Cartas ao JG – Gratidão


Filho, hoje mais uma vez voltamos juntos de sua escola. No caminho, viemos escutando a rádio Jovem Pan, Programa Missão Impossível. É um Programa que une pessoas, ao mediar uma ligação entre elas, de uma pessoa pra outra, proporcionando declarações de amor, ao vivo.
Hoje ligou um tal de Jean, de Fortaleza-CE, querendo mandar uma mensagem para sua patroa, dona de um restaurante. Ele queria agradecê-la por tudo que ela fez por sua vida: pessoal e profissional, quando migrou de Teresina-PI para Fortaleza-CE, sem dinheiro algum.
A patroa ouviu tudo emocionada. É tão difícil filho, ver agradecimentos de funcionários aos seus patrões. E, de patrões aos funcionários, é mais difícil ainda.
Achei a cena comovente, não só eu, os radialistas também ficaram hipnotizados e deram mais tempo que o costume ao quadro. É que eles nunca receberam esse tipo de ligação, expressando esse tipo de amor – um amor de gratidão.
Se eu pudesse deixar pra ti uma mensagem sobre o amor eu diria: sê grato.
Tenha um amor de gratidão. Nunca espere um amanhã qualquer para agradecer a quem te ajudou hoje. Aguce a percepção sobre as pessoas que contribuirão com o teu viver melhor, abrirão portas e aplainarão teus caminhos.
Você irá conviver com muitos ingratos, não aprenda a ser como eles.
Tem um monte de gente que acha que merece e pronto. Que se acha o centro e que todos deverão servi-los. Na hora dos aperreios, vão te procurar, pedir ajuda, uma forcinha. Depois que conseguirem o que precisavam de ti, simplesmente esquecerão, não serão capazes nem de te dizer um simples: Obrigado.
Não seja como eles. Não se nivele a eles. Agradeça e sempre!
E, blinde seu coração para não ficar resignado aos ingratos. Deixe de bobagem. Você não irá mudá-los, simplesmente eles não aprenderam a ser gratos. Foram educados para o desamor, para a competição e violência emocional que divide, que segrega, que afasta.
Portanto, seja generoso, bom, justo e manso de coração sem esperar nada em troca.
Só porque tu não saberias ser diferente, e isso é o que te faz melhor a cada dia. Simples assim.
Não queira ser bom para receber nada em troca. Esqueça isto.
Sê bom para deixar esse mundo melhor, em retribuição ao que você já recebeu.
Não espere um Programa de rádio para surpreender alguém com um gesto de agradecimento, uma atitude de reconhecimento, um mimo, um carinho.
Torne isso uma constante na sua vida. Esteja atento, pessoas boas estão em todos os lugares.
As ruins idem, mas quanto a elas, só você poderá permitir que elas adentrem, ou não, ao seu coração. Trata-se de uma decisão. Toda vez que levar para casa uma pessoa ruim, uma coisa ruim que fizeram a ti, essa pessoa viverá em ti. E, essa mágoa e ingratidão também.
Desapegue deles, dos ruins.
Pense nisso, guarde o bom. Cultive o bom. Faça o bem.
Não se domestique ou se brutalize como muitos homos-amebas-violentus por aí.
Sê revolucionário, revolucionário do amor.

Retribua



À minha frente, no caixa do supermercado, uma jovenzinha magrinha e com cabelos bem tosados. 
Sua aparência era frágil. De quem está assustada com algo. Magrinha, qual um pavio, daquelas que se der um vento forte leva.
Odeio fila de supermercado e o próximo à minha frente é sempre alvo de observação. 
Temo sempre aqueles que vão arrumando sua feira lentamente, classificando-a e depositando-a, pacote a pacote, saquinho à saquinho, como se o caixa e o tempo  fosse só deles.
Temos os que chegam com poucas coisas, "marcando o lugar", e logo aparece um tantão de novas mercadorias.
Temo os que esquecem a senha. 
Temo os que teimam em teimar com a caixa de que o produto que ela passou está com o preço errado, não confiando no desconto ao pé da nota.
Na verdade, temo filas. Tenho fobia às filas.   
Só isso.
Eu sou daqueles que ao entrar numa fila pensa: algo vai acontecer e a fila vai demorar. O famoso: "só comigo".
A mocinha foi tirando as coisas do carro, colocando-as na esteira do caixa. Notei que eram tomates, cenouras, cebolas e um jogo de pilhas. Os legumes, ela ia  espalhando-os na esteira, sem os fieis escudeiros saquinhos plásticos. Ela lhes tirava do carro como quem os retira da terra, e estavam nus. Sem as "raízes" dos saquinhos plásticos. Juntei uma tatuagem ali, uma bolsa surrada acolá e os "não-sacos-plásticos"... bingo! É da tribo dos natureba, pensei.
Pronto, acabei de criar uma ponte com aquele serzinho minúsculo.
Então, ela ia fazendo pequenos conjuntos sortidos de legumes e pesando-os no caixa. E, ia acompanhando apreensiva o crescimento de sua fatura. a caixa olhava sem paciência. Eu, falei internamente o meu famoso: "só comigo". 
Dei um tempo na minha intolerância e rabugice e cultivei um pouco de empatia. Afinal, o que estaria acontecendo ali?
Ela retirava um legume de cada e ia pesando. Garantindo que fosse passando um de cada tipo. Embasbaquei. A cena era de um realismo fantástico. 
Esqueci minha pressa, minha agonia, minha ansiedade-filesca.
Fui observando os conflitos dela, nos tamanhos que levaria à classificação, antes da  pesagem. 
Ela abriu a carteira e restava 2 reais. Não deu para não ver.
Ela não tinha cartão.
A caixa estava nervosa.
Ela ia fazendo combinações, pesando a mercadoria na balança e retirando as que ultrapassavam seu pouco orçamento. Fiquei pensando: "se minha mulher visse eu fazendo isto...botar os legumes direto na esteira sem estarem em saquinhos plásticos"...
Cortei de minha mulher e falei pra caixa, quase num sussurro:
"Ponha tudo que eu pago".
A caixa estragou a delicadeza do gesto e esbravejou. "Como assim o senhor paga?" Ela estava sem paciência. 
Repeti-lhe com ternura, sem olhar para a jovem, que àquela altura já estava rubra. 
"Senhora, ponha a mercadoria que falta na minha conta, feche a conta da cliente com o que ela tem, o resto eu pago".
Dessa vez a cliente ergueu a vista e dirigiu a palavra para mim. O corpo dela falava como quem me pedisse desculpas. Ela estava confusa, envergonhada. Falei que eu só estava fazendo o que já fizeram por mim, que sou muito grato a Deus por tudo que já recebi. Só devolvo. 
Ela me disse: "Isso está acontecendo mesmo? Diga-me que é brincadeira, não acredito que ainda exista isso, eu já ia deixar o restante..."
Disse-lhe para acalmar o coração e que coisas do tipo acontecem, e que amanhã poderia ser comigo. Ela me disse: "mas tem que doar com amor, um amor como o que senti, obrigado". 
A caixa olhou para mim como se eu fora um ET.  Não se conteve e me disse: 
"Acho que ela empacotou algo do senhor". 
Disse-lhe, "deve ter sido um dos Kinder-Ovo, não tem importância, comprei muitos". 
Ela ficou mais embasbacada ainda. 
Aí lhe falei: "não foi um jogo de pilhas?".
Ela sorrindo nervosa, com um sorriso desumano de quem foi pega numa maldade que desejou ao outro, disse-me: "foi!".
Olhei para ela com compaixão e disse-lhe: "O jogo de pilhas era dela mesmo. Ela não tirou nada de mim de que eu não já tivesse doado ".  
cri cri cri cri cri.

Projete sua Sombra Sobre Flores




Leve sua sombra para passear sobre um chão de flores amarelas.

Contemple-as.

Fique um pouco, vendo do sol sobre teu ser, projetarem-se formas no eterno.

E, leve-a para se deitar num colchão macio de pétalas.

Não. Não é hora de adormecer teus sonhos.

Projete tua sombra nos jardins do infinito. Não é hora de adormecer tua vida.

Quantas sombras do divino até hoje habitam em ti?

Teimaram fazer morada no teu interior. Em corporificarem tua existência, dando sentido ao indescritível, ao que não se pega, ao que não se materializa.

Ao que em ti se projeta e de ti se projeta, que se chama de amor.

Um amor que pode ser como uma sombra, uma sombra que se deita numa calçada de flores, que desafiam a dureza da realidade. que subvertem a ordem reinante e teimam em acreditar que dias melhores virão. Isto é o amor.

Quantas sombras de amor habitam teu interior?

Lembro que minha vó Dulce deixava que nos refrescássemos num tanque de lavar roupas que ela tinha no quintal.

Nós pegávamos um buzão vindo da praia, em João Pessoa, até o Bairro do Jaguaribe, uns 20KM. No corpo, resto de sal, moleza, cabelos desgrenhados, cansaço, fome e muita... muita areia.

Ela nos recebia com um feijão cheiroso na cozinha, de babar. E, sem nem botar a mesa, abria a porta da cozinha que dava para o quintal.

Ali habitava o amor. Era um pequeno reservatório de água, de um metro por um metro, e uns 50cm de fundura. Eis que aquilo virava um piscinão, na imaginação e tamanho de nossa tenra idade.

Depois, íamos almoçar, felizes da vida. Nunca mais entrei em piscina tão prazerosa. Nunca.

Aquela sombra de minha vó Dulce, vó materna, acompanha-me até hoje. A sombra do amor.

No quintal de Vó Maria não havia tempo ruim. Quantas vezes fui em busca da sombra do amor que dela irradiava naquele quintal. Quantas!

Início de carreira, salário apertado, dívidas aos montes. Nunca cheguei na sua casa, que era ao lado da minha num conjunto popular de campina grande e sai do mesmo jeito.

Conversar com Vó Maria era conversar com a alegria e tocar na esperança.

Sempre arrumada, batom nos trinques, vaidosa de dá gosto, ela gostava da vida.

E nunca faltava, nos fins de tarde, um cafezinho e umas broas na cozinha.

Eu morava ao lado, era só abrir o portão e ir sorrir ao seu lado. Sorrir das galinhas que tiraram ninhada, dos gatos que comeram os pintos, das coisas simples e bobas da vida.

Conversar com vovó era melhor do que teclar no Facebook. Ela era falante, tinha uma opinião sobre tudo. Uma vez levei uma revista de humor que postou uma montagem do então candidato à presidente, Collor, com a bunda de fora. Acho que era a Casseta e Planeta. Ela desistiu de votar nele. Cacaca




Perdoe-me vovó, a causa era justa.

Na cozinha de sua humilde casinha de conjunto, morava o eterno. Ali, nas sextas á noite levava os filhos pequenos, botava uma dose pra mim, de uma velha cachaça encardida, e enquanto ela brincava com eles eu me inteirava da vida de meus familiares, por parte de pai.

Tio Naldo, que morava no lote de atrás de sua casa, ouvia o barulho, abria o portão dos fundos e juntava-se a nós. E a festa aumentava. Eu dizia: “Titio, trouxe um Whisky Drury's de Remígio-PB”. Ele, com água na boca, pedia para eu ir buscá-lo, pois queria uma dose.

Eu trazia escondido e abria na frente dele: um Drury's. “Isso? Isto não é uísque, e é pior do que cachaça”. Cacaca.

Gargalhávamos. Era o que dava para eu comprar.

Sorríamos os dois, e botávamos umas pedras de gelo para encarar aquele troço ruim.

A sombra amorosa de minha vó, que ficava num canto nos olhando embevecida e orgulhosa de sua família – qual galinha que põe as crias embaixo de suas asas, não me sai da cabeça e me acompanha até hoje.

Quem ama em vida, não morre. Sua sombra é qual a sombra dessa foto, é sombra se eterniza, qual a sombra sobre um tapete de flores.

Fica em nós sua presença, suas atitudes, seus valores, suas melhores peraltices.

Hoje me pergunto: que tipo de sombra quero deixar?

Como quero ser lembrado?

Já vi muitas pessoas escrevendo isso ou aquilo quando cruzam a barreira dos cinquenta, setenta, noventa...

Eu só escrevo uma única coisa. Preste atenção.

Sabe aquela “tanque-piscina” no quintal da casa de vó Dulce?

Sabe aquele cafezinho e o uísque Druyrs de pior qualidade, na casa de vó Maria?

Sabe aqueles momentos em que tua sombra descansa sobre flores, momentos de paz, de eternidade, de alegria, de amorosidade, de comunhão...

Sabe?

Eles passam rápido demais. Tire muitas fotos. Faça vídeos. Não perca a noção do quanto eles são importantes. Não os desqualifique. Não deixe para amanhã, voltar naquele tanquinho para se refrescar.

Mesmo se chegou cansado, após 300 autenticações, visite sua vó que mora ao lado, e vá tomar um cafezinho com ela antes de dormir.

Será que tu me entendes nessa noite?

Procure tapetes de flores e estenda sua sombra. Outros vão se deitar sobre ela e se refrescaram, animando-se a viver mais um dia, a serem mais esperançosos.

E, se sente que alguém pra ti é essa sombra rejuvenescedora, que te faz melhor, diga-lhe nesse dia o quanto essa pessoa é pra ti preciosa.

E, faça isto com gestos.

Feliz primavera.

Cartas ao JG. Aprenda a seguir!









Filho, vimos um vídeo com alguém que perdeu um gol. E quis pedir uma falta que não ocorreu. É gente que perde o gol e usa de artimanhas para tentar novamente. Gente que vai querer te passar a perna, usando de meios ilícitos.
Na vida tu vai fazer gols de letra. Vai levar frangos, mesmo quando alguém especial torce por ti. Vai ter de tudo.
O que te recomendo?
A mesma postura desse teu primeiro treino.
A de não desistir. A do otimismo insano e do pensar positivo.
Pois, as coisas sempre poderão melhorar.
A de não buscar culpados. A de não ficar chorando à margem do campo, apelando para injustiças que sofreu.

Lembra que cada um só podia bater um pênalti?
E que você pegou o primeiro?
Lembra que o amiguinho protestou e convenceu o técnico a bater mais um, e você não conseguiu agarrar?
Lembra que não desistiu, fez birra, ou protestou?
Apenas acreditou que quando chutasse poderia virar o jogo, em 2 x 1, lembra?

Assim é a vida.
Nela, nem sempre ganhamos, nem sempre perdemos, mas podemos aprender a jogar... como diz a poesia. Mas, precisará ser sábio o suficiente para nutrir esperanças boba e novas, e a cada momento. Como fez hoje e me emocionou. Você só queria jogar. Ganhar ou perder não importaria. Você só queria participar, brincar, se envolver com algo que te desse um sentido maior.
Não sem razão teu técnico vibrou com teu gol, Ele sacou que pisou na bola ao permitir que o outro jogador batesse dois pênaltis contra ti.
Quarenta e cinco anos nos separam nesse 2014.
Mas, vejo em ti tanto de mim. Corra filho... corra que te aguardo ao lado do campo e sempre. Para te apoiar, animar e vibrar.

Contigo Aprendi...

Acordei com uma sensação estranha: não triste, melancólica ou asfixiante, apenas estranha.
Estou a uma lua cheia de meu jubileu de ouro.
Datas podem ser marcações na partitura da vida, pontos de reflexão.
Para mim, essa será uma data especial.
Nem acredito que nela cheguei.
Refiz minha vida algumas vezes nessa jornada.
Retomei cursos de meu viver que estavam saindo do controle.
Desapeguei de tanta coisa que pra mim um dia fizeram sentido.
Perdi fotos maravilhosas, e crônicas de tirar o fôlego.
Esqueci um monte de coisas.
Outras ficam me atazanando, qual fantasmas em noites carregadas.
Sinto-me tão jovem.
Agora estou recolhendo meus bons momentos, pedaços de mim mesmo valiosos que fui deixando por aí.
É o tempo dos recolhimentos.
Lembro-me de situações vividas, tal qual retrata um trecho da poesia Cântico Negro:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces. Estendendo-me os braços..."

A estas situações, respondi com minha vida, e na mesma verve poética:

"Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos...Se, ao que busco saber nenhum de vós responde, porque me repetis: "vem por aqui!"?"

Agora, vou comprar terra macia para deitar meu pé de Cagaita. Mais tarde, celebrarei minha vida plantando uma árvore. Realizando um sonho, um simples sonho de ter uma Cagaita no jardim.
Creio que por isso eu sinto-me um estranho.
Muitos atravessam a barreira dos 50 despedaçados. arentes de sonhos. Eu tenho um monte deles ainda a realizar. Um tesouro. Muitos carregam seus fardos de viver e chegam aos 50 exaustos. Fragmentados e perdidos de si mesmo. Eu dividi meu fardo com quem fui amando ao longo da vida. Ficou bem melhor a travessia. Aprendi a praticar o perdão, o desapego, a generosidade e a gratidão. Elixires da vida eterna.
Nos embates da vida, alguns acabam por perder a capacidade de voltar e juntar os bons cacos caídos, e reconstituírem-se como pessoa, a cada luta, a cada luto.
Vão deixando-se tomar por atitudes excessivamente individualistas, narcisistas e materialistas, perdem o encanto de viver, depositando este nas coisas que o pó corrói.
Deixam de lutar, crescer como pessoa é lutar.

Eu luto contra a resignação, as rabugices, a descrença, as verdades pétreas, a chatice, o mal humor, o "já vi esse filme". Luto diariamente. Os anos rodados podem nos deixar muito bestas. Temo.
Temo, e travo uma luta diária para não envelhecer meu ser interior.
Sou contradição e recomeços, sempre. E, aprendi que a única pessoa que precisa ficar de bem para comigo mesmo, sou eu. Simples assim. No final, somos nós e o espelho. Assim, se tiver vontade de tomar sorvete com sopa, eu tomo. Vomito etiquetas e padrões socialmente estabelecidos, caso não me façam sentido.
Luto para que criança que habita em meu ser, saia de onde se escondeu
- nas coxias do palco de meu viver, e atue em mim trazendo-me um pouco de sua ousadia, paixão, alegrias simples, recomeços, intrepidez e as suas mágicas brincadeiras com o nada.

Essa criança ferida, amedrontada, tímida e quase sem voz ainda é a minha melhor porção, meu mais potente anticorpos contra a doença do século: a falta de sentido na vida.

Um sentido que vem me ensinando, que o que realmente importa na vida é o respirar amor; e o exalar esperança para todos que lhe rodeiam e para si mesmo. Esperança que tudo vai ser melhor.

O resto, são só folhinhas num calendário encardido que o tempo teima em virar, ano a ano.

Somos Ipês


Andar por Brasília nos meses de agosto,setembro e outubro é como andar num jardim de belas flores, e a céu aberto. Logo cedo dá pra sentir o orvalho da esperança anunciando mais um dia azul anil. As florezinhas do Cerrado, alegres e sapecas, vão se vestindo para nos receber na ante  sala da vida.

É terapêutico passear pelas suas largas avenidas, olhando as diversas espécies que aqui foram plantadas, quando de sua instalação. Cagaita, Cambuí, Pau de Rosas, Canafístula,Cássia, Quaresmeira, Sapucaia, e os estonteantes Ipês.

Os Ipês são quase um patrimônio do Distrito Federal. Quem mora aqui, pode regular o ciclo de sua vida pelas suas floradas. No auge da seca, e da baixa umidade, quando respirar em Brasília fica doentio, eles chegam para nos ajudar a suportar as adversidades do tempo. Primeiro, chegam os Rosas. Depois, os Amarelos. E,agora, os fugidios Brancos. Os brancos passam somente 15 dias de florada. São geniosos. Quem não os fotografou ainda, que se cuide, amanhã poderá ser tarde demais. Acho que os Ipês, nas suas várias espécies e tonalidades, falam de amor.

Os que vão de rosa à lilases brotam no final de julho, inicio de agosto. Eles nos remetem ao amor das paixões, das tesões, da buscas infinitas por algo que nos tornem imortais. Falam de uma vida cor de rosa,uma vida boa,prometida, alegre, uma vida que emerge no "tom de rosa choque". Falam da delicadeza, dos encontros com amigos e das primeiras descobertas afetivas. Eles falam de uma amor ao eu. Um amor de autoestima. Um amor de saber o que nos faz bem e feliz. Um amor de encontros consigo mesmo, de formação de identidades.

Os de flores amarelas revelam sua magnifica do final de agosto para o setembro. Para mim, eles representam os aprendizados com as experiências vividas. O amarelo da sabedoria, do discernimento, do sentido da vida que vamos pulsionando nosso ser. O amarelo das escolhas, escolhas que nos amarelam pelo medo de assumi-las. O amarelo nos encanta, pois sedimenta as paixões, acalma o coração. Eles falam de um amor ao outro. Aos filhos, parceira(o) afetiva(o), aos amigos mais próximos. Um amor de criação de vínculos. Agora eu sei com quem sou feliz. E, quero ficar perto deles, na sombra de ipês amarelos.

Agora, em pleno setembro, chegam as arredias flores dos Ipês Brancos. Eles conseguem manter suas pétalas brancas, mesmo com altas doses de fumaça e poeira no ar. Pessoas sobem os acostamentos para os contemplarem. Outros, divulgam em suas redes os pontos melhores para sua observação. Eles trazem o branco da harmonia, da tolerância, da paz. Eles nos remetem às nuvens, aqui na terra, "venha a nós o Vosso Reino". Eles falam de um amor de nós, um amor à humanidade, a todos os povos e culturas. Um amor de pertencimento a uma causa maior: a causa da coletividade. Um amor de cidadania. Já não somos eu, tu... agora viramos nós - nos vários grupos que nos afiliamos e nos representam.

No dia do Cerrado(11/09), o ciclo das flores dos Ipês nos ensinam a não parar o nosso crescimento interior.

A semear mais ipês rosas onde faltar a paixão. E, nos lugares em que nos perdemos de nós mesmos, achando que somos pequenos demais para existir: rosa neles!

A cultivar mais ipês amarelos, a nos alertar que sem os outros não somos pessoa. Quem sem os amados nossa vida fica sem sabor e encanto. Somos os elos que criamos com aqueles, para os quais, viver vale a pena.

Por último, as floradas dos ipês no Distrito Federal, na exuberância dos ipês brancos, grita a cada esquina que a vida é breve. Que precisamos de tempo para delicadezas, afetos e subjetividades do ser. Tempo para as coisas do Alto. Tempo para o autoconhecimento, tempo para nos afiliarmos a uma causa. Eles nos convidam à contribuição, para edificarmos um outro mundo possível. Melhor do que o encontramos. Impossível ficar ao lado de flores tão frágeis, que desafiam o mês mais seco do DF, sem sentir seu sutil perfume que anuncia profeticamente que a Primavera vem logo ali, e inundará de esperança os corações dos Homens de boa vontade.

Cave um pouco mais, em busca de si mesmo.


Sr. Daniel é o Tio Barnabé do sítio de meu amigo Catão. Catão veio visitar sua filha e trouxe o Daniel. Uma figura rara. De prosa alegre, sempre de bem com a vida, sr. Daniel conhecia cada manha das plantas e bichos que cuidava. Falava deles com orgulho.
Aproveitei sua estada e pedi que ele cavasse uma cova para minha Cagaita, uma planta que adquiri por telefone de um viveiro de Goiânia, e que ainda não chegou. Tem que ter fé.
Ele cavou um buraco decente. Disse ele que em terra ruim tem que cavar profundo, ir além das dificuldades e aprofundar o solo.
Retirar de seu interior o cascalho velho, pedregoso, sem nutrientes e substituir o solo por uma terra adubada.

Ele poderia ter parado aos 40 cm. Até ali a terra era macia, sem maiores dificuldades.

Mas, ao aprofundar o buraco, para chegar ao 1 metro de fundura, ele encontrou um leito compactado, rochoso, de difícil penetração.

Não desanimou, lugar que só trator cava, Sr. Daniel encarou e abriu o solo, terra abaixo, centímetro a centímetro.
"Lasquei-me, o lugar era difícil, era solo ruim...”
Mas, Sr. Daniel não é homem de entregar serviço mal feito, pela metade.
Ele sabia que as raízes dali não passariam e que só aquela cobertura de solo não seria suficiente para o crescimento da planta.
Avançou, sol a pino, lentamente. Mas não desistiu.
Se você olhar atentamente a foto verá a diferença de solo, pelas cores. O mais fofo é mais vermelho, o mais compactado é mais pra bege.
Serviço feito, agora é preencher o buraco com a terra boa e jogar o cascalho estéril fora, só serve de aterro.
Quem gostou do buraco foi o João Gabriel que encontrou logo um esconderijo ideal para suas peraltices.
Sr. Daniel, ou Tia Barnabé dos contos do Monteiro Lobato, são pessoas que amam o que fazem e fazem bem. São quase instituições nos locais em que habitam.
Catão, ao contratá-lo em 2010 não sabia que estava ganhando mais que um empregado rural. Estava ganhando um amigo, um sábio tio Barnabé.
Mas, Catão também é especial e acho que pessoa especiais atraem.
A pouco mais de um ano faleceu Eusa, a esposa do Catão. Eusa era a vida em pessoa. Ocupava todos os recantos daquele pequeno sitio. Uma grande amiga, senti muito sua partida.
Sempre disposta, arranjava mil atividades para Catão e Sr. Daniel. Cada cantinho daquele sitio virava uma espécie de Sítio do Picapau amarelo coma presença de Dona Eusa, uma espécie de Dona Benta, para manter a analogia.

Ela era a bondade e o afeto em pessoa. Rimos muitos das nossas doidices.

Catão e Sr. Daniel sentiram muito a morte fulminante de Eusa, acometida por um câncer no pulmão.
A partir daí eles firmaram mais ainda a amizade. Um cura o outro, e ambos se fazem companhia. Coisa de Deus.

Olhando o buraco pensei no processo de autoconhecimento.
Creio que o autoconhecimento é um buraco que nos permitimos abrir em nosso ser, em nossa autoestima, em nosso orgulho, em nosso mundo de valores.
O autoconhecimento permite que nos aprofundemos em nós mesmos: naquilo que nos faz felizes, nos faz mal, nos amedronta, nos entristece, ou nos torna mais corajosos.

Agora tem que ter muito vigor e determinação para encarar a si mesmo. Não pode parar aos 40 cm.

Tem que se permitir ao mergulho, num processo que não acabará nunca mais.
Quando aprendemos a técnica nunca mais a largamos.
Não é uma técnica de difícil prática, exige apenas não parar à primeira resistência interna. Continuar, centímetro a centímetro a se descobrir.
A identificar as nossas forças, aquilo que nos faz diferentes. E a identificar também os cascalhos em nosso viver.
Capacitando-nos a retirá-los, expurga-los de nosso meio, possibilitando que nosso ser volte a se desenvolver.
O autoconhecimento abre espaço para que nosso interior possa suportar e alimentar o crescimento existencial.
Abre espaço para a renovação, para o descarte do que não faz mais sentido, a convivência com o que não se pode mudar, ou a mudança do que se pode operar e sob o qual temos controle.
Cavemos mais um bocadinho em nossos ser interior. Será que o que incomoda no outro não é o que em nós faz falta?
Será que o que nos entristece não é justamente o que guardamos em nosso interior, tal qual um cascalho sem nutrientes que tudo em que nele se planta é condenado à morte.
Vinga alguma coisa de um solo-coração cheio de cascalho-emoções pobres em ternura, afeto, perdão, esperança, aceitação e gratidão?
Crescer como pessoa é um tanto “arriscoso”. Exige esforço. Disciplina, resiliência e sabedoria. Crescer é dolorido. Precisa disposição para o desapego, para o abandono, para a renúncia, para recomeços, para a liberação de choros contidos e lágrimas represadas, implorando há séculos em nosso ser a sua mais bela expressão.
Crescer é complicado. Melhor reproduzir o ambiente.
Tornar-se mais um.
Melhor fingir que não é conosco, aumentar o som do carro, evitar ficar sozinho, ter aversão ao silêncio, medo de espaços de autoconhecimento, fugindo de qualquer possibilidade de escuta de si mesmo.


E, caso alguma terra boa tenha saído da sua cova interior, junto com a ruim, com o cascalho pobre em nutrientes, devolva-lhe com carinho ao seu interior. São suas forças e virtudes. O que te faz melhor a cada dia. Cuidado, para que no autoconhecimento, no cavocar de si mesmo, não jogue coisas boas de você junto com o cascalho. Entendeu? 


Na vida, existem as ferramentas do Sr. Daniel, avançando em nossos ser, solo adentro, na busca de nossa melhor essência. Elas são: a renovação de nossos valores, a disposição de pautar a vida pela ética e dignidade da vida, os valores, os bons amigos, os relacionamentos de confiança entre parceiros, os feedbacks que vamos recebendo nas instituições que frequentamos, verbais ou não-verbais, a fé, a educação, a meditação, e, não menos importante: a revisão de consciência diária.

Uma bela planta vingará de ti, dando fruto, sombra, flores para abelhas e casais apaixonados, madeiras para mourões como a Cagaita que plantarei.
Cagaita que de tão bela e preciosa, árvore rara do Cerrado, ensina-nos que no outono de nossa vida não precisamos perder todas nossas folhas e ficarmos com galhos expostos.
Podemos fazer como elas, que a cada folha velha e sem pique que cai de sua copa - no outono, faz vingar brotos carmins-avermelhados, dando lugar a tenras e esperançosas folhinhas em seu lugar.
Dispostas a enfrentar mais um ciclo de vida: primavera, verão, inverno, outono.
Assim devemos ser. Trocar folhas velhas por novas, e não nos contentarmos com o mundo que nos rodeia, mas fazer nossa parte para sua renovação.
Algumas folhas precisarão cair em nossa vida para que novos rebentos viguem.
Algum cascalho velho, e sem sentido, deverá ser cavado e descartado, sendo substituído por terra boa.
Para que nunca nos cansemos de viver, de renovar nossos propósitos, sonhos, projetos e fé.

Valeu Sr. Daniel, preciso cavar mais um pouco... e sempre!

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