Projete sua Sombra Sobre Flores




Leve sua sombra para passear sobre um chão de flores amarelas.

Contemple-as.

Fique um pouco, vendo do sol sobre teu ser, projetarem-se formas no eterno.

E, leve-a para se deitar num colchão macio de pétalas.

Não. Não é hora de adormecer teus sonhos.

Projete tua sombra nos jardins do infinito. Não é hora de adormecer tua vida.

Quantas sombras do divino até hoje habitam em ti?

Teimaram fazer morada no teu interior. Em corporificarem tua existência, dando sentido ao indescritível, ao que não se pega, ao que não se materializa.

Ao que em ti se projeta e de ti se projeta, que se chama de amor.

Um amor que pode ser como uma sombra, uma sombra que se deita numa calçada de flores, que desafiam a dureza da realidade. que subvertem a ordem reinante e teimam em acreditar que dias melhores virão. Isto é o amor.

Quantas sombras de amor habitam teu interior?

Lembro que minha vó Dulce deixava que nos refrescássemos num tanque de lavar roupas que ela tinha no quintal.

Nós pegávamos um buzão vindo da praia, em João Pessoa, até o Bairro do Jaguaribe, uns 20KM. No corpo, resto de sal, moleza, cabelos desgrenhados, cansaço, fome e muita... muita areia.

Ela nos recebia com um feijão cheiroso na cozinha, de babar. E, sem nem botar a mesa, abria a porta da cozinha que dava para o quintal.

Ali habitava o amor. Era um pequeno reservatório de água, de um metro por um metro, e uns 50cm de fundura. Eis que aquilo virava um piscinão, na imaginação e tamanho de nossa tenra idade.

Depois, íamos almoçar, felizes da vida. Nunca mais entrei em piscina tão prazerosa. Nunca.

Aquela sombra de minha vó Dulce, vó materna, acompanha-me até hoje. A sombra do amor.

No quintal de Vó Maria não havia tempo ruim. Quantas vezes fui em busca da sombra do amor que dela irradiava naquele quintal. Quantas!

Início de carreira, salário apertado, dívidas aos montes. Nunca cheguei na sua casa, que era ao lado da minha num conjunto popular de campina grande e sai do mesmo jeito.

Conversar com Vó Maria era conversar com a alegria e tocar na esperança.

Sempre arrumada, batom nos trinques, vaidosa de dá gosto, ela gostava da vida.

E nunca faltava, nos fins de tarde, um cafezinho e umas broas na cozinha.

Eu morava ao lado, era só abrir o portão e ir sorrir ao seu lado. Sorrir das galinhas que tiraram ninhada, dos gatos que comeram os pintos, das coisas simples e bobas da vida.

Conversar com vovó era melhor do que teclar no Facebook. Ela era falante, tinha uma opinião sobre tudo. Uma vez levei uma revista de humor que postou uma montagem do então candidato à presidente, Collor, com a bunda de fora. Acho que era a Casseta e Planeta. Ela desistiu de votar nele. Cacaca




Perdoe-me vovó, a causa era justa.

Na cozinha de sua humilde casinha de conjunto, morava o eterno. Ali, nas sextas á noite levava os filhos pequenos, botava uma dose pra mim, de uma velha cachaça encardida, e enquanto ela brincava com eles eu me inteirava da vida de meus familiares, por parte de pai.

Tio Naldo, que morava no lote de atrás de sua casa, ouvia o barulho, abria o portão dos fundos e juntava-se a nós. E a festa aumentava. Eu dizia: “Titio, trouxe um Whisky Drury's de Remígio-PB”. Ele, com água na boca, pedia para eu ir buscá-lo, pois queria uma dose.

Eu trazia escondido e abria na frente dele: um Drury's. “Isso? Isto não é uísque, e é pior do que cachaça”. Cacaca.

Gargalhávamos. Era o que dava para eu comprar.

Sorríamos os dois, e botávamos umas pedras de gelo para encarar aquele troço ruim.

A sombra amorosa de minha vó, que ficava num canto nos olhando embevecida e orgulhosa de sua família – qual galinha que põe as crias embaixo de suas asas, não me sai da cabeça e me acompanha até hoje.

Quem ama em vida, não morre. Sua sombra é qual a sombra dessa foto, é sombra se eterniza, qual a sombra sobre um tapete de flores.

Fica em nós sua presença, suas atitudes, seus valores, suas melhores peraltices.

Hoje me pergunto: que tipo de sombra quero deixar?

Como quero ser lembrado?

Já vi muitas pessoas escrevendo isso ou aquilo quando cruzam a barreira dos cinquenta, setenta, noventa...

Eu só escrevo uma única coisa. Preste atenção.

Sabe aquela “tanque-piscina” no quintal da casa de vó Dulce?

Sabe aquele cafezinho e o uísque Druyrs de pior qualidade, na casa de vó Maria?

Sabe aqueles momentos em que tua sombra descansa sobre flores, momentos de paz, de eternidade, de alegria, de amorosidade, de comunhão...

Sabe?

Eles passam rápido demais. Tire muitas fotos. Faça vídeos. Não perca a noção do quanto eles são importantes. Não os desqualifique. Não deixe para amanhã, voltar naquele tanquinho para se refrescar.

Mesmo se chegou cansado, após 300 autenticações, visite sua vó que mora ao lado, e vá tomar um cafezinho com ela antes de dormir.

Será que tu me entendes nessa noite?

Procure tapetes de flores e estenda sua sombra. Outros vão se deitar sobre ela e se refrescaram, animando-se a viver mais um dia, a serem mais esperançosos.

E, se sente que alguém pra ti é essa sombra rejuvenescedora, que te faz melhor, diga-lhe nesse dia o quanto essa pessoa é pra ti preciosa.

E, faça isto com gestos.

Feliz primavera.

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