Sejamos Básculas para o Outro


             

Vinha pensativo do trabalho para casa e, ao frear o carro em um dos 14 quebra-molas da Avenida do Sol, olho ao lado deparando-me com uma arvorezinha, à margem da estrada, vestida com flores brancas, tal qual fosse uma Cerejeira do Cerrado, uma Sakura Ja
ponesa.
Fico encantado. Aproveito que não vem carro atrás e que o pequeno JG dorme que baba, e a olho um pouco mais, contemplando-a em sua singularidade.
Percebo que as suas folhas são da cor Borgonha (tipo goiaba+bordô+grená+magenta), que de perto realçam mais ainda suas delicadas flores brancas.
Nunca houvera percebido esta árvore por aqui, e que ainda não sei seu nome, nos meus 13 anos de Cerrado. E olha que gosto de observar flores, pássaros, árvores, insetos e coisas do gênero.
As florezinhas brancas são ocultadas, encobertas ou passam despercebidas pela maior quantidade de folhas tingidas de Borgonha. Nunca vi esta árvore, em sua completude, pois sua copa, tingida de Borgonha, fica mais parecendo – ao longe, uma das tantas árvores que nesses tempos estão ressequidas, queimadas ou cobertas de poeira barrenta.
Só pude percebê-las, por que parei muito perto.
Corri então para casa, objetivando pegar a máquina e registrar tamanha beleza. Comi numa garfada só e voltei.
Fiz um monte de fotos, aproveitando o azul como pano de fundo, um azul que só o céu do Distrito Federal produz, nesta época do ano.
À noite embarquei para Campina Grande-PB. No outro dia, na casa de meus pais e parte dos filhos, descarreguei as fotos. Fiquei estatelado na frente do micro. Afastei-me do monitor, regulei a luminosidade. Nada funcionava. As fotos que houvera tirado ficaram horríveis. Fiquei triste, com sensação de perda. Elas ficaram com excesso de luminosidade, estouradas na cor branca. Não se aproveitava nenhuma.
Peguei a máquina, e entre uma fuçada e outra, vi que houvera programado a sensibilidade à captação de luz, chamada ISO (ou antigamente ASA) para 800. Geralmente as máquinas fazem isso automaticamente, e regulam o ISO de 100 a 400, em condições normais. O valor que eu programara só daria certo para fotos num breu, com quase nenhuma luz. Como as que tiro da lua. Quanto maior o valor ISO mais sensível será o sensor ou o filme. No geral, quando temos uma situação de bastante luz deixamos o valor ISO mais baixo para que a foto não fique superexposta. Quando temos pouca luz deixamos o valor de ISO mais alto para que a foto não fique subexposta. Ou seja, minhas fotos estragaram por alta sensibilidade.
Dias depois, voltei para Brasília e percebi que as flores brancas houvera caído todas. Perdera aquela oportunidade. Senti muito. Passei a dirigir contemplando copas, esperando achar outros espécimes. Procurava copas com folhas borgonhas.
Sexta passada, eis que na avenida L4-Norte em Brasília, pertinho ali do Minas Brasília Tênis Clube, sentido lago Norte, encontro várias delas, no canteiro central.
Neste final de semana aproveitei o sábado para ir fotografá-las. Sai de casa com a máquina com ISO regulado para automático, lente com boa relação normal-tele (boa para perto e longe). Segui feliz da vida.
Faço um monte de fotos, e volto correndo para descarregá-las no micro. Fico bem satisfeito com o resultado final. Algumas florezinhas brancas as registrei com a tele-zoom que aproxima bem. Já o detalhe das copas bordô-grená-goiaba peguei com a lente na função normal.
Hoje ao chegar ao trabalho, entre um cafezinho “segundal” e outro, contei aos amigos as aventuras de fotógrafo amador de final de semana. O Maurício aproveita e me diz que fez uma operação que deixou seus olhos funcionando tal qual a lente de minha máquina. Um olho dele vê de perto, outro de longe, chama-se Cirurgia de Báscula. Ele me contou que o cérebro trata as imagens que chega dos olhos e escolhe a melhor. Se for algo de perto, escolhe a de perto, e vice-versa. Fiquei estupefato com tamanha ciência. Consultado o termo, vi que a báscula é um tipo antigo de balança, usada para equilibrar o peso de objetos e fardos pesados, com outros nem tanto. Cada 100 kg pesados no prato da báscula equilibram-se num mecanismo com 10% de um peso colocado, na outra extremidade da balança, num engenhoso artefato. Veja uma foto da báscula no final do texto. 


Cismei nesta noite a remoer vivências que compartilho com vocês e comigo mesmo.
A primeira remonta à luminosidade, à sensibilidade. Acho que precisamos de um regulador de nossa sensibilidade emotiva. Nem sensibilidade demais, nem de menos, na justa medida. Outro dia um colega veio pedir-me uma informação para um trabalho que estava fazendo. Falei que passaria a informação. À tarde, ele mandou um funcionário perguntar-me se já estava pronta. Pronto. Lá se foi minha foto. Explodi. Veio à tona um monte de sentimentos que o pobre coitado não tivera acesso e não era culpado. Peguei-lhe para Cristo. Descarreguei nele minha frustação, por estar com o quadro de pessoal desfalcado, e até pelo volume de serviços. “Estourei a foto” na cara dele.
Usei indevidamente as lentes da emoção. Olhei excessivamente por elas. Movido pelo excesso de emocionalismo, dificultei o diálogo e a negociação de um prazo maior. Bastava uma única resposta, “ainda não fiz”. Mas, para mim, que estava com a ISO interior alterada, isso não bastava. Tinha que dá um chilique, fazer um show, esbravejar falando alto para todos ouvirem. Depois que passou, fiquei morto de vergonha. Faltou-me inteligência emocional (IE) suficiente para lidar com a situação. Alguns dos itens que compõe a IE são empatia, auto-conhecimento, capacidade de lidar com estresse e relacionamento interpessoal. Faltou-me tudo. Ceguei.  Você já percebeu o quanto isto é comum nos tempos atuais. Estamos todos mais intolerantes.
Menos resilientes.
Refiz minha trajetória profissional das últimas semanas e me encontrei com comportamento do tipo ISO-Estourada em outras ocasiões. Preciso me autoconhecer um pouco ais e detectar quando isto pode acontecer, mitigando o risco de explosões desnecessárias. Sendo mais maduro, sábio e resiliente. Líderes são exemplo, e suas explosões desagregam e induzem comportamentos e seguidores.
Emoções demais, “luzes demais”, atrapalham desde relacionamentos amorosos até profissionais. Fica-se excessivamente centrado, hiperreflexivo, tudo machuca, tudo dói, tudo irrompe em crises. Um verdadeiro “não-me-toque”. Um certo ISO do tipo casca-grossa é bom para saúde mental. E, na relação com o outro, quando “estouramos a foto” nem sempre teremos uma segunda chance para refazê-la, como tive com aquelas árvores na L4.
Também aprendi com a cirurgia do Maurício, ou com a minha high-tech, high-touch lente, que podemos ajustar nosso mecanismo de percepção para ver o que merece ser visto de longe, dentro de uma visão mais aberta, mais relacional, para captar toda sua completude. Daquilo que precisamos fechar o foco, ver mais de perto, com detalhes mais acurados, para ter acesso a detalhes que farão a diferença. Situações que não podemos adiar que temos de olhar de perto para melhor compreendê-las, a exemplos das florezinhas que só as vi ao ter que parar no quebra-molas.
Por outro lado, tem coisas que precisamos olhar de longe, relevar, compreende-las no conjunto de outras possibilidades ou alternativas que nos restam. Tem uma cena no filme sociedade dos Poetas Mortos, na qual o professor sobe em ciam da mesa e olha a realidade circundante. ele ensina que ás vezes é importante ver as coisas á luz de outras perspectivas, vez por outra ao analisar uma situação "subir na mesa", transcender á realidade. Algumas situações, ao escolhermos vê-las de longe, dão tempo ao tempo para melhor serem compreendidas, ajustarem-se na caminhada, ou serem até relevadas, aceitas e toleradas, em prol de uma convivência mais saudável Ao olhar de longe, podemos ver outras coisas que estão ao redor e que tornam o visto menos incompreendido, e mais harmonizado com o que lhe cerca. Compor um cenário, ao olhar mais de longe, ajuda a contemplar a paisagem, a perceber o belo que se forma da junção do contraditório e caótico. Tem coisa que ao ver de longe as colocamos num outro patamar de referência, de relações, que ao serem relativizadas fecham novas Gestalt, ressignificando o existir.
Lembro-me de um relato recente de um casal que ao chegar a seu lar, o encontrou saqueado por ladrões. Olhando num contexto de referência mais ampliado, mais de longe, comparando esta situação com outras, poderemos dizer que até deram sorte. Quantos meliantes esperam suas vítimas dentro de suas próprias casas e potencializam a desgraça?
A sabedoria reside em, a exemplo da visão do Maurício, saber ajustar o foco, ver de perto o que precisa ser visto de perto, e de longe o que precisa ser visto de longe. Mas como? Em mim ajuda-me a justar o foco interior o contato com meus líderes, amigos, família, ao conhecer suas histórias de vida, e como se saíram em determinadas situações. Ajuda-me também a espiritualidade, ao ver no outro e nas coisas que me acontecem mais do que acaso.
Por fim, fica como reflexão destas metáforas tão reais, como seria bom se tivéssemos uma báscula sempre à mão. Amigos que dividissem nossa carga, que fossem solidários, fraternos. Que nos ajudassem a equilibrar o peso do viver. Como seria bom se nos víssemos como esse ser que pode ajudar o outro a equilibrar suas tensões. Como seria bom se amadurecêssemos em nossas explosões emocionais, não a ponto de se tornar um Dr. Spok – aquele do filme Guerra das Estrelas, mas a ponto de compreender o que se passa conosco, naquele momento, antes de descarregar emoções que poderão ferir o outro. Como seria bom se tivéssemos um regulador de ISO interior. Até para situações que vamos entendendo como normais, que não nos tocam mais de tanto convivermos com as mesmas, e que pedem uma sensibilidade maior, um cuidado maior, um expressar maior de afeto, de humanidade, de sentir. Por exemplo, na vida a dois, no convívio com filhos e colegas de trabalho. Quantas das vezes vamos sofrendo uma entropia interior, ficando frios ao que nos rodeia, perdendo a capacidade de influenciar e mudar as coisas ao nosso redor.
Como aprendi com aquela árvore, com a ISO desregulada, com as lentes que focam perto e longe e com a báscula.
Seria bom se processássemos melhor o que nos acontece - selecionando as melhores imagens para o nosso viver, aquelas que nos engrandeceram. E desprezando as que nos causam dor, culpa e sofrer, aquelas que não nos farão sentido ou nos diminuíram como pessoa.
Despeço-me associando aquelas florezinhas brancas que só as reconheci 13 anos depois – ao parar num quebra-molas, às pessoas simples que nos rodeiam. Faz-se necessário, na trama da vida, que paremos no “quebra molas” e percebamos a beleza e delicadeza das pessoas que nos rodeiam, e até nos servem, algumas delas quase invisíveis - de tão simples e humildes. Pessoas que sempre estiveram ali por perto, mas que nem sempre foram percebidas na sua completude, totalidade, como seres humanos como nós, como os mesmos sonhos, desejos, necessidades, por estarmos passando ao seu lado sem tempo para parar, ofegantes em busca de nosso vir-a-ser.

Finalizo com poesia:
Ver vendo, de Otto Lara Daniel Rezende
"De tanto ver, a gente banaliza o olhar… Vê não-vendo…
Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver…
Parece fácil, mas não é…

O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade…
O campo visual da nossa rotina é como um vazio… Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta…

Se alguém lhe perguntar o que você vê no seu caminho, você não sabe…
De tanto ver, você não vê…

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio de seu escritório… Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro… Dava-lhe um bom dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência… Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer… Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia… Em 32 anos, nunca o viu… Para ser notado, o porteiro teve que morrer… Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência… O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem…

Mas há sempre o que ver… Gente, coisas, bichos… E vemos? Não, não vemos…

Uma criança vê o que um adulto não vê… Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo… O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê…

Há pai que nunca viu o próprio filho… Marido que nunca viu a própria mulher (e desconhece os seus segredos e desejos), isso existe às pampas…

Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos… É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença…"
A invisibilidade dos pequeninos    (Clique, vale a leitura)


3 comentários:

  1. Parabéns pela foto e pela sensibilidade em captar a beleza natural!

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  2. Dividir as descobertas...Incentivar a reflexão... Propôr atitude...
    Vi tanta vontade de inspirar a mudança em si mesmo, nos caminhantes da vida, através da dança das letras q me emocionei... (Luanda diria agora que sou emotiva por natureza)... Mas, me vi, de repente, aceitando "situações que vamos entendendo como normais, que não nos tocam mais de tanto convivermos com as mesmas, e que pedem uma sensibilidade maior, um cuidado maior, um expressar maior de afeto, de humanidade, de sentir". E das quais foi por isso que a enfermagem não deu pra mim... Quando vi os profissionais contando piadas diante dos outros deitados, doentes, inertes... E, cá estou eu, me acostumando a achar normal o que não é normal em educação!! Muito louco isso...

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