Retribua



À minha frente, no caixa do supermercado, uma jovenzinha magrinha e com cabelos bem tosados. 
Sua aparência era frágil. De quem está assustada com algo. Magrinha, qual um pavio, daquelas que se der um vento forte leva.
Odeio fila de supermercado e o próximo à minha frente é sempre alvo de observação. 
Temo sempre aqueles que vão arrumando sua feira lentamente, classificando-a e depositando-a, pacote a pacote, saquinho à saquinho, como se o caixa e o tempo  fosse só deles.
Temos os que chegam com poucas coisas, "marcando o lugar", e logo aparece um tantão de novas mercadorias.
Temo os que esquecem a senha. 
Temo os que teimam em teimar com a caixa de que o produto que ela passou está com o preço errado, não confiando no desconto ao pé da nota.
Na verdade, temo filas. Tenho fobia às filas.   
Só isso.
Eu sou daqueles que ao entrar numa fila pensa: algo vai acontecer e a fila vai demorar. O famoso: "só comigo".
A mocinha foi tirando as coisas do carro, colocando-as na esteira do caixa. Notei que eram tomates, cenouras, cebolas e um jogo de pilhas. Os legumes, ela ia  espalhando-os na esteira, sem os fieis escudeiros saquinhos plásticos. Ela lhes tirava do carro como quem os retira da terra, e estavam nus. Sem as "raízes" dos saquinhos plásticos. Juntei uma tatuagem ali, uma bolsa surrada acolá e os "não-sacos-plásticos"... bingo! É da tribo dos natureba, pensei.
Pronto, acabei de criar uma ponte com aquele serzinho minúsculo.
Então, ela ia fazendo pequenos conjuntos sortidos de legumes e pesando-os no caixa. E, ia acompanhando apreensiva o crescimento de sua fatura. a caixa olhava sem paciência. Eu, falei internamente o meu famoso: "só comigo". 
Dei um tempo na minha intolerância e rabugice e cultivei um pouco de empatia. Afinal, o que estaria acontecendo ali?
Ela retirava um legume de cada e ia pesando. Garantindo que fosse passando um de cada tipo. Embasbaquei. A cena era de um realismo fantástico. 
Esqueci minha pressa, minha agonia, minha ansiedade-filesca.
Fui observando os conflitos dela, nos tamanhos que levaria à classificação, antes da  pesagem. 
Ela abriu a carteira e restava 2 reais. Não deu para não ver.
Ela não tinha cartão.
A caixa estava nervosa.
Ela ia fazendo combinações, pesando a mercadoria na balança e retirando as que ultrapassavam seu pouco orçamento. Fiquei pensando: "se minha mulher visse eu fazendo isto...botar os legumes direto na esteira sem estarem em saquinhos plásticos"...
Cortei de minha mulher e falei pra caixa, quase num sussurro:
"Ponha tudo que eu pago".
A caixa estragou a delicadeza do gesto e esbravejou. "Como assim o senhor paga?" Ela estava sem paciência. 
Repeti-lhe com ternura, sem olhar para a jovem, que àquela altura já estava rubra. 
"Senhora, ponha a mercadoria que falta na minha conta, feche a conta da cliente com o que ela tem, o resto eu pago".
Dessa vez a cliente ergueu a vista e dirigiu a palavra para mim. O corpo dela falava como quem me pedisse desculpas. Ela estava confusa, envergonhada. Falei que eu só estava fazendo o que já fizeram por mim, que sou muito grato a Deus por tudo que já recebi. Só devolvo. 
Ela me disse: "Isso está acontecendo mesmo? Diga-me que é brincadeira, não acredito que ainda exista isso, eu já ia deixar o restante..."
Disse-lhe para acalmar o coração e que coisas do tipo acontecem, e que amanhã poderia ser comigo. Ela me disse: "mas tem que doar com amor, um amor como o que senti, obrigado". 
A caixa olhou para mim como se eu fora um ET.  Não se conteve e me disse: 
"Acho que ela empacotou algo do senhor". 
Disse-lhe, "deve ter sido um dos Kinder-Ovo, não tem importância, comprei muitos". 
Ela ficou mais embasbacada ainda. 
Aí lhe falei: "não foi um jogo de pilhas?".
Ela sorrindo nervosa, com um sorriso desumano de quem foi pega numa maldade que desejou ao outro, disse-me: "foi!".
Olhei para ela com compaixão e disse-lhe: "O jogo de pilhas era dela mesmo. Ela não tirou nada de mim de que eu não já tivesse doado ".  
cri cri cri cri cri.

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