Pessoas-Passarinho


Tem gente que tem cheiro de terra molhada da chuva benfazeja. Cheiro de flores do campo num amanhecer orvalhado. Cheiro de cozinha da vovó.
Gente que exala otimismo. Que lida bem com a ansiedade dos problemas que lhes avizinham. Que ao seu lado nos acalmamos.
Hoje pela manhã convivi mais um pouco com uma delas, o Maurício.
Maurício pode o mundo estar se acabando, que ele continua calmo e sabendo o que precisa ser feito. E sempre tem uma piada sem graça pra contar, mesmo nas horas que o bicho tá pegando.
Foi assim hoje pela manhã quando cheguei ao Centro de Treinamento, no qual nossos 150 trainees em TI estudam.
Encontro-me com o Maurício na sala dos servidores.
Pergunto-lhe: “Está tudo bem?”.
Ele responde: “Tudo. Estamos sem a ADSL, mas acionamos os técnicos para tentarem consertarem o problema.”.
Digo: “Quer dizer que não estamos podendo acessar a rede?”.
Ele diz: “Sim!”.
Penso comigo, lascou! Lá se vão as aulas práticas no laboratório.
Maurício aparenta confiança. Mesmo sob a tormenta.
Escuto a voz ao longe do poeta: "Eles passarão, eu passarinho..."  A cara do Maurício.
Subo para a biblioteca com um monte de rugas de expressão, ansiedade a mil. Ele fica no CPD.
Mais tarde, ele vem à Biblioteca e diz que o problema fora sanado.
Mudando de assunto, dispara: “Meu orientador do doutorado disse que um dos membros da banca quer falar com ele hoje à tarde. Que tem umas dúvidas sobre a minha Tese”.
Eu digo: “Puxa vida Maurício, isto pode ser grave”.
Ele ri com uma calma que me deixa mais ainda nervoso.
Pergunto-lhe: “Quando é a defesa do seu doutorado”?
Ele diz: “Amanhã!”.
Aí quem surtou fui eu: “E você calmo assim!!!!”.
Ele diz: “Já depositei a versão final da Tese, que mais poderia fazer?”.
Não aparenta nervosismo, pessimismo. Confia que as coisas se resolverão.
Se fosse comigo, já teria feito mil posts no Facebook, dado dois mil telefonemas, e papeado sobre este assunto, maldizendo minha sina, junto a três mil amigos.
É que me curo da ansiedade pela palavra. Então, alugo todo mundo quando tenho, ou acho que tenho algum problema.
Maurício é leve tal qual beija-flor mirando água de recipiente em forma de florezinhas
Eu não. Ele tem o dom do otimismo.
Aprendeu a filtrar o que a vida lhe dá de melhor e a relativizar as coisas não tão boas.
Já vi Maurício preocupado. Até nervoso e ansioso. Mas foram raras vezes. No geral, esbanja confiança que tudo acabará a bom termo.
Ele é quem sabe das coisas. Sabe filtrar e lidar com o estresse de forma madura. Sinal de inteligência emocional.

Eu perdi esta lição.

E ainda estou nos bancos escolares da escola da vida, repetindo pela décima vez a disciplina controle do estresse e ansiedade.

Esta ansiedade revela-se também sobre forma de espera. De cobrança. De expectativa de posturas ou comportamentos.
Aí se revela, no meu entender, um dos mais graves problemas dos ansiosos.
Para nós, os ansiosos, nós não sabemos aguardar. Esperar.
Não damos um desconto. E, às vezes, nos levamos a sério demais.
Pior quando esta ânsia é de afeto.
É de ser querido, aceito, reconhecido.
Aí vira uma doença.
Na escola da vida ando cursando a disciplina Controle Emocional.
Descobri, nas suas aulas e com mestres como o Maurício, que ando fazendo uma contabilidade perigosa, manuseando uma espécie de calculadora interior-afetiva.
Ando contabilizando as expectativas de afeto não realizadas, lançando-as numa espécie de passivo a descoberto, na qual deposito as pessoas amadas.
Triste.
Anotando no caderninho as pisadas de bola que atribuo a estas pessoas, e passando a agir para com elas na justa medida em que percebo o que delas recebo.
Não paro para me perguntar se esta percepção é real. E o quanto de distorção está nela contida.
Simplesmente, afundo-me num mar de autoflagelação bobo e sem perspectivas de mudança.
Feio.
Não dou nem a outra pessoa uma chance de mudar, por meio do diálogo, visto que na minha vingança reajo na mesma medida e por muitas vezes calo.
Morto.
Quanta pobreza de espírito. Será que não vejo que agindo assim igualo a contabilidade do amor:
-----------------------------------------------------------------Ativo                                            
Emissão Gratuita de Afeto                        0   
-----------------------------------------------------------------
Passivo
Recepção Percebida de Afeto                   0
----------------------------------------------------------------
PL (Afetiva) = 0


E que, quando estas colunas: Ativo e Passivo são iguais não há lucro ou prejuízo?
Pois o Patrimônio Líquido, fruto da diferença entre as duas contas, fica zerado.
E o zero de afeto é representado pela indiferença, o buraco negro dos relacionamentos.
Que devagarinho tira todas as oportunidades e possibilidades de crescimento.
De renovação.
Sou intenso e esta intensidade faz-me ansioso e emotivo ao extremo.
E, quando minha calculadora está distorcida viro um contabilista, um contador, de afeto contabilizando: amor percebido recebido x amor efetivamente doado, procurando uma razão para ser infeliz.
Por exemplo, ontem fiquei esperando um telefonema da esposa para saber dos resultados do exame que iria buscá-lo. Ela sabia que era um dia importante para mim. Ela não ligou. Fiquei triste. E também não liguei só de birra. Perderam os dois.
É com este “modus-operante” que funciona esta perversa contabilidade em todos os aspectos emocionais de seres imaturos: não receber atenção = não doar atenção
Outro dia, durante o lançamento de meu livro, por um momento, durante o evento, fiquei ansioso e triste. Pela ausência de minha esposa e JG, que estava com febre, mas que na minha ansiedade poderia ter passado e ela viria. Ou pela ausência de pessoas amadas, que a todo o momento. A todo instante, durante aquela crise de afeto, ficava olhando para a entrada do restaurante esperando vê-las chegando, ou aguardando um SMS qualquer de uma delas.
Quanta bobagem.
Humana bobagem, mas bobagem.
Ao assim fazê-lo, perdi por uns minutos de curtir minha celebração com os muitos que ali se fizeram presentes.

Desliguei-me e assumi um papel de vítima, de “ninguém me ama, ninguém me quer”. Papel estéril.

Feio. Muito feio.

O mundo alegre ao meu lado, e eu feito um abestado procurando uma razão para ficar infeliz.
Já levo para o pessoal e não vejo o mar de situações que levaram as pessoas a não poderem ter ido.
Que cara besta!
Como tenho o que aprender com o Maurício. A carregar menos bagagens interiores. A relativizar situações e a gostar mais de mim mesmo.

Fico parecendo com aquele famoso treinador, da seleção de vôlei brasileira, que mesmo quando vence importantes campeonatos, naquela hora em que está todo mundo comemorando, ele nem se dá ao direito de relaxar e celebrar com vigor, ficando de olho no próximo treinamento, ou dando declarações de onde os “fundamentos precisam melhorar”.

Esta postura de cobrança exacerbada, de aguçada, sensível e distorcida percepção é ruim.
Aprisiona o outro nas jaulas de nossa prisão emocional.
Não damos ao mesmo direito de defesa.
Comportamento que imobiliza ou obstrui a fluidez da vida.
Quando paro de doar amor, de ser quem sou, para “descontar” no outro o que percebo que foi desamor, desconsideração, para comigo mesmo, é o principio do fim.
Creio que o segredo do Maurício é continuar otimista, sendo quem ele é independentemente das realidades que o circundam.
Só se preocupando com coisas que realmente sob elas ele tenha controle de ação.
Talvez aí resida o segredo dos relacionamentos duradouros.

Menos cobrança de ambas as partes.

Tem relacionamentos interpessoais que são como jogos dramáticos.
Alternam-se as disputas por espaço, por afeto, por estima. Sempre um vive o papel de vítima o outro de vilão, mesmo que em murmúrios de resmungos incontidos.
Um sempre cobrando do outro, que ele seja aquilo que acharia que podia ser melhor, só que segundo sua própria ótica.
Falta paciência, aceitação ou até mesmo tolerância com o jeito dele ser, tal qual o Maurício com sua Tese de Doutorado, objeto de vistas horas antes da defesa.
Falta jogo de cintura para aceitar a autonomia do outro.
Sobram manipulação e relacionamentos do tipo esponja-molde que pretende sugar a essência do outro, ou moldá-lo à nossa imagem e semelhança.
Perdem todos neste palco afetivo, com suas personas pobres auto-quereres.

Então, para os que me leem e que funcionam assim também, um convite:

Vamos refazer nossos cursos de ação e jeito de ser.

Que tal? Sempre existe tempo para mudar.

Basta uma forte disposição interior e autoconhecimento.

E uma ajudinha dos amigos.

De minha parte, não quero deixar de ser intenso, amoroso, afetuoso e sensível.
Só vou me tocar quando pensamentos doentios começarem a cutucar minha cabeça, a voz interior da bruxa, soprando que ela “é má”.
Até por que, há maneiras e maneiras de se expressar amor.
Nem sempre a que espero é aquela que o outro consegue demostrar.
Mas, isso não significa que ele não tenha a dele para comigo.
Enquanto escrevia esta crônica meu celular tocou, era minha esposa perguntando se queria que ela comprasse um Tablet para mim, que vira numa promoção nestes sites de compras coletivas.
Talvez seja esta uma das formas dela expressar que gosta de mim.
Ou, trazendo as benditas camisas róseas a cada viagem que faz. Tenho umas cinquenta. rsrs
Faço um apelo, não limite sua expressão de amor ao que acha que recebe.
Você pode estar achando errado. Pode estar frágil, cansado, estressado, doente... E quando assim, tendemos a ver as coisas pelas lentes da emoção, distorcidas por natureza.
Precisamos de inveterados amorosos.
Precisamos de mais amorosidade.
Não se renda. Não se embruteça. Não nivele suas reações pelo que acha que recebe
Doe amor sem pudor e sem limites.
Doe por se sentir bem doando. Sem querer nada em troca.
Doe, pois não saberia ser diferente.
Despeço-me apelando para que aprendam e louvem ao bom Deus quando cruzarem suas vidas com pessoas-Maurício, estampado nesta crônica. Pessoas otimismo. Pessoas esperança. Pessoas, com cheiro de sementes em fecundação.
Lembre-se, por fim, que a Lei de Talião (“olho por olho; dente por dente”) foi revogada pelo Mestre do amor. “Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis”. João 13:34
Portanto, largue do pé do outro que cruza seu viver e você gosta dele.
Dê direito a ele ser do jeito que é.
Não desista ainda de sua relação.
Relacionamentos interpessoais não são self-service, exigem esforço, renúncia, aceitação do outro. Estão mais para refeições a La Carte.
Exigem maturação, levam tempo. Contudo mais saborosas.
Ame despudoradamente, só porque não saberia fazê-lo de outra forma.
E por que em assim fazendo, vai dá vazão ao fluxo do amor em ti contido, represado, que pede para ser compartilhado.
Que, ao fluir gera um outro dom, não menos importante do que o do Maurício, o do otimismo, um dom às vezes chamado de generosidade, outras de encantamento.
Não espere uma reciprocidade, do que entende que será uma resposta adequada de afeto.
Seu amor não pede isto. Seu amor simplesmente ama.
Quem pede isto é seu homem velho interior. Que vai ficando mesquinho e azedo, se não for combatido fortemente e desde sempre!
Use com moderação e bom senso a contabilidade do amor, com a sua calculadora do afeto, só em casos extremamente graves. Quando não tiver outro jeito.
Pois, ao usá-la você ficará por um tempo mais pobre como ser humano.
Usá-la é uma forma de autopreservação, de autoproteção das agressões gratuitas e sistemáticas que podemos vir a receber - nos encontros e desencontros do viver.
Nestes momentos críticos, responda à vida com luta, ação e renovação.
Assumindo o risco de novos amanheceres em seu existir.

Em tempo: Quero parabenizar o Mauricio Lyra, que agora é Doutor em TI. Ontem, 7/12/2012 defendeu novamente sua tese e foi aprovado com louvor. Ele criou um modelo do que pode vir a ser o ITIL V4. INÉDITO NO MUNDO TODO.   ORGULHO DE SER DITEC!!!!

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Inacabados

"Eu me experimento inacabado. Da obra, o rascunho. Do gesto, o que não termina.
Sou como o rio em processo de vir a ser. A confluência de outras águas e o encontro com filhos de outras nascentes o tornam outro. O rio é a mistura de pequenos encontros. Eu sou feito de águas, muitas águas. Também recebo afluentes e com eles me transformo,
O que sai de mim cada vez que amo? O que em mim acontece quando me deparo com a dor que não é minha, mas que pela força do olhar que me fita vem morar em mim? Eu me transformo em outros? Eu vivo para saber. O que do outro recebo leva tempo para ser decifrado. O que sei é que a vida me afeta com seu poder de vivência. Empurra-me para reações inusitadas, tão cheias de sentidos ocultos. Cultivo em mim o acúmulo de muitos mundos.
Por vezes o cansaço me faz querer parar.
Sensação de que já vivi mais do que meu coração suporta. Os encontros são muitos; as pessoas também. As chegadas e partidas se misturam e confundem o coração. É nesta hora em que me pego alimentando sonhos de cotidianos estreitos, previsíveis.
Mas quando me enxergo na perspectiva de selar o passaporte e cancelar as saídas, eis que me aproximo de uma tristeza infértil.
Melhor mesmo é continuar na esperança de confluências futuras. Viver para sorver os novos rios que virão.
Eu sou inacabado. Preciso continuar.
Se a mim for concedido o direito de pausas repositoras, então já anuncio que eu continuo na vida. A trama de minha criatividade depende deste contraste, deste inacabado que há em mim. Um dia sou multidão; no outro sou solidão. Não quero ser multidão todo dia. Num dia experimento o frescor da amizade; no outro a febre que me faz querer ser só. Eu sou assim. Sem culpas."

Padre Fabio de Melo

Somos tal qual um pedaço de muro sem tinta.



Todos os dias passo ao lado dessa casa, ao sair de meu condomínio. Fico invocado com aquela ponta do muro que falta ser pintada de branco. Resmungo comigo mesmo, “um dia pego uma escada, uma lata de tinta, e pinto este pedaço que falta.”


Hoje, mas uma vez, passei por ele e senti sensações estranhas. Tive vergonha de olhar o que lhe faltava. De sair resmungando recriminando o seu proprietário. Senti vontade até de pedir-lhe desculpas, por meu olhar carregado de preconceitos para com seu muro.

Por que esta parte desnuda deste muro me causou tanta estranheza?

Será que estou transferindo para este muro um olhar sobre mim recentemente, tão ácido como o para com este muro?

Alguém olhou para uma parte de meu muro existencial, que para ele faltava-lhe algo. Causava-lhe estranheza. Olhou-me pelo prisma da ausência de algo que enquanto não tenha não serei aceito no seu modelo mental, nos seus paradigmas organizacionais.

Fiquei triste, embora saiba que não somos unanimidade. Mas fiquei.

Creio que este muro carrega consigo duas distorções no olhar:

a. Ou, mira-se somente na parte sem tinta do outro. Como se não houvesse outras áreas completas, vendo a sua vida pelas lentes do fracasso, rejeitando-a.

b. Ou, mira-se somente parte pintada do outro. Como se na houvesse outras partes incompletas, vendo a sua vida pelas lentes do sucesso, cobiçando-a.

Na primeira, exclui-se o outro de nossa convivência. Seu pedaço sem tinta acirra intolerâncias. Ou, simplesmente condenamos-lhes à mais mortal das formas de ódio, à indiferença.

Na segunda, ao querer fortemente o que o outro aparenta ter como de sucesso, de belo, de parte pintada, cometemos o “pecado capital da inveja”. Paramos de admirar o outro pelo que ele tem e podemos chegar a ter, com nosso esforço. Passamos a nutir um sentimento mesquinho que torce, nos subterrâneos do ser, para que algo lhe ocorra para que o brilho dele, percebido por esta mente doentia, diminua. Como dizem por aí: secamos-lhe!

Estes olhares, muito distorcidos, seja no item a, seja no b. estão presentes atém em algumas passagens bíblicas. Profundamente humanos.

Ambas as posturas aprisionam o outro aos meus esquemas perceptivos, ao negar-lhe a autonomia, a idiossincrasia, a diferença e identidade que lhes são próprias.

Volto-me ao muro desnudo. Paro perto dele e reflito sobre a nossa própria saga como seres humanos. Somos assim mesmo. Nunca seremos perfeitos aos olhos dos outros. Sempre seremos vistos como incompletos, por mais pitados de branco que estejamos – tal qual estes 97% do muro, sempre seremos vistos, pelo falta que se destaca na convivência com quem amamos.

Imagine sua relação com quem convive. Se ela não estiver sendo renovada a cada dia, pode está caindo na mesma esparrela que caí ao olhar a parte de pintura que falta ao muro.

Um olhar imaturo, não sábio, incompleto, não preenche o que falta para fazer sentido. É um olha revestido de ódio que separa. De indiferença que anula. De calúnia que expõe. De inveja que mata. Ou de ciúme que sufoca.

Um olhar maduro, sábio, completo, preenche o que falta ao outro, para fazê-lo sentido em nosso viver. Preenche suas faltas com o amor que junta. Com o envolvimento que soma. Com o respeito que lhe preserva. Com a admiração que floresce. Com a confiança que liberta.

O olhar amoroso, a amorosidade, preenche no outro a parte que lhe falta para que possamos nos relacionar melhor.

O amor cobre-lhe a parte que lhe falta. Pinta-lhe na mente, tal qual passarei a pintar – doravante, a falta de tinta naquele pedaço de muro.

O amor possibilita que vejamos tudo como uma completude, embora nunca completo, entende?

Pense numa relação de um casal que se ama, projete-a para anos a fio quando por um descuido do destino este casal já não se gosta tanto.

Defeitos antigos vêm à tona. Cobranças nunca antes feitas, mesmo que nas mesmas condições tempos atrás agora lhes são feitas.

Quem mudou? Ninguém.

Apenas os olhos ficaram opacos com a rotina do dia-a-dia, faltando-lhe doses diárias do colírio do encantamento, do assombro, do perdão.

Por aí se instala o mostro da indiferença. Perde-se a admiração. Perde-se a cumplicidade. Perde-se a capacidade de ver as lantejoulas que restam no tecido do relacionamento interpessoal.

Percebendo só os rasgos, buracos, que vão perfurando este tecido coma convivência diária. O tecido do relacionar-se vai ficando puído, cheio de defeitos, e perdemos a capacidade de enxergar o brilho que ainda resta. Ou até de cultivar novos brilhos, afixando nele outros remendos coloridos, tal qual fuxicos de crochê em panos simples.

Que torna bonito até panos de chão.

Aí a relação vai esfriando, vai entrando no ciclo briga-paz, indiferença-apatia, monotonia-silêncio. E aí começamos a perceber as partes faltantes no outro. E elas nos incomodam e assustam. Aquela beleza que outrora ele tinha ainda está ali, mas teimamos em fixar-nos no que está exposto, no que achamos que falta á relação.

O amor completa. Conforma, liberta. O amor fluidifica a visão, atenuando as diferenças e preenchendo com boas doses de aceitação ao que provocaria estranhamento ou contenda.

Temos sempre algo que no outro não causa admiração, que pode causar estranheza.

Em alguns casos mais graves, de estranheza, queremos resolver por nós mesmos nossas diferenças com o outro: regionais, culturais, esportivas, políticas, religiosas, étnicas ou outras que nos causem indignação.

Estamos cada vez mais intolerantes com o que para nós soa como diferente.

Cada vez fazendo mais o que faço com o muro, querendo que ele seja como acho que deve ser e não como ele é.

As redes sociais ampliaram estes brados de intolerância, criando verdadeiros guetos tribais que guerrilham entre si.

Será que temos que ser completos, para ser belos?

Por que será que diante de tanto branco, eu fixo logo o olhar naquilo que falta, perdendo a oportunidade de ver a beleza no que resta, e que é bem maior do que a parte faltante? Será que tudo precisa estar nos mínimos conformes, em todas as áreas de nossa vida, para que nos olhemos, e ao outro, com respeito?

Cobrar a perfeição do muro pintado não será querer demais de nós mesmos, e do outros com o qual cruzamos nossa jornada?

No espaço da convivência humana, temos que ter cuidado para não fazer com o outro o que faço com este pobre muro, discriminando-o por ferir meu senso de estética. Cismando com algo que nele não esteja fazendo sentido ao meu mundo de valores, rejeitando-o de meu círculo social.

No extremo, até agindo para com ele com preconceitos de todos os tipos.


Uma pena.

Abençoado pedaço de muro exposto, com o seu reboco aparente, você ensinou-me tanto neste dia.

Ensinou-me a olhar as partes que não fazem sentido em mim mesmo e no outro, e a admirá-las, como uma possibilidade, uma alternativa, de crescimento e de encontro.

Aprendi que a diferença, mais do que separar e estranhar, pode complementar e enriquecer minha jornada. E que querer ser uma unanimidade, uma “Brastemp pessoal”, é tão perigoso para o ser quanto querer pegar uma escada e sair para pintar aquele muro.

Um pouco de imperfeição e loucura são fundamentais para a saúde mental. Não somos uma raça pura, graças a Deus!

A árvore e Dumbo.



Era uma manhã bonita de domingo, daquelas nas quais levar as crianças ao zoológico é um programão.

Como eu ia tirar um aparelho de monitoramento cardíaco (holter), num hospital perto do zoo, chamei minha esposa para aproveitarmos aquela ida e levarmos o JG para ver os animais.

Ao chegar ao zoo, libero a família para seguir para os viveiros, enquanto procuro uma vaga melhor. JG nem espera eu parar e corre serelepe e em disparada, seguido pela mãe ofegante que tenta alcançá-lo.

Observo sorrindo com a alma aquela cena linda. De longe, vejo que um guardinha o intercepta, para alívio da mãe, e ainda por cima ganha dele um saquinho de pipoca que comia. Que imagem legal ficará, nas suas memórias mais profundas, dos guardinhas de zoológico.

Os ipês estão concorrendo em atenção com os animais. A florada amarela é estonteante, de um amarelo-vaticano, criando embaixo de suas copas um tapete de flores que ao pisarmos nele, sob aquela sobra refrescante, sentimos a paz de um dia de domingo em família e a presença de Deus.

A primeira parada para ver os animais é num viveiro próximo do ipê majestoso. No seu interior, sozinho, habita um enorme elefante. Ele fica o tempo todo brincando com uma enorme árvore no centro do viveiro. Enlaça sua tromba por entre os troncos. Tenta erguer-se com o apoio dela. Enlaça a tromba no caule e o puxa com força, como se alongando.

A árvore não tem frutas. Ou folhas em galhos baixos. Só uma copa vistosa no alto. Ele não busca alimentos. Fico boquiaberto com as piruetas do elefante e sua tromba junto ao tronco e galhos da árvore. São instantes mágicos. JG sorri e vibra com o que vê. Batizei para ele o elefante de Dumbo.

Eis que Dumbo faz algo que me comove. Encosta a cabeça no tronco da árvore e fica parado por bom tempo. Com o auxílio do zoom da máquina vejo tristeza no seu semblante.

Seguimos nosso passeio, mas Dumbo e sua amiga árvore não me saem da cabeça. À noite posto no Facebook a foto a que me referi. Eis que a Gladys comenta: “Esse elefante é o do circo, aquele que quase fugiu outro dia. Ele está muito estressado e triste, não está se adaptando sozinho, pois vivia com outros dois no circo e não consegue aceitar os dois do zoo.“

Fiquei emocionado com o relato. Aquele forte animal sentiu o baque da solidão, da ausência, do estranho, da mudança.

Mesmo a mudança trazendo-lhe melhores condições, certamente das que vivera, mesmo assim, Dumbo sentia falta dos outros dois elefantes que fora criado com ele, de seus irmãos.

Como é profundamente humano o que Dumbo sente e expressa na sua relação com a árvore! Tenho certeza que cada um de nós já teve uma cena-Dumbo no seu viver.

Somos qual ele. Estranhamos quando nos perdemos daqueles que amamos. Quando migramos. Quando temos que tomar decisões, fazer escolhas, alterar rotas, arriscar. Ou quando temos que recomeçar, mesmo em melhores condições das a que estávamos acostumados.

O novo assusta.

Nestas horas como faz falta uma árvore amiga, na qual possamos apoiar nosso ser, brincar, conversar e fingir para nós mesmos que ela nos escuta.

Que embora saibamos que não é nosso parente, que não é de nossa espécie, mesmo assim, sabemos que nos sentimos bem ao seu lado. Para alguns, esta árvore pode ser um animal que cria, um jardim que cultiva. Um objeto material que se afeiçoou. Um CD que põe e se acalma. Um trecho da bíblia que lê e se fortalece.

Cada um de nós é um pouco como o Dumbo. Frágil, embora aparente força.

Cada um de nós, em algum momento vai se sentir sozinho mesmo em família, ou num multidão. Nessas horas encontrar uma árvore para encostarmos a cabeça no seu tronco e nos sentir protegidos e amparados é tão bom.

Pena que muitos encontram falsas-árvores que não dão sustento a sua dor. Falsas fugas, no álcool ou outras drogas, ou até em amigos nada árvore, compreende?

Imagino que Dumbo fecha os olhos, quando nela encostado, e viaja até a perna ou lombo de sua mãe, ou irmão de jaula, no qual encostava a cabeça quando com medo das chicotadas ou choques elétricos que tomava no seu cruel processo de “domesticação” para o circo.

Imagino que ele pensa que nada de mal lhe acontecerá, naquele enorme viveiro para onde foi morar e que a saudade vai passar.

Existem pessoas-árvores. Pessoas que ao encostarmo-nos nelas sentimos paz. Pessoas que nos animam, suportam-nos e nos estimulam a não desistir. Quem tem uma pessoa-árvore dessas em seu viver, tem um tesouro. Mas falo de árvore frondosa, não de algumas tranqueiras que se aproveitam de nosso momento de fragilidade para sugar mais ainda, da vida pouca que nos restou.

Dumbo está de luto. Algo o incomodou na mudança a que fora submetido. Dumbo só precisa de um tempo só, com sua árvore, para se reestabelecer.

Só precisa que não desistam dele, só porque não se adaptou ao outro viveiro com dois elefantes de sua espécie.

Só precisa ser compreendido e aceito na sua expressão de estranheza com tudo que lhe ocorreu. E, quanto a isto, os tratadores do zoo de Brasília estão de parabéns. Estão dando-lhe tempo para se adaptar.

É só disto que precisamos: tempo e compreensão para conosco, em nossas reações fruto da adaptação às mudanças. E, e quanto a isto, cada um tem seu próprio ritmo.

Podemos ajudar a muitos Dumbos que cruzarão nosso existir. Tem tanta gente insegura com as mudanças, com medo, ansiosas. Tem tanta gente que só precisa encostar o ombro em nós e sentir que são importantes, sentirem-se acolhidas e abraçadas. Tem gente que precisa ouvir de nós: “Ei, você tem valor”!

Para outras, não precisaremos falar nada, só o fato de estarmos ali, qual um tronco-mudo-de-uma-árvore-qualquer já será suficiente para acalmá-las. Aliás, aquela árvore, sem saber, faz terapia no Dumbo.

Assim como existem as pessoas-árvores, temos outros recursos que nos valemos e que agem como mecanismos de compensação, e deslocamento de nosso sofrer, dando-nos melhores condições de sobreviver.

Temos a espiritualidade, temos os esportes, temos as redes sociais, temos os hobbies, temos as artes, temos os jardins, os animais, temos as caixas de recordações que podemos abri-las e sentir o quanto já percorremos.

Temos as terapias ocupacionais que nos entreterão e nos darão um certo alívio. Até o trabalho pode ser uma fonte de cura, de distração da dor.

Precisamos aprender a brincar com a árvore. Precisamos aprender com o Dumbo a transcender sua própria realidade criando alternativas possíveis para via-a-ser.

Amigo Dumbo, faço votos que aceite seus novos amigos elefantes, saiba que eles não vão substituir o amor que sentia pelos do circo. Amá-los não significa que esqueceu os que contigo viviam no circo. Tenho certeza que se eles pudessem te dizer algo, vendo-te por cima das copas dos ipês, diriam exatamente isto: Dumbo permita-se ao amor novamente, amores não substituem amores. Convivem, apenas!

Dias sem Brilho

Já aconteceu contigo de mesmo tudo indo bem, ter aqueles dias nos quais se sente assim, como esta foto, sem graça e brilho?
Os mais extrovertidos sofrem mais ainda, sempre tem alguém que logo saca e despeja no infeliz: "O que é que tu tem?". Pron
to, aí é que o cara sente mesmo que está na merda. Passará este estado de espírito, estes dias nublados passarão.
Só continue a cultivar os valores da bondade, mansidão, ética, justiça, fraternidade, perdão e amor. Um dia ou outro de deprê faz parte. Tenho os meus e não suporto nem olhar-me no espelho, de tão rabugento e chato que fico. Aguardo então, de forma esperançosa, que acorde melhor. E, muitas das vezes, de mansinho, a paz e o sentimento de conforto comigo mesmo vai voltando. Não tome tarja preta por estar triste. Tristeza, angústia ou melancolia, não é depressão. Depressão é uma doença séria que não deve ser confundida com momentos, dias, até meses de infelicidade interior.
O amadurecer tem razões que a própria razão desconhece, tem seu tempo, seu ritmo, seus paradoxos existenciais. Não se leve tão a sério. Você não precisa agradar os "tele-espectadores", do seu canal que transmite diariamente, só pelo fato de existir.  No palco do viver, renove seus personagens, mesmo assumindo algum de que as pessoas não venham a gostar. Não fique refém da imagem que projetou de si mesmo. Você é maior do que ela e tem direito a ter, e projetar, outras facetas de você mesmo. Não banque o forte. Viver traz consigo dor, repensares, remoeres existenciais. Viver cansa. E a psiquê tem direito a um cochilo na rede, a uma certa malimolência. Tenha paciência consigo mesmo. As cores voltarão. Não apresse seu interior. A vida pede pausas, nem sempre prazerosas. Goste-se sorrindo, com pique, animado... tanto quanto triste, sem ânimo, sem pique. Afinal, você é o seu melhor projeto. E, quem já tocou um projeto sabe, nem sempre as coisas andam como queremos. Mas, não podemos desanimar. Liberte-se de toda autoimagem que force você a representar um papel de que não tem o devido suporte emocional, no momento, para encarar. E, tenha calma com os amigos. Eles não o fazem por mal. Só te querem ver bem, até para que eles mesmos fiquem bem. Você exala vida para eles, por isso eles ficam ansiosos querendo que volte logo ao personagem que se acostumaram a amar, e de que certa forma o nutre. Mas, esta é uma decisão que foge ao seu controle. Então, pare de se cobrar em querer logo voltar à vida. Um pouco de morte nos faz curtir mais ainda quando a vida novamente em nós se fizer morada.

Temos valor!


Nem sempre publico algo que não é de minha autoria neste blog. Este texto fugiu a regra. Não sei de quem é a autoria. Mas me tocou profundamente e compartilho.
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Um famoso palestrante começou um seminário numa sala com 200 pessoas, segurando uma nota de R$ 100,00.

Ele perguntou:

“Quem de vocês quer esta nota de R$ 100,00?”

Todos ergueram a mão...

Então ele disse:

“Darei esta nota a um de vocês esta noite, mas primeiro, deixem-me fazer isto...” Então, ele amassou totalmente a nota.
E perguntou outra vez: “Quem ainda quer esta nota?”
As mãos continuavam erguidas. E continuou: “E se eu fizer isso...” Deixou a nota cair no chão, começou a pisá-la e esfregá-la. Depois, pegou a nota, agora já imunda e amassada e perguntou: “E agora?” “Quem ainda vai querer esta nota de R$ 100,00?” Todas as mãos voltaram a se erguer. O palestrante voltou-se para a platéia e disse que lhes explicaria o seguinte: “Não importa o que eu faça com o dinheiro, vocês continuaram a querer esta nota, porque ela não perde o valor.

Esta situação também acontece conosco. Muitas vezes, em nossas vidas, somos amassados, pisoteados e ficamos nos sentindo sem importância. Mas não importa, jamais perderemos o nosso valor. Sujos ou limpos, amassados ou inteiros, magros ou gordos, altos ou baixos, nada disso importa! Nada disso altera a importância que temos. O preço de nossas vidas, não é pelo que aparentamos ser, mas pelo que fizemos e sabemos.”

Agora, reflita bem e procure em sua memória:
Nomeie as 5 pessoas mais ricas do mundo.
Nomeie as 5 últimas vencedoras do concurso de Miss Universo.
Nomeie 10 vencedores do prêmio Nobel.
Nomeie os 5 últimos vencedores do prêmio Oscar, como melhores atores ou atrizes.
Como vai? Mal, né? Difícil de lembrar? Não se preocupe. Ninguém de nós se lembra dos melhores de ontem.
Os aplausos vão-se embora. Os troféus ficam cheios de pó. Os vencedores são esquecidos.

Agora faça o seguinte:
Nomeie 3 professores que te ajudaram na tua verdadeira formação.
Nomeie 3 amigos que já te ajudaram nos momentos difíceis.
Pense em algumas pessoas que te fizeram sentir alguém especial.
Nomeie 5 pessoas com quem transcorres o teu tempo.
Como vai? Melhor, não é verdade?

As pessoas que marcam a nossa vida não são as que têm as melhores credenciais, com mais dinheiro, ou os melhores prêmios.
São aquelas que se preocupam conosco, que cuidam de nós, aquelas que, de algum modo, estão ao nosso lado.

Reflita.

A Esperança Mora na Periferia

Cenas de um povo simples e bom:
Um carro de um vendedor da feira-livre, carregado com sua mercadoria - cavalinhos de balanço, que embelezam o prejudicado veículo. 
Um bingo inusitado, num forró de pé sujo. 
Dois jovens guardadores de carro da feira. 
Os jovens das fotos fazem bico guardando carros na feira de Sebastião-DF. 
O de camisa azul Marcos Antônio, o de camisa listada Luiz Carlos.
Luiz contou-nos que se casou semana passada com uma jovem que já tinha três filhas.

Falei para ele que comigo e a Cristina foi assim também. Ele olhou para seu amigo que zoava com ele e disse: "Tá vendo!". 

Disse-me que a primeira coisa que fez, no barraco onde foram morar, foi comprar um beliche e um guarda-roupa para as meninas.
Mobiliou o único cômodo existente e foi com sua esposa dormir na sala-cozinha-banheiro. 

Ele disse: "primeiro a gente ajeita elas, não é?". Enchi os olhos e agradeci intimamente haverem pessoas como ele. Chamou-me para ir no próximo domingo conhecer seu lar. Claro que iremos. 

Sua dignidade em prover, com o pouco que tinha, em primeiro lugar um cantinho melhor para as meninas é de uma altivez singular.

Se os políticos tivessem esta prática com o povo a que representam este país seria outro. 

O de azul, Marcos, adora brincar com o JG. Todo o domingo, enquanto carregamos o carro, ele brinca de correr com o JG, ou vai com ele ver o tanque com peixes vivos, à venda numa das extremidades do estacionamento. 

Ou correm, voltado do tanque, sempre perdendo para o JG. 

Ele deixa de "cobrar" de uns três clientes, enquanto vê os peixes com o JG, mas volta com a aparência rejuvenescida 

Aliás, os dois.

Tem gente que vê a periferia, e os que nela habitam, como um reduto de pessoas más. Nunca penetram neste meio.

Tem medo e aversão. Lêdo engano, há famílias de trabalhadores que lutam pela sobrevivência, e possuem sonhos simples, "como o de ganhar o bingo de uma galinha" rifada num pé sujo empoeirado. 

Eles se viram com dificuldade, mas sem perder a alegria de viver. 

Galgam com uma esperança quase mística, milimetro a milimetro, a escala social em que se encontram

Sejamos Básculas para o Outro


             

Vinha pensativo do trabalho para casa e, ao frear o carro em um dos 14 quebra-molas da Avenida do Sol, olho ao lado deparando-me com uma arvorezinha, à margem da estrada, vestida com flores brancas, tal qual fosse uma Cerejeira do Cerrado, uma Sakura Ja
ponesa.
Fico encantado. Aproveito que não vem carro atrás e que o pequeno JG dorme que baba, e a olho um pouco mais, contemplando-a em sua singularidade.
Percebo que as suas folhas são da cor Borgonha (tipo goiaba+bordô+grená+magenta), que de perto realçam mais ainda suas delicadas flores brancas.
Nunca houvera percebido esta árvore por aqui, e que ainda não sei seu nome, nos meus 13 anos de Cerrado. E olha que gosto de observar flores, pássaros, árvores, insetos e coisas do gênero.
As florezinhas brancas são ocultadas, encobertas ou passam despercebidas pela maior quantidade de folhas tingidas de Borgonha. Nunca vi esta árvore, em sua completude, pois sua copa, tingida de Borgonha, fica mais parecendo – ao longe, uma das tantas árvores que nesses tempos estão ressequidas, queimadas ou cobertas de poeira barrenta.
Só pude percebê-las, por que parei muito perto.
Corri então para casa, objetivando pegar a máquina e registrar tamanha beleza. Comi numa garfada só e voltei.
Fiz um monte de fotos, aproveitando o azul como pano de fundo, um azul que só o céu do Distrito Federal produz, nesta época do ano.
À noite embarquei para Campina Grande-PB. No outro dia, na casa de meus pais e parte dos filhos, descarreguei as fotos. Fiquei estatelado na frente do micro. Afastei-me do monitor, regulei a luminosidade. Nada funcionava. As fotos que houvera tirado ficaram horríveis. Fiquei triste, com sensação de perda. Elas ficaram com excesso de luminosidade, estouradas na cor branca. Não se aproveitava nenhuma.
Peguei a máquina, e entre uma fuçada e outra, vi que houvera programado a sensibilidade à captação de luz, chamada ISO (ou antigamente ASA) para 800. Geralmente as máquinas fazem isso automaticamente, e regulam o ISO de 100 a 400, em condições normais. O valor que eu programara só daria certo para fotos num breu, com quase nenhuma luz. Como as que tiro da lua. Quanto maior o valor ISO mais sensível será o sensor ou o filme. No geral, quando temos uma situação de bastante luz deixamos o valor ISO mais baixo para que a foto não fique superexposta. Quando temos pouca luz deixamos o valor de ISO mais alto para que a foto não fique subexposta. Ou seja, minhas fotos estragaram por alta sensibilidade.
Dias depois, voltei para Brasília e percebi que as flores brancas houvera caído todas. Perdera aquela oportunidade. Senti muito. Passei a dirigir contemplando copas, esperando achar outros espécimes. Procurava copas com folhas borgonhas.
Sexta passada, eis que na avenida L4-Norte em Brasília, pertinho ali do Minas Brasília Tênis Clube, sentido lago Norte, encontro várias delas, no canteiro central.
Neste final de semana aproveitei o sábado para ir fotografá-las. Sai de casa com a máquina com ISO regulado para automático, lente com boa relação normal-tele (boa para perto e longe). Segui feliz da vida.
Faço um monte de fotos, e volto correndo para descarregá-las no micro. Fico bem satisfeito com o resultado final. Algumas florezinhas brancas as registrei com a tele-zoom que aproxima bem. Já o detalhe das copas bordô-grená-goiaba peguei com a lente na função normal.
Hoje ao chegar ao trabalho, entre um cafezinho “segundal” e outro, contei aos amigos as aventuras de fotógrafo amador de final de semana. O Maurício aproveita e me diz que fez uma operação que deixou seus olhos funcionando tal qual a lente de minha máquina. Um olho dele vê de perto, outro de longe, chama-se Cirurgia de Báscula. Ele me contou que o cérebro trata as imagens que chega dos olhos e escolhe a melhor. Se for algo de perto, escolhe a de perto, e vice-versa. Fiquei estupefato com tamanha ciência. Consultado o termo, vi que a báscula é um tipo antigo de balança, usada para equilibrar o peso de objetos e fardos pesados, com outros nem tanto. Cada 100 kg pesados no prato da báscula equilibram-se num mecanismo com 10% de um peso colocado, na outra extremidade da balança, num engenhoso artefato. Veja uma foto da báscula no final do texto. 


Cismei nesta noite a remoer vivências que compartilho com vocês e comigo mesmo.
A primeira remonta à luminosidade, à sensibilidade. Acho que precisamos de um regulador de nossa sensibilidade emotiva. Nem sensibilidade demais, nem de menos, na justa medida. Outro dia um colega veio pedir-me uma informação para um trabalho que estava fazendo. Falei que passaria a informação. À tarde, ele mandou um funcionário perguntar-me se já estava pronta. Pronto. Lá se foi minha foto. Explodi. Veio à tona um monte de sentimentos que o pobre coitado não tivera acesso e não era culpado. Peguei-lhe para Cristo. Descarreguei nele minha frustação, por estar com o quadro de pessoal desfalcado, e até pelo volume de serviços. “Estourei a foto” na cara dele.
Usei indevidamente as lentes da emoção. Olhei excessivamente por elas. Movido pelo excesso de emocionalismo, dificultei o diálogo e a negociação de um prazo maior. Bastava uma única resposta, “ainda não fiz”. Mas, para mim, que estava com a ISO interior alterada, isso não bastava. Tinha que dá um chilique, fazer um show, esbravejar falando alto para todos ouvirem. Depois que passou, fiquei morto de vergonha. Faltou-me inteligência emocional (IE) suficiente para lidar com a situação. Alguns dos itens que compõe a IE são empatia, auto-conhecimento, capacidade de lidar com estresse e relacionamento interpessoal. Faltou-me tudo. Ceguei.  Você já percebeu o quanto isto é comum nos tempos atuais. Estamos todos mais intolerantes.
Menos resilientes.
Refiz minha trajetória profissional das últimas semanas e me encontrei com comportamento do tipo ISO-Estourada em outras ocasiões. Preciso me autoconhecer um pouco ais e detectar quando isto pode acontecer, mitigando o risco de explosões desnecessárias. Sendo mais maduro, sábio e resiliente. Líderes são exemplo, e suas explosões desagregam e induzem comportamentos e seguidores.
Emoções demais, “luzes demais”, atrapalham desde relacionamentos amorosos até profissionais. Fica-se excessivamente centrado, hiperreflexivo, tudo machuca, tudo dói, tudo irrompe em crises. Um verdadeiro “não-me-toque”. Um certo ISO do tipo casca-grossa é bom para saúde mental. E, na relação com o outro, quando “estouramos a foto” nem sempre teremos uma segunda chance para refazê-la, como tive com aquelas árvores na L4.
Também aprendi com a cirurgia do Maurício, ou com a minha high-tech, high-touch lente, que podemos ajustar nosso mecanismo de percepção para ver o que merece ser visto de longe, dentro de uma visão mais aberta, mais relacional, para captar toda sua completude. Daquilo que precisamos fechar o foco, ver mais de perto, com detalhes mais acurados, para ter acesso a detalhes que farão a diferença. Situações que não podemos adiar que temos de olhar de perto para melhor compreendê-las, a exemplos das florezinhas que só as vi ao ter que parar no quebra-molas.
Por outro lado, tem coisas que precisamos olhar de longe, relevar, compreende-las no conjunto de outras possibilidades ou alternativas que nos restam. Tem uma cena no filme sociedade dos Poetas Mortos, na qual o professor sobe em ciam da mesa e olha a realidade circundante. ele ensina que ás vezes é importante ver as coisas á luz de outras perspectivas, vez por outra ao analisar uma situação "subir na mesa", transcender á realidade. Algumas situações, ao escolhermos vê-las de longe, dão tempo ao tempo para melhor serem compreendidas, ajustarem-se na caminhada, ou serem até relevadas, aceitas e toleradas, em prol de uma convivência mais saudável Ao olhar de longe, podemos ver outras coisas que estão ao redor e que tornam o visto menos incompreendido, e mais harmonizado com o que lhe cerca. Compor um cenário, ao olhar mais de longe, ajuda a contemplar a paisagem, a perceber o belo que se forma da junção do contraditório e caótico. Tem coisa que ao ver de longe as colocamos num outro patamar de referência, de relações, que ao serem relativizadas fecham novas Gestalt, ressignificando o existir.
Lembro-me de um relato recente de um casal que ao chegar a seu lar, o encontrou saqueado por ladrões. Olhando num contexto de referência mais ampliado, mais de longe, comparando esta situação com outras, poderemos dizer que até deram sorte. Quantos meliantes esperam suas vítimas dentro de suas próprias casas e potencializam a desgraça?
A sabedoria reside em, a exemplo da visão do Maurício, saber ajustar o foco, ver de perto o que precisa ser visto de perto, e de longe o que precisa ser visto de longe. Mas como? Em mim ajuda-me a justar o foco interior o contato com meus líderes, amigos, família, ao conhecer suas histórias de vida, e como se saíram em determinadas situações. Ajuda-me também a espiritualidade, ao ver no outro e nas coisas que me acontecem mais do que acaso.
Por fim, fica como reflexão destas metáforas tão reais, como seria bom se tivéssemos uma báscula sempre à mão. Amigos que dividissem nossa carga, que fossem solidários, fraternos. Que nos ajudassem a equilibrar o peso do viver. Como seria bom se nos víssemos como esse ser que pode ajudar o outro a equilibrar suas tensões. Como seria bom se amadurecêssemos em nossas explosões emocionais, não a ponto de se tornar um Dr. Spok – aquele do filme Guerra das Estrelas, mas a ponto de compreender o que se passa conosco, naquele momento, antes de descarregar emoções que poderão ferir o outro. Como seria bom se tivéssemos um regulador de ISO interior. Até para situações que vamos entendendo como normais, que não nos tocam mais de tanto convivermos com as mesmas, e que pedem uma sensibilidade maior, um cuidado maior, um expressar maior de afeto, de humanidade, de sentir. Por exemplo, na vida a dois, no convívio com filhos e colegas de trabalho. Quantas das vezes vamos sofrendo uma entropia interior, ficando frios ao que nos rodeia, perdendo a capacidade de influenciar e mudar as coisas ao nosso redor.
Como aprendi com aquela árvore, com a ISO desregulada, com as lentes que focam perto e longe e com a báscula.
Seria bom se processássemos melhor o que nos acontece - selecionando as melhores imagens para o nosso viver, aquelas que nos engrandeceram. E desprezando as que nos causam dor, culpa e sofrer, aquelas que não nos farão sentido ou nos diminuíram como pessoa.
Despeço-me associando aquelas florezinhas brancas que só as reconheci 13 anos depois – ao parar num quebra-molas, às pessoas simples que nos rodeiam. Faz-se necessário, na trama da vida, que paremos no “quebra molas” e percebamos a beleza e delicadeza das pessoas que nos rodeiam, e até nos servem, algumas delas quase invisíveis - de tão simples e humildes. Pessoas que sempre estiveram ali por perto, mas que nem sempre foram percebidas na sua completude, totalidade, como seres humanos como nós, como os mesmos sonhos, desejos, necessidades, por estarmos passando ao seu lado sem tempo para parar, ofegantes em busca de nosso vir-a-ser.

Finalizo com poesia:
Ver vendo, de Otto Lara Daniel Rezende
"De tanto ver, a gente banaliza o olhar… Vê não-vendo…
Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver…
Parece fácil, mas não é…

O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade…
O campo visual da nossa rotina é como um vazio… Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta…

Se alguém lhe perguntar o que você vê no seu caminho, você não sabe…
De tanto ver, você não vê…

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio de seu escritório… Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro… Dava-lhe um bom dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência… Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer… Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia… Em 32 anos, nunca o viu… Para ser notado, o porteiro teve que morrer… Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência… O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem…

Mas há sempre o que ver… Gente, coisas, bichos… E vemos? Não, não vemos…

Uma criança vê o que um adulto não vê… Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo… O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê…

Há pai que nunca viu o próprio filho… Marido que nunca viu a própria mulher (e desconhece os seus segredos e desejos), isso existe às pampas…

Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos… É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença…"

Báscula

Como seria bom se a cada 100kg de tensões que sofrêssemos, na plataforma de nosso viver, com apenas 10 quilos de esforço voltássemos a nos equilibrar, como faz a balança do tipo báscula ao medir o peso depositado na sua base.  Podemos contudo, ser básculas uns para os outro.
Pense nisso!

Por amor!

Nos limites do amor, longe é um lugar que não

 existe:

 tão perto quanto abraçar o infinito;

 tão real quanto tocar a saudade.

Medo de Crescer

Todos nós carregamos em nosso interior um filhote de coruja amedrontada, por sair cedo do ninho, e ter que lutar pela sobrevivência. Mas, é de lutas que é feita a vida. Resista!

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