Somos tal qual um pedaço de muro sem tinta.
Todos os dias passo ao lado dessa casa, ao sair de meu condomínio. Fico invocado com aquela ponta do muro que falta ser pintada de branco. Resmungo comigo mesmo, “um dia pego uma escada, uma lata de tinta, e pinto este pedaço que falta.”
Hoje, mas uma vez, passei por ele e senti sensações estranhas. Tive vergonha de olhar o que lhe faltava. De sair resmungando recriminando o seu proprietário. Senti vontade até de pedir-lhe desculpas, por meu olhar carregado de preconceitos para com seu muro.
Por que esta parte desnuda deste muro me causou tanta estranheza?
Será que estou transferindo para este muro um olhar sobre mim recentemente, tão ácido como o para com este muro?
Alguém olhou para uma parte de meu muro existencial, que para ele faltava-lhe algo. Causava-lhe estranheza. Olhou-me pelo prisma da ausência de algo que enquanto não tenha não serei aceito no seu modelo mental, nos seus paradigmas organizacionais.
Fiquei triste, embora saiba que não somos unanimidade. Mas fiquei.
Creio que este muro carrega consigo duas distorções no olhar:
a. Ou, mira-se somente na parte sem tinta do outro. Como se não houvesse outras áreas completas, vendo a sua vida pelas lentes do fracasso, rejeitando-a.
b. Ou, mira-se somente parte pintada do outro. Como se na houvesse outras partes incompletas, vendo a sua vida pelas lentes do sucesso, cobiçando-a.
Na primeira, exclui-se o outro de nossa convivência. Seu pedaço sem tinta acirra intolerâncias. Ou, simplesmente condenamos-lhes à mais mortal das formas de ódio, à indiferença.
Na segunda, ao querer fortemente o que o outro aparenta ter como de sucesso, de belo, de parte pintada, cometemos o “pecado capital da inveja”. Paramos de admirar o outro pelo que ele tem e podemos chegar a ter, com nosso esforço. Passamos a nutir um sentimento mesquinho que torce, nos subterrâneos do ser, para que algo lhe ocorra para que o brilho dele, percebido por esta mente doentia, diminua. Como dizem por aí: secamos-lhe!
Estes olhares, muito distorcidos, seja no item a, seja no b. estão presentes atém em algumas passagens bíblicas. Profundamente humanos.
Ambas as posturas aprisionam o outro aos meus esquemas perceptivos, ao negar-lhe a autonomia, a idiossincrasia, a diferença e identidade que lhes são próprias.
Volto-me ao muro desnudo. Paro perto dele e reflito sobre a nossa própria saga como seres humanos. Somos assim mesmo. Nunca seremos perfeitos aos olhos dos outros. Sempre seremos vistos como incompletos, por mais pitados de branco que estejamos – tal qual estes 97% do muro, sempre seremos vistos, pelo falta que se destaca na convivência com quem amamos.
Imagine sua relação com quem convive. Se ela não estiver sendo renovada a cada dia, pode está caindo na mesma esparrela que caí ao olhar a parte de pintura que falta ao muro.
Um olhar imaturo, não sábio, incompleto, não preenche o que falta para fazer sentido. É um olha revestido de ódio que separa. De indiferença que anula. De calúnia que expõe. De inveja que mata. Ou de ciúme que sufoca.
Um olhar maduro, sábio, completo, preenche o que falta ao outro, para fazê-lo sentido em nosso viver. Preenche suas faltas com o amor que junta. Com o envolvimento que soma. Com o respeito que lhe preserva. Com a admiração que floresce. Com a confiança que liberta.
O olhar amoroso, a amorosidade, preenche no outro a parte que lhe falta para que possamos nos relacionar melhor.
O amor cobre-lhe a parte que lhe falta. Pinta-lhe na mente, tal qual passarei a pintar – doravante, a falta de tinta naquele pedaço de muro.
O amor possibilita que vejamos tudo como uma completude, embora nunca completo, entende?
Pense numa relação de um casal que se ama, projete-a para anos a fio quando por um descuido do destino este casal já não se gosta tanto.
Defeitos antigos vêm à tona. Cobranças nunca antes feitas, mesmo que nas mesmas condições tempos atrás agora lhes são feitas.
Quem mudou? Ninguém.
Apenas os olhos ficaram opacos com a rotina do dia-a-dia, faltando-lhe doses diárias do colírio do encantamento, do assombro, do perdão.
Por aí se instala o mostro da indiferença. Perde-se a admiração. Perde-se a cumplicidade. Perde-se a capacidade de ver as lantejoulas que restam no tecido do relacionamento interpessoal.
Percebendo só os rasgos, buracos, que vão perfurando este tecido coma convivência diária. O tecido do relacionar-se vai ficando puído, cheio de defeitos, e perdemos a capacidade de enxergar o brilho que ainda resta. Ou até de cultivar novos brilhos, afixando nele outros remendos coloridos, tal qual fuxicos de crochê em panos simples.
Que torna bonito até panos de chão.
Aí a relação vai esfriando, vai entrando no ciclo briga-paz, indiferença-apatia, monotonia-silêncio. E aí começamos a perceber as partes faltantes no outro. E elas nos incomodam e assustam. Aquela beleza que outrora ele tinha ainda está ali, mas teimamos em fixar-nos no que está exposto, no que achamos que falta á relação.
O amor completa. Conforma, liberta. O amor fluidifica a visão, atenuando as diferenças e preenchendo com boas doses de aceitação ao que provocaria estranhamento ou contenda.
Temos sempre algo que no outro não causa admiração, que pode causar estranheza.
Em alguns casos mais graves, de estranheza, queremos resolver por nós mesmos nossas diferenças com o outro: regionais, culturais, esportivas, políticas, religiosas, étnicas ou outras que nos causem indignação.
Estamos cada vez mais intolerantes com o que para nós soa como diferente.
Cada vez fazendo mais o que faço com o muro, querendo que ele seja como acho que deve ser e não como ele é.
As redes sociais ampliaram estes brados de intolerância, criando verdadeiros guetos tribais que guerrilham entre si.
Será que temos que ser completos, para ser belos?
Por que será que diante de tanto branco, eu fixo logo o olhar naquilo que falta, perdendo a oportunidade de ver a beleza no que resta, e que é bem maior do que a parte faltante? Será que tudo precisa estar nos mínimos conformes, em todas as áreas de nossa vida, para que nos olhemos, e ao outro, com respeito?
Cobrar a perfeição do muro pintado não será querer demais de nós mesmos, e do outros com o qual cruzamos nossa jornada?
No espaço da convivência humana, temos que ter cuidado para não fazer com o outro o que faço com este pobre muro, discriminando-o por ferir meu senso de estética. Cismando com algo que nele não esteja fazendo sentido ao meu mundo de valores, rejeitando-o de meu círculo social.
No extremo, até agindo para com ele com preconceitos de todos os tipos.
Uma pena.
Abençoado pedaço de muro exposto, com o seu reboco aparente, você ensinou-me tanto neste dia.
Ensinou-me a olhar as partes que não fazem sentido em mim mesmo e no outro, e a admirá-las, como uma possibilidade, uma alternativa, de crescimento e de encontro.
Aprendi que a diferença, mais do que separar e estranhar, pode complementar e enriquecer minha jornada. E que querer ser uma unanimidade, uma “Brastemp pessoal”, é tão perigoso para o ser quanto querer pegar uma escada e sair para pintar aquele muro.
Um pouco de imperfeição e loucura são fundamentais para a saúde mental. Não somos uma raça pura, graças a Deus!
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