Pensei, é irmão ajudando irmão, numa sinergia perfeita.

Então, é neste que vou parar.

Esperando o trato o carro, devidamente acomodado em tamborete de falso equilíbrio, adentra o recinto um jovem vendedor ambulante. Montado em sua bike, oferece pastel e suco por R$ 1,00. Os lavadores do carro estabelecem prosa amiga com ele, que pelo visto os têm como clientes.

Aproveito e compro um pastel e experimento o suco. Delícia para ambos, com destaque para o suco de Ki-Suco que há uns 40 anos não provava novamente.

Financiei dois para os lavadores, e puxei o banquinho para perto do vendedor, admirando sua bicicleta.

Era uma daquelas bicicletas da marca Monark, das antigas, e totalmente original.

O vendedor falava dela com orgulho, "é puro ferro, nunca quebrou, e aguenta peso", dizia sorridente.

Perguntei-lhe seu nome, ao que me respondeu, Everaldo.

A partir daí fui enchendo-me de vida com a história de vida do Everaldo.

Ele tinha sido aprendiz de cozinheiro, em restaurante de Brasília, e lá aprendeu "no olho" a como tratar com carinho as carnes, e logo tornou-se um mestre-açougueiro. Um craque em abrir um boi inteiro, retalhando-o em cortes apropriados.

Saiu do restaurante, e achou emprego perto de sua casa, sendo o responsável pelos cortes das carnes que um mercado comprava no atacado.

Everaldo tinha um papo fluído e sem nenhuma pressa. Nem ele, nem eu. Perguntei-lhe quantos pasteis ainda havia para vender, ele falou que uns 8. Que já vendera mais do que a meta da manhã, ou seja, 92.   Nesta hora chegou um de seus clientes, e comprou cinco, para mecânicos de uma oficina à frente. Arrematei os 3 restantes para levar para Sr. Valdecir, o qual visitaria ao sair dali.

Everaldo me contou que estava precisando melhorar a renda, e que um dia pensou em fazer comida pra vender na frente do mercado. Mas, não podia ser nada que o mercado oferecia. Tinha que ser algo que não concorresse com o patrão.

Pensou nos pastéis e sucos. Mas, faltava-lhe o dinheiro pra começar. Tinha gasto todo o salário do mês, e aquele sonho ficaria para depois.

Não sabia ele, que os sonhos são o plural de uma vida singular. E, quem os têm, nunca estará vazio.

Contudo, sonho a sonho, mês a mês, e a coisa não melhorava, e não sobrava nada. Ele temia gastar o pouco dinheiro que tinha, e não conseguir colocar os produtos, ficando no prejuízo.

Um dia, ao terminar de cortar as carnes de um boi que o patrão adquirira, ele foi convidado para ir noutro estabelecimento, fora de sua jornada, e ajudá-lo a retalhar um boi. 

Mesmo sendo fora do horário, e sem ganhar nada em troca pelo serviço adicional, ele topou na hora.

Varou a madrugada retalhando o boi, ao final o patrão perguntou quanto ele queria pelo serviço extra. Ele, humildemente, falou que receberia qualquer coisa. Que não fez por obrigação, mas que queria ajudá-lo.

O patrão abriu a carteira e deu duas notas pra ele. Uma de 50 e outra de 20.

Everaldo sorriu, e pensou consigo, agora meu sonho vai acontecer.

No outro dia, comprou massa de pastel, queijo e carne moída, e Ki-Suco (rsrsrs).

Acordou de madrugada, a segunda noite sem dormir, e foi preparar os pastéis. Com o material fez logo cem. Arrumou com um vizinho uma caixa de isopor, atrepou-a na bicicleta, botou os sucos em garrafas pets. E saiu bem cedo fazendo a rota em direção ao Mercado, onde só tinha boi para retalhar lá pelas 11h.

Surpreso, viu que o povo comia um, e logo pedia outro. Gostaram do tempero do Everaldo. Em frente ao mercado deixou a bike, com um cartaz anunciando o produto, e logo os 100 pastéis foram vendidos. Como tinha uma espécie de horário flexível, pois dependia dos bois que chegavam, muitos deles à noite, aproveitou a tarde para fazer outra fornada, e vendeu tudo outra vez. 

Cada cem pasteis vendidos tirava os 70 de custos, e ainda sobrava uns 20, já reservando 10 para o gás.

Passou a ganhar 40 por dia, 20 em cada turno, e melhorou de vida.

Logo os clientes fiéis, em sua maioria das oficinas da região, perguntaram-lhe se ele não tinha quentinhas.

Então, ele passou a fazê-las, a um preço de R$ 8,00, mas com ingredientes bem escolhidos e tempero no capricho.

Ele me falou, sorrindo, que o que dá sabor é panela pequena.  Que aprendeu a cozinhar e que se sente um verdadeiro Chef, Chef Everaldo. E que comida feita em panelões industriais é difícil de pegar o tempero. Por isso a dele é tão boa, ele faz pequenas quantidades e trata a cada uma delas com muito carinho, e põe amor na mão que tempera.

Suas quentinhas não dão para ninguém, logo vendem. Todo mundo gosta de preço justo e qualidade superior, não é?

Ele mostra as fotos delas, dos cortes de carne, e dos pasteis. Sua expressão ao mostrar as fotos é de orgulho. De um trabalhador orgulhoso com os frutos de seu trabalho. 

Conta que o sonho dele é abrir um ponto, para vender jantinhas à noite, espetinhos, caldos... E,  nos finais de semana, feijoada. Diz que faz um feijoada invejável, daquelas de comer ajoelhado, agradecendo a Deus.

Olha no relógio, e comenta: xiii!!!, já são dez horas, é hora de fazer as quentinhas.

"O dia promete, e hoje ainda tem um boi para retalhar à noite", diz sorrindo, de bem com a vida, e com olhos faiscantes, enebriados com as possibilidades de alterar o carrossel do destino de sua Vida Severina.

Vai Everaldo, abre teu ponto de espetinhos de gatos e caldos.

Vai Everaldo, e supera teus condicionantes e circunstâncias da vida e do viver.

Vai Everaldo, segue nos inspirando a também fazer nossos próprios pasteis, alterando os cursos de nossa vida e do viver, e para melhor.  

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Obs: Abaixo o contato do Chef Everaldo, para quem quiser encomendar pastéis, caldos, feijoada, churrasco, ou apenas pra quem quiser mandar uma mensagem pra ele de incentivo.  Em breve, os convidarei para uma vaquinha para comprarmos o carrinho de churrasco de gato dele. Colocarei por aqui. Antes, vou pergunta-lhe de que ele precisa para o ponto.  Chef Everaldo 061 981470981

Quanto tempo tem o tempo de uma espera? (Ricardo de Faria Barros)


Quanto tempo tem o tempo de uma espera?

Com esta pergunta, a mim proferida, convidei-lhe para sentar à minha mesa.

Era um domingo de sol, tinha levado a radiola portátil e uns vinis para ouvir no Libanus, tradicional bar aqui de Brasília, já com  30 anos de candango. O som baixinho de Martinho da Vila era suficiente para nós dois nos deliciarmos, e podermos conversar. 
Ele era um dos vendedores ambulantes, que frequentam os bares do DF, vendendo a revista Traços. Uma iniciativa super bacana, que divulga a vida de moradores de rua, e a arte contemporânea que rola na cidade, com parte da renda destinada ao custeio de projetos sociais junto a estes moradores, inclusive deles mesmos. 

Sentou-se e me fitou, esperando minha resposta.

Sorridente, disse-lhe que tempo algum. Aí, ele abriu um sorriso maroto, e disse: "Acertou!"

Bem ainda não sei se acertei, e ele só queria me agradar. Só sei que fez sentido para mim.

Tem como colocar nas métricas de um relógio o tempo da espera?

Jamais!

A mãe que espera o filho nascer, não espera nove meses. Espera por séculos aquele encontro.

O jovem que esperou por dois anos ser chamado para um concurso, esperou por dois anos?  Nada disso, foram duas décadas.

Um casal que vive os afetos de amores à distancia, quando se encontram, por míseras duas horas, são duas horas, ou dois segundos, a percepção da frugalidade e rapidez da eternidade do que ali ocorreu?

Bobinho somos nós de querer entender o tempo usando para isso relógios.

Relógios apenas marcam o tempo das coisas. Não medem o tempo das poesias, das buscas, das culpas, das esperas, das graças e desgraças. 

Na mesa ao lado, dois músicos se encontram. Um ainda se levantando da perfomance que fez durante a madrugada. Outro, preparando-se para mais tarde fazer a sua.

É um encontro atemporal. Nós os flagramos, enamorados pelos instrumentos que carregavam.

Do nada, começam a tocar baixinho. Não há musica no Libanus, e faz parte da tradição da casa não ter. Eles pediram autorização para cantarem só entre si, no local embaixo das árvores, no britão, e em profunda comunhão com o espaço-tempo. Seguem, um no Tam Tam, instrumento de percussão, outro no violão. 

Desligo a vitrola para prestigiá-los. Os músicos começam com Candeia, com uma de suas músicas imortalizada por Cartola, "Preciso me Encontrar".

"Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar 

Meu agora amigo, o Francisco, o que vendia as revistas Traços, diz que é a música da vida dele.
E que também se encontrou, mas que levou tempo, e que teve mutia gente que lhe ajudou, para as quais é eternamente grato. 
Pede que eu abra a revista, que tem uma reportagem com ele, feita por José Rezende.
Na caixa alta da matéria, um de seus relatos: "Minha história é um pouco triste. Teve coisas boas também, porque a gente não nasce só pra sofrer desgosto, mas também pra ter alguma felicidade na vida."

Hoje folheei a revista para ler a história do Chico.  E que história!  De uma vida que tinha tudo pra já ter sido abortada pela violência, pelo submundo do crime, pelo lugar social do risco social, que leva tudo e todos para lugar nenhum.

Mas, Chico sabia que podia subverter o pior dos tempos, o tempo predestinado. Poderia refazer-se, e buscar suas "algumas felicidades na vida".

E assim o fez, ajudado, como ele muito bem falou, por algumas pessoas-anjo que nele acreditaram.

Um dos maiores estudiosos da autoeficácia, capacidade que temos de acreditar que com nossos próprios recursos: materiais, emocionais, cognitivos podemos fazer acontecer, o Antonio Bandura (1977) é categórico ao afirmar que uma das formas de se incentivar a autoeficácia são as palavras que recebemos de alguém, um alguém que nos inspira, que diz a nós mesmos que nos podemos ser mais do que somos, fazer mais do que somos. e superar nossos próprios condicionantes.

Uauu!!

Volto ao tempo, ao Chico, aos músicos, ao Preciso me Encontrar, e celebro a importância das pessoas que nos fazem o tempo parar, para escutá-las e segui-las.

Pessoas que nós dizem: Vai lá e faz, você é capaz, eu confio em você!

Disseram isto para o Chico, e transformaram sua vida.

Podemos dizer isto aos nossos liderados, podemos dizer isto aos nossos filhos, aos nossos parceiros afetivos e amigos. 

Podemos ser estímulo, apoio, ponte, incentivo e orientação. 

Podemos, fazer o tempo parar, acolhendo o outro em nosso viver, motivando e mobilizando-o ao Ser +.   Talvez a maior atitude que possamos ter, em tempos de tanta pequenez emocional, seja dizer a alguém, Eu Acredito em Você!

Aproximo-me dos músicos, pego uma garrafa para acompanhá-los, Chico se despede e segue para outras mesas, precisa bater sua meta de vendas. 

Peço uma música para ele, para nós, Corre e Olhe o Céu, do mestre Cartola, que fala do tempo.

"Vida. Te sinto mais bela. 
E fico na espera. 
Me sinto tão só. 
Mas o tempo que passa.
Em dor maior. 
Bem maior.
Linda. No que se apresenta.
O triste se ausenta.
Fez-se a alegria. 
Corre e olha o céu. 
Que o sol vem trazer.
Bom dia."

O tempo que passa, em dó maior, um bem maior.  Grande Cartola, disse tudo.  

 


Na Bike do Gilmar (Autor Ricardo de Faria Barros)

Gilmar e Silvia
Desembarquei em Curitiba e um motorista da Copel (Companhia Paranaense de Energia) esperava-me para levar-me, 400 km adentro, para o local do evento no qual eu iria palestrar, em Faxinal do Céu-PR.
Cheguei cansado, após uma maratona na madrugada, pegando os "vôos do padeiro", e ainda recuperando-me de um forte gripe que assolava a metade da população do DF. 
Estava propenso a pedir desculpas ao motorista, e me dirigir ao banco de trás para tirar um cochilo. 
Avistando-lhe com uma placa indicativa, dirigi-me a ele e o saudei.
- Sou o Ricardo, o da palestra na Copel.
- Sou o Gilmar, teu motorista. 

Abrindo um sorriso sincero de quem gosta do que faz.  Antes que eu pudesse dizer algo, ele foi logo debulhando umas letrinhas.

- Sr. Ricardo, logo ali no início da BR poderemos parar para o senhor tomar um cafezinho e se recuperar da viagem.

Uauuuu. Como dormir depois desta delicadeza no trato?

Busquei o restim de gás que ainda tinha e fui fazer uma das coisas que mais me causam alegria, catar histórias de gente. Sou colecionador de pessoas inspiradoras.

- E aí Gilmar, há muito tempo na Copel?

Daí por diante, tive acesso a uma história de vida tão bela, tão bela, que não poderia deixar somente  nas minhas memórias.

Há dez anos Gilmar trabalhava como motorista, de um pool de montadoras de veículos que operava no Paraná. 

Mas, sua esposa, a Silvia, botou na cabeça pra ele fazer o concurso pra motorista da Copel. 
Quando ele retrucou que já tinha um bom emprego, ela disse que ele já estava inscrito no concurso, que ela fizera a inscrição dele, e que as provas seriam no próximo sábado.
Contrariado, e sem muita força pra retrucar a Silvia, ele ouviu dela que as vendas de veículos estavam em queda e que o emprego dele corria riscos.
Gilmar fez a prova e ficou entre os melhores colocados, no cadastro de reservas. Meses depois, ele estava na listagem de demitidos da montadora. 
Passou a fazer uns bicos, "carregando combustível para Petrobrás", como motorista terceirizado. Passou a ganhar bem menos, e a sonhar em ser chamado. 

Até que este dia aconteceu. Quando assumiu o posto, a Silvia o incentivou a fazer todos os cursos, a andar na linha, dirigir com eficácia e a ser o melhor motorista que pudesse ser, sem desmerecer ou pisar em ninguém.  Gilmar seguiu à risca os conselhos, e foi galgando degraus na carreira, até integrar o seleto grupo de motoristas que conduzem os Diretores e o Presidente da Copel, pelo estado do Paraná. 

Perguntei como ele conheceu a Silvia.  Não sei você, mas eu gosto de um romance.

Ele contou que o motivo foi um rio.  Caí na risada. 

Quando eles eram adolescentes estudavam na mesma escola primária.  Depois, já crescidos, ele passou a ser observado por ela, de uma casa na outra margem do rio. A casa dele era no final da rua, um beco sem saída, que tinha no rio sua barreira. A dela, era do mesmo jeito, contudo do outro lado do rio.

Enquanto ele exercitava seus bíceps, consertando ou lavando a bicicleta, na margem do rio. A Silvia da outra margem contemplava aquele "Bifão", apelido tempos depois revelado por ela, para descrevê-lo, nas desejadas manhãs de sábado, dia de lavar a bicicleta, e a alma dela. rsrs

Mas, tudo era muito platônico, e Gilmar nem sonhava que estava sendo paquerado. Concentrado que estava entre pneus, jantes e o polimento de sua magrela. 

Muitos anos depois, os dois se encontram trabalhando na mesma região de Curitiba. Ela fazendo faxina num prédio comercial, ele fazendo entregas num caminhão.

E o amor, antes suspirante em olhares lânguidos da outra margem do rio, agora se faz presente entre eles.

Juntos, passaram a formar família, e o Gilmar assumiu a paternidade do bebezinho da Silvia, de menos de dois anos.
Gilmar me conta que já se vão uns 25 anos de companheirismo. E que a Silvia é a sua parceira nas  trilhas turística de bicicleta que organiza.

Como assim, Gilmar?

- "É Sr. Ricardo. A  Silvia me incentivou a fazer de minha paixão por bicicleta um negócio. Então comecei a montar grupos para pedalar por Curitiba e imediações, primeiro no prédio onde morávamos, depois no trabalho, e depois no evangelismo da igreja Bola de Neve da qual faço parte.
O negócio prosperou e hoje tenho uma pequena empresa a Gil Simon Bike Tour. (Veja em https://www.facebook.com/ssimondiz/) . Eu monto grupos para conhecermos lugares especiais no Paraná, muitos deles só acessíveis de bike. Por falar em lugares especiais, quer parar no Mirante da Serra da Esperança, logo ali á frente na estrada?."

Acenei com a cabeça, e o que vi foi um pedacinho de paraíso. Escavado do alto da Serra da Esperança, entre Curitiba e Guarapuava, o belo mirante faz amansar vistas cansadas, deitando-as por cima de vales, morros e pedaços de névoas brincantes, que teimam em se anovelar nas copas das Araucárias, daquelas enormes, que ficam com braços erguidos para o alto, como que em gratidão.

Voltando ao carro, ele disse que aprendeu sobre aquele lugar estudando. E que foi a Silvia quem o incentivou a estudar, assim como ela fez consigo mesma.  Ela fez auxiliar de enfermagem, técnica de enfermagem, enfermagem do trabalho e não satisfeita foi fazer Direito, agora já formada e atuando. 

Contou-me que como gostava muito de levar o pessoal para pedalar de bike por sítios históricos, e lugares bonitos da natureza, ela o incentivou a fazer Turismo. Gilmar já está quase concluindo o curso. E será o mais novo turismólogo do Brasil.  

Paramos para almoçar e perguntei como andava a vida do filhote e se tinha netos. 

Quando falou do filho, o Augusto, os olhos relampejaram de emoção. Quando falou do Joaquim, seu único neto, dos olhos saíram raios de felicidade. 

Contou a saga do Augusto, que após terminar um curso na área de tecnologia da informação, não vinha satisfeito com o rendimento do trabalho. Augusto conversou com os pais e disse que iria mudar de ramo. Que faria um curso de barbeiro. Os pais logo o apoiaram.
Mas, ao terminar o curso, quem disse que ele tinha dinheiro para investir nos equipamentos e aluguel de um ponto.

Então, a Sílvia lembrou que um antigo barbeiro do Sindicato dos Metalúrgicos não trabalhava mais, e quem sabe ele tinha ainda a cadeira.
O casal foi lá e conversando com o Sr. Joaquim, o antigo barbeiro do Sindicato, descobriram que não somente ele tinha a cadeira, como era uma daquelas de antigos salões, caríssimas, e que ele iria "vendê-la" para eles, envolvido de forma empática com a história do Augusto, por 10% do valor de mercado, quase uma doação, saindo por R$ 200,00.

O casal botou a cadeira no carro e colocaram-na na cozinha da casa onde moravam. Disseram então ao filho, que cadeira e local ele já tinha para cortar o cabelo e fazer a barba de seus clientes. 

E o Augusto, vibrando de alegria, começou a arregimentar cobaias na rua, entre amigos e familiares, e o povo da igreja Bola de Neve. Para ir treinando, na cabeça de amigos, só com e por Deus na causa. rsrs

E não é que deu certo!

O perfeito corte do Augusto foi passando de boca em boca, logo a cozinha ficara apertada e ele alugou, na raça e na fé, uma sala próxima a um shopping de Curitiba. Não deu outra, os clientes atravessavam a rua e iam cortar com ele, na sua primeira barbearia, a "Vonbarbarov". Veja em: (https://www.facebook.com/barbeariavonbarbarov/?tn-str=k*F

Hoje já são cinco Vons que existem em Curitiba, sendo local até de curso para novos barbeiros. Mas, o maior orgulho é do filho ser um evangelista e levar a palavra de Jesus a muitas pessoas que estão sem luz.

O Joaquim é seu xodó, tem 2 anos, e adora cantar com o avô.  

Quando comecei a palestra, cujo tema era empatia, falei que empatia é um profundo gesto de amor.  Pois é por amor que nos interessamos, nos conectamos, apoiamos e nos irmanamos ao outro. Conseguindo, tal qual milagre, perceber e sentir um pouco de sua vida, do lugar e forma com a qual  ele a nós se revela.

E agradeci ao Gilmar, que timidamente sentava-se numa das últimas filas, daquele auditório com mais de 170 pessoas.   

Encerrando a palestra, falei que em 1990 fora descoberto os neurônios-espelho. Áreas de nosso cérebro que se acendem em sinapses, quando temos acesso a histórias de vida dos outros - tristes ou alegres, desde que captadas de forma intensa e verdadeira. E que, este acendimento gera um hormônio chamado de oxitocina, que é o catalizador das relações sociais.

Ou seja, ter empatia não só nos torna melhores, como seres humanos, como ainda assim nos fornece, e "de grátis" uma farta dose do hormônio das vinculações sociais.

Encerrando a palestra, fizemos uma dinâmica com velas, pedindo que eles quando chegassem em casa, acendessem uma vela, ali entregue, para quem é luz para eles.

Agora à tarde, escrevendo esta crônica, recebo do Gilmar o momento em que ele acende a vela para a Silvia, quando retornou ao lar.

Para quem você acederá uma vela de gratidão hoje?  Quem é teu neurônio-espelho em forma de gente, aquela pessoa que quando aparece faz brilhar em ti a melhor luz?  

Tenho muitas pessoas-vela, que me fazem brilhar. Mas, a uma em especial eu dedico esta crônica, a minha Brisa Aracati. Aquela que mesmo quando tudo está um breu, lá pelos novelos de meu pensar, ou pesar, quando eu a vejo,  fagulhas de luz explodem e iluminam o meu existir. E, o dia amanhece novamente! 

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