Um lugar chamado Casarão do Jabre

"Por onde devo começar a contar uma história?"  É a primeira frase da música Love Story.

E é assim que me sinto, ao acordar com o coração encharcado de amor, e exalando saudades, após uma breve temporada com meus pais, na Paraíba.
Esta viagem, ficamos pensando nela, após uma outra que fizemos, na ocasião de meus 53 anos em outubro.
Voltávamos do Sertão do Rio Grande do Norte, terra de minha mãe, e ao adentrar na Paraíba avistamos, ao longe, as antenas sobre o Pico do Jabre, vistas das imediações de Patos-PB.
Mamãe queria ir lá.
Contudo, o calor era inclemente, e estávamos exaustos, ao fazer um bate e volta por Caicó e Serra Negra-RN, saindo de Campina Grande-PB.
Então, papai e eu, dissemos em coro que voltaríamos ali, para levá-la para conhecer o Pico do Jabre, e na volta daríamos uma passadinha por Patos-PB.
Sabiamente, ela deu de ombros e acatou nossa decisão.
Dias desses me peguei planejando essa odisseia em direção ao Pico do Jabre.
Acessei sites de viagens, e descobri um hotel que ficava bem próximo dele: "O Casarão do Jabre".
Fiz as reservas e passamos a planejar o melhor roteiro de acesso até ele, saindo de minha cidade natal, o que dista uns 200 KM, sertão adentro.
Saímos de Campina umas 8 da manhã, já com minha tia Lurdinha (84) que se agregou ao grupo.
Ao descer a Serra da Borborema, e ingressar no Sertão, notamos que algo estava diferente de seis meses atrás.
Estava tudo verdinho. Aqui e acolá cruzamos com pequenos açudes de beira-de-estrada todos com água, de chuvas recém-caídas.
Abrimos os vidros do carro para sorver o perfume da Caatinga, quando floresce, após as chuvas.
Em dez anos de seca inclemente, talvez muitas daquelas flores só agora estivessem sendo paridas pela mãe natureza.
Aprumamos o carro em direção à Taperoá, e logo em seguida Matureia, cidadezinha de 6.000 habitantes que fica na base da maior montanha da Paraíba, o "Pico do Jabre".  Jabre significa abismo.
No caminho, paramos para comprar umbu, daqueles docinhos de uma boa safra, e a festa foi completa.
Mas, o encantamento era olhar o verde. Engraçado que quem sempre o vê não percebe mais a sua beleza. Só olhares cinza, marrom e da cor de terra vermelha podem realmente apreciar o verde das matas e o azul das águas.  Vez por outra é preciso desassossegar o olhar, desacostumando-o às rotinas das coisas sempre vistas
Para ele voltar a perceber como elas ainda são belas, e estão ali pertinho, encobertas pela névoa da indiferença, que sobre elas precisa se dissipar, para novamente lhes valorizar.
O verde no Sertão que contemplávamos, em silêncio reverencioso, fazia parte desse momento em que só damos valor a algo quando temos a consciência que nem sempre o teremos por perto novamente.
E nós apreciávamos.
Passavam por nós revoadas de pássaros, voltando de onde um dia migraram. Algumas garças e patos selvagens davam o ar da graça, tornando mais expressiva ainda as composições da água, verde, rochas, cactos, e agora eles, vidas que ali teimavam em voltar.
Já era por volta da 11hrs quando ao longe vislumbramos uma cena idílica. O estonteante Pico, e o Casarão do Jabre, tendo à sua frente um enorme barreiro (açude) de águas virgens, das primeiras chuvaradas em tanto tempo.
Adentramos no estacionamento do Hotel Casarão do Jabre, e uma gostinho de casa de avôs nos encantou. Lá fora, esperando-nos na calçada, estava Dalvanete Dantas, proprietária do hotel, museu, recanto cultural, restaurante e imensa coleção de plantas que cultiva, com suculentas de todos os tipos e belezuras.

Ela foi logo nos abraçando, nordestinos gostam de abraçar, e dizendo:

"Me chamem de Dalvinha".

Entrando no recinto, um som baixinho de violão tocava Cinema Paradiso. Pensei, não é sorte, é graça! Amo essa música.

Mamãe enlouquecia com o mói e ruma (muitas/quantidade) de plantas que via.

E foi logo dizendo, têm mudinhas pra nós.
Dalvinha sorriu e disse: não se preocupem, todas sairão daqui com mudinhas de plantas.
Eis que chega o Eduardo, o excelente Chef do pedaço, trazendo caipirinhas e uns petiscos de bode,  que as citei numa das trocas de email que fiz com o local, mas que jamais pensei que eles se lembrariam. Afinal de contas eu disse tirando onda, numa das trocas de email, quando ela perguntou-me: " O que posso fazer para recebê-los bem, de que necessitam? Falei que era só nos esperar com caipirinha, bode e mudas de plantas para mamãe, e estria tudo certo. rsrs.

E, ela lembrou de tudinho, num email de mais de 15 dias atrás da data de chegada.

Entrei na sala de estar do Casarão, um enorme saguão onde funciona o Restaurante, com um uma palco estilizado nos fundos, usado em shows e manifestações culturais de artistas da região que incentiva suas apresentações, como repentistas, emboladores de coco, sanfoneiros dos bons e tudo que exale poesia popular.

Papai foi visitar as salas de museu das coisas do nordeste e suspirava de emoção. Encontrou-se com vários objetos dos tempos de sua infância, e com gosto ia me explicando o sentido de cada um deles, sempre começando com a charada: "Sabe pra que é isso?". eu não sabia, e ele se regozijava me ensinando qual o valor e uso daquele objeto, em tempos tão difíceis para o sertanejo, no século 20.

Mamãe e tia Lurdinha, que a esse momento já tinha provado de minha caipirinha e gostado, percorriam os enormes jardins, um verdadeiro horto, com todo tupo de planta ornamental que venha a imaginar.

Ouviam-se os suspiros de exclamação delas.

Belisquei-me para acordar, afinal de contas aquilo ali só podia ser um sonho.

Boa musica, um açude na frente, um morro ao lado, um pé de umbu carregado nos fundos, museu, palco, jardim, e a doçura de Dalvinha, a atenção de Eduardo, o jeito de querer nos agradar de Denise e Raimundo, os camareiros do hotel,  não podia ser realidade.

Então, passado as visitas percebemos que estávamos brocados de fome, e almoçamos como reis, já com a presença da Dalvinha em nosso grupo.

Era galinha caipira, arroz de festa, bode guizado, farofa de pra que isso, suco de umbu, caju e laranja, e uns doces amostrados de tudo que é bom.

Adotamos a Dalvinha, ou ela nos adotou, desde aquele almoço.  Foi amor á primeira vista.
Dalvinha é um poço de generosidade, sabedoria, doçura, atenção, gentileza e respeito a todos. Temos muitas outras cenas com ela, por exemplo de quando ela nos chamou para conhecer a fazenda de sua mãe, ou a Pedra do Tendó.
Ou de quando via lugares bonitos que estavam fechados, e dizia: "Vou falar com fulana(o) que ela (e) abre pra nós". Uauu!!!

Além disso, é uma ativista ambiental e divulgadora cultural. Ou seja, tudo de bom!

Agora éramos cinco, em nosso time. Jogando no ataque, com seus 84 anos estava minha tia Lurdinha.
No meio de campo, trocando uns passes, meu pai Evandy e mãe Denise, com seus 80 e 79 anos. Na defesa, Dalvinha com seus 71 anos. e no gol, eu tava ali a postos, com meus 53 anos.

Fomos conhecer o chalé das meninas, e o nosso, que ficava ao lado. Um chalé encantador, com redinha na varanda, e bem amplo, acomodou minha tia e mãe como rainhas, o que elas são.

Guardamos as malas, e meu povo foi descansar um pouco.

Eu fui tomar banho de barreiro. Uma experiência única. Encontrei logo, numa de suas margens, um melhor acesso e por ali adentrei naquelas santas águas. Delícia.
Não era água de poço, mina, fonte ou rio. Eram águas captadas somente da chuva.

Olhei no relógio, eram 15hrs, ainda tinha uma hora de banho, até subirmos ao Pico, uma vez que o sol no nordeste se põe as 17hrs.

Mirei o olhar para a margem, pois algo nela se mexia esvoaçadamente. Eram borboletas pretas, castanhas, brancas e laranjas. um mote delas. Elas fizeram daquela margem um ninhal.
Aproximei-me com calma, e fiquei um tempão contemplando-as, de dentro da água.
Apurei o ouvido em direção a uns grasnados, e vi um casal de pequenos patos silvestres nadando no barreiro. De onde eles vieram?  Não sei. Só sei que eles estavam muito felizes. Pelos grasnados percebi que estavam namorando. E, ali formariam uma família, esperançando a vida até onde a água existisse.

Voltei para o Casarão, caminhando uns cem metros, no máximo, e fui logo chamar o grupo para subirmos o Pico, pela estradinha de paralelipípedos mantida pelas operadoras de TV e celular que possuem antenas no seu alto.
Dalvinha garantiu que o carro subia.
E partimos nos cinco todos animados, tal qual crianças em parque de direção.
Botei uma primeira na base do Pico, na cota 0, e subimos 1.200 metros, numa estrada de perder o fôlego. De medo, e de tanta beleza que vimos.
Daquelas que só passar um carro, e se outro vier descendo, alguém terá que botar ré. O que tornava mais emocionante ainda a subida.

Dalvinha tranquilizava-nos: "Não desce carro nessa época, dia de semana e com pouco movimento".

Mamãe rezava uma Ave Maria sobre a outra. Após uns 800 metros de subida, o motor não aguentou. Parei o carro. Botei no freio de mão .Pedi que os mais novos descessem, para diminuir o peso do carro, e eu tentar vencer uma curva íngreme, esperando-os à frente.
Funcionou.
Após uns 10 minutos, para percorrer uns 20 metros andando e morro acima, Dalvinha, mamãe e papai chegam até nós, vindos com os bofes de fora.  Sorrimos muito, e demos partida no carro. E ele conseguiu vencer os 400 metros que faltavam.

Chegamos ao alto do Pico, do qual se avistam terras de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Mas, se forçar bem a vista, a depender do número de caipirinhas que se tomou no Casarão, dá pra ver  Ceará e a Átrica.

O sol foi dando seu show. As meninas contemplavam o horizonte sentadas. Papai explorava as redondezas. E eu fotografava tudo, enlouquecido com tamanha beleza.
Dalvinha deixou mamãe e tua Lurdinha em lugar seguro, e me levou para conhecer 4 quadrantes de rara beleza que só guias experientes conhecem e sabem como neles chegar. Em cada um deles, não tinha como não se emocionar com tanta beleza.

Para onde eu mirava a vista era algo que surpreendia: flores que só dão naquele alto, bromélias raras, pássaros e seus cantos,  orquídeas, rochas sinuosas e um vento fresco e revitalizador soprava minhas faces, e arejava minha vida com o perfume do sertão. Aquele que deixa tudo com um gosto de quero mais.

Voltamos para o hotel extasiados, e em respeitoso silêncio.  À noite, após um delicioso jantar, daqueles que o Eduardo prepara no fogão à lenha,  proseamos mais um pouquinho e voltamos para os chalés.
O Casarão fecha as portas 21hrs. Dalvinha, e os funcionários vão para suas residências, nas imediações.

Agora, éramos nós os proprietários do pedaço. Tudo escuro, e uma paz tremenda invadia o local, sem sem presença urbana, ou seus sons, que mutias vezes agridem o ambiente.
Dava pra se ouvir o som das rochas, negociando sua presença com os ventos.
Dava para ver o lampejo verde, dos vagalumes, a iluminar noites de breu.
Os sapos, grilos e assemelhados formavam uma orquestra, com sons em profusão vindo do barreiro.
Deitados na rede, em silêncio orante, contemplávamos as estrelas, em noite sem nuvens.
Os mais velhos foram dormir.
Fiquei redeando na varanda, até umas 2 da manhã, quando notei que é nessa hora que a natureza dorme também.
Dorme o grilo, a rã, o pato, o galo e o cachorro que longe falavam.
Dormem as pedras, dormem as plantas. Dorme até o vento.
E, é quando todos os sons se calam que podemos finalmente ouvir o som de nosso coração.
Aquele que diz, como seria bom se pessoas que amamos pudessem viver o que estou vivendo!
Pelas seis da manhã, acordo com cheiro de lenha crepitando. E um novo dia está pronto para acontecer, com todo o seu esplendor novamente.


Para não dizer que não falei em sementes e sal. (Autor Ricardo de Faria Barros)

Nunca esqueço alguns almoços celebrativos de quando eu trabalhava na BBTS (BB Tecnologia e Serviços), nos quais saíamos tal qual uma manada esfomeada, e feliz, por ter acontecido algo legal no mundo do trabalho. E era preciso comemorar coletivamente aquele gol.
Nestas ocasiões, geralmente optávamos por um restaurante que ficava a uma travessia de nosso prédio, na 508 Norte, aqui em Brasília. Aprumávamos o faro em direção ao Xique-Xique, nosso vizinho de avenida, situado do lado de lá. Lá chegando eu pedia o meu prato predileto: carne de sol, com feijão de corda, e farofa d´água. Um prato de comer ajoelhado, de tão bom.

Lembrei que esse prato só foi possível, com o domínio da arte de semear e de salgar a carne, consideradas a maior revolução no modo de vida nômade da Humanidade, no seu processo de produção coletor-caçador, há 10.000 a.C e 2.000 a.C respectivamente.
Então, com o sal e as sementes a revolução se fez. O excesso de proteína animal, numa determinada época do ano, poderia ser guardada para tempos futuros, com o uso da salga. E as frutas, cereais, legumes, tubérculos e vargens podiam ser plantados, em períodos do ano mais favoráveis, criando com sua safra as condições necessárias para que o Homem finalmente se fixasse em algum lugar, e ali se estabelecesse como vivente, e não mais como sobrevivente - que migrava de lugar em lugar para coletar e caçar.
Entre uma garfada e outra, pensei em tudo que nos ocorre, em nossa saga de existir, que pode nos tirar dessa condição de nômades de nós mesmos, de eternos sobreviventes, e nos fixar como viventes. Tudo aquilo que pode nos ajudar a desfazer as malas emocionais e deitar sobre a terra alicerces bem fundamentados de coletividade.

Se para o Homem Neolítico, a revolução foi possível com o domínio das sementes e do sal, para o Homem da pós-modernidade, nesse Séc. XXI que mal estreia, a revolução se dará pelo domínio do cultivar de emoções positivas, e do salgar a vida com o sal dos valores.
Acredito que após nossa saga de mais de 12.000 anos, retornamos ao período pré-neolítico, e por aqui impera novamente o reinado dos nômades, com seus caçadores tecnológicos de modernidades líquidas e com os coletores de pequenas felicidades alheias.
Paradoxalmente, portanto, ainda faço parte do grupo dos que acredita que estamos no limiar de um transição disruptiva no estilo de vida da sociedade. Fruto do cultivar das emoções-pensamentos positivos; e no salgar dos valores universais. Expressos sempre em função da melhoria da vida do outro.

Como toda transição, quem está dentro dela nem sempre a vê, logo ali chegando, trazendo os tempos novos.
O povo do bem está se juntando, e em todo o mundo. É que estamos fartos de tanta violência e egoismo. Estamos cansados de tanta comunicação digital, que não comunica nada, pois só fala, e não escuta ninguém. Estamos cansados de tanta destruição na natureza, e despersonalização humana.
Queremos desfazer nossas malas comportamentais, e habitar num outro mundo possível.
Sim, eu sei, pode não ser coisa para esse século. Mas, virá esse dia!
Tivemos a revolução agrícola, a industrial, a tecnológica e a próxima será a comportamental.
Que não afetará o modo de produção, mas o modo de ser gente.

Nós nos perdemos como coletividade. É fato. Perdemos capital social e de humanização das instituições e trabalho. E andamos sentindo falta de algo, como o valor de trocar uma prosa, com as cadeiras na calçada da rua, ou de um abraço caloroso, para além das datas festivas.
E sentimos falta de algo, que em nossas lembranças mais ancestrais ainda mora, o valor do coletivo partilhado numa roda de fogueira, dentro de uma gruta quentinha e segura.
E é na consciência da falta que o desejo impera.
E, somos todos desejantes de tempos novos.
Eu vejo vir vindo os tempos de uma nova revolução.
Que passa pelo reeducar emocional do otimismo, da compaixão e da esperança participante; e pela práticas de valores da paz, gratidão, generosidade, honestidade e respeito.
Peguemos nossos alforjes e os enchamos com esse tipo de sal e sementes.
E, deixaremos de ser nômades de nós mesmos, sempre em busca de uma condição para ser mais feliz: um Se. Ou de um acontecimento: um Quando. Aprenderemos o valor do agora, com sua ação positiva nossa de cada dia, em ação positiva nossa de cada dia, um outro mundo está sendo erguido, silenciosamente, em gestos concretos que vão ecoar nos recantos do infinito.

O Valor das Coisas Simples do Cotidiano ( Autor Ricardo de Faria Barros)

O dia amanheceu com sabor de cafezinho na cozinha de meus pais. Com gostinho de paz e amor.
Após dois dias arrumando a mudança, com a valiosa ajuda de filhos, noras, genro e a diarista, finalmente por aqui um lar se fez.
Nada mais estava encaixotado, esperando um dia qualquer ser aberto, como minha escultura Brincante, comprada há um ano, e que morava numa caixa. Tadinha.
Acordei cedinho, a tempo de flagrar as folhas se despedindo das gotinhas de orvalho que pela madrugada fizeram-lhes companhia.
Após um saboroso café, daqueles coados na hora, saí para caminhar e explorar as imediações, da quadra 205 Sul, em Brasília, para onde mudei-me recentemente.
No caminho, deixei uma de minhas confortáveis poltronas de escritório para os simpáticos porteiros. Para que precisarei de duas poltronas?
Eles gostaram muito da doação. Falaram-me que a que usavam, naquela guarita da recepção, estava quase na pele e osso, uma verdadeira tábua, e que o presente chegou na hora certa. Um deles falou:  “E tem até recosto reclinável, e é de couro!!” 
Como são genuínas e belas as razões para ser feliz dos mais simples.
Saindo da guarita segui em direção a uma barraca de legumes, que margeava a pracinha da 205.
Ali chegando conheço o seu proprietário, o Sr. Nicácio, há 35 anos naquele ponto vendendo suas frutas e verduras.
Ele me conta que viu crianças brincando de pega-pega, por entre as estantes de frutas, que agora são “homens feitos” e que o visitam com seus filhos.
Sr. Nicácio é daqueles terapeutas de feira. Paraibano, de Pombal, ele acolhe a todos com uma mansidão e um jeito bom de ser que exalam paz no ambiente.
Passei um bom tempo sentando num dos toscos banquinhos que ele deixa para os clientes, com mais tempo, que nem eu.
E pude comprovar que aquele espaço virou local de ajuntamento social. De criação de vínculos. E ele conhece a todos elo nome. Então, ninguém compra um maço de alface e volta. Antes, proseia um pouco com ele, e com outros que ali escolhem as verduras fresquinhas.
Como precisamos, no frio concreto árido da cidade grande, de uma Kombi de frutas e verduras, pilotada pelo Sr. Nicácio, estacionada num cantinho de rua, que vira um espaço de trocas terapêuticas.
Fui vendo uma procissão de moradores se alternando, entre um quiabo, um limão e um queijo, todo fresquinho.
A todas e todos, Sr. Nicácio destinava um dedinho de prosa, com direito a tomar um cafezinho que ele traz de casa, sem custo algum para seus clientes.
Comovido por tanta paz e harmonia, naquele pedacinho do DF, fui buscar em casa um de meus livros e o presentei.
Aí, ele sacou, de uma das gôndolas, um outro livro que já tinha lido, e me retribuiu com ele, dizendo: “pode levar e ler, é muito bom”!
Voltei para casa cheio de amor no coração. Como é bom saber que temos um Sr. Nicácio por perto, a nos abastecer, muito mais de que com seus legumes e hortaliças, mas de seu melhor lugar no mundo – o seu jeito de ser: manso e espiritual. 
Talvez seja esta justamente a mística das feiras livres. Não vamos consumir nelas o que de tudo ali se vende, vamos em busca de relacionamentos significativos com os feirantes.
Coisa que está ficando rara, nesse mundo de vínculos exclusivamente digitais, e que fazem um bem danado. O outro, ali pertinho, de carne e osso, a um simples toque de afeto, importa e pode nos ser muito terapêutico.  Existem anjos disfarçados de feirantes, copeiros, zeladores, diaristas, vigilantes e até “guardadores de carros”. É só ter olhos para ver, e um coração para acolher.
Onde estarão Antônio, Arnaldo, Claudio e Nicácio para os demais moradores do bloco G?
Talvez muito nem saibam quem eles existem, conheçam seus nomes, ou quando por eles passam, reconheçam o trabalho deles.
Visto que atrás de uma farda, podemos nos tornar invisíveis a olhos criados na urbanidade, apressados e individualistas demais, para acolher o outro, o diferente daquele mundo em que habitamos.
E aí, perdemos uma oportunidade ímpar de aprendermos um pouco mais sobre a arte da sobrevivência, numa lida tão difícil como a deles, e sem perderem a esperança e a ternura em acreditar que o amanhã será melhor, e que isso também passa, nestas pessoas tão presentes, quando externam gratidão, e abrem um sorrisão ao ganharem um livro, ou uma cadeira usada de escritório.

Se o pessoal que milita e faz políticas em saúde pública soubesse do valor de um ponto de feira, como o do Sr. Nicácio, dava a ele melhores condições de ali se estabelecer.  Aquilo lá é curativo.

É preciso estar presente, para saborear o presente de viver.(Autor Ricardo de Faria Barros)

Há vinte anos que moro em Brasília e nunca tinha habitado nos imóveis projetados por Lúcio Costa, no que chamamos por aqui de Plano Piloto, com suas duas Asas que mais se parecem com um avião: a Sul e a Norte. Recentemente, mudei-me para a quadra 205, na Asa Sul, e minha primeira sensação -  ao adentrar no corredor daquele prédio de 6 andares, em direção ao meu apartamento, foi de assombro.

Mas, para se assombrar precisamos estar presentes ao momento. 

Passei por muita coisa em minha vida sem prestar atenção direito a elas.  Ansioso demais, correndo demais, preocupado demais, sem estar inteiro e completo ao momento que vivia.

E, nossas lembranças pedem presença. Sem a presença, como sentiremos a ausência delas, tempos depois, no que nós brasileiros chamamos de saudades?

Pois bem, naquela segunda feira, 17hrs, eu estava presente ao caminhar naquele corredor. Éramos só eu e a corretora, caminhando por um vão de uns 30 metros, num silêncio quase de templo sagrado. 

A parede direita do corredor era completamente fechada por uma bloquinhos de concreto vazado, que deixavam passar luz e uma gostosa brisa, compondo com seus enlaces uma estrutura surreal, que transmite uma paz muito intensa. Olhando para baixo, por entre os cubos vazados, vemos tudo lá fora, mas quem tá de fora não consegue distinguir o que se passa lá por dentro, dando um tom intimista e bem aconchegante.

O nome dessa obra de arquitetura é Cobogó, e trata-se de um acrônimo, com as iniciais dos  sobrenomes de três pernambucanos, que trabalhavam com construção civil, o Coimbra, o Boekmann e o is. 

Trata-se de uma invenção genial pra fechamento de paredes, essencialmente brasileira e premiada no munto todo, pela sua funcionalidade de fechar espaços, sem fechá-los, permitindo que o interior, pelos cobogós protegidos, fique numa temperatura amena, com boa luminosidade e seguro.

Sábado levei meu quarto filho, o João Gabriel de 8 anos, para conhecer o cafofo do pai.

Ele entrou no corredor em prestar atenção. Eu pedi que parássemos. E o ensinei que ele estava adentrando numa área premiada da arquitetura nacional, e falei sobre o cobogós. 

Até o passo dele mudou. Agora ele passava a mão na parede, olhava por entre seus furos, se apoderava daquilo que estava vivendo, da experiência de transitar por uma parede fechada de cobogós.

Quantas coisas em nossa vida as vivemos sem maiores deslumbramentos, ou encantamentos, até que alguém nos toca com o amor, com a amizade, e nos ensina o que de fato são, qual sua importância, e é como se abrissem novos olhos sobre a mesma. E, nunca mais seremos os mesmos. 

Eu sabia do cobogó pela Denise, minha cliente de coaching, que numa das sessões me deu uma aula sobre aquela peça estrutural. Mas, nunca tinha vivido a experiência de caminhar por eles. Eu sabia no plano teórico. Agora, eu vivia o saber, tornando para mim um acontecimento.

Tenho por hábito fotografar flores, mas qual a sensação de fotografar um flor que vi num país distante, tão bela, na mão de uma pessoa amada, ao caminhar de volta para meu apartamento?  

É a sensação de se viver uma experiência, que só foi possível por eu ter prestado atenção àquela flor estranha, e incrivelmente bela, tempos atrás. 

A vida pede atenção. Pede que estejamos presentes ao momento, desligando os vários hds cerebrais que ficam processando em paralelo, enquanto estamos vivendo algo. 

Mus filhos diziam uma coisa que agora não mais me orgulho dela. Sempre que levavam amigos lá em casa, e eu ficva pilotando os comes e bebes, algum dos amigos mais educados dizia: "Seu Ricardo, sente um pouco conosco, nós agora assumiremos a churrasqueira e as bebidas". 

Aí meus filhos diziam assim: "Papai não para, não senta, está sempre fazendo algo!"

Eles não diziam em tom de crítica. Mas, hoje vejo que muto de minha amnésia de focar lembranças era por não ter parado para degustar com calma a experiência que vivia. Sempre agitado, fazendo duas, três coisas ao mesmo tempo, sem ansioso de não dar tempo, acabei por perder tempos memoráveis, por não ter me permitido, para os temas secundários que vivia.
É até bíblico. Conta uma cena, nos evangelhos, que Jesus foi visitar duas irmãs: Marta e Maria. 
Uma delas, após Jesus entrar no seu lar, ficou lá dentro se arrumando, limpando a casa, botando lenha no fogão e mexendo as panelas, vindo de vez em quando falar com Jesus. A outra, Maria, parou tudo que estava fazendo, e ficou dando atenção pra Ele. Apreciado aquele momento, que convenhamos, não era todo dia que acontecia de Jesus entrar numa casa, durante suas peregrinações.  
O próprio Jesus, ao dirigir-se à irmã ansiosa, nos dá uma excelente reflexão: "MartaMarta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada..."

Nesse modo ansioso ligado, perdemos a capacidade de contemplar os cobogós, as flores que falam em sinais, o encontro com amigos, ou aquele pôr do sol que passa despercebido, ao retornarmos do trabalho. Sem falar naquele luar do sertão que se abre por inteiro,  numa noite de primavera, e que também não temos "tempo" para encostar no acostamento de nossa vida e contemplá-lo.

Precisamos aprender a estarmos presentes novamente, naquilo que de importante estamos vivendo, desligando momentaneamente outras janelas de processamento neurais.

Se vamos visitar um casal que teve um bebê, e se só tivermos 15 minutos para cumprir aquele compromisso, ainda assim os 15 minutos precisam ser focados naquilo. Não é a quantidade do tempo, mas a intensidade do mergulho nele, o que determinará as fronteiras de nossas lembranças.

Nunca esqueci uma pesquisa com adolescentes cujos pais trabalhavam muito, e que não tinham muito tempo com eles, ao retornarem de suas externuantes jornadas, antes deles irem dormir. 

Os jovens que disseram que seus pais passavam mais tempo com eles não havia nenhuma relação com a contagem do tempo. Assim como os que percebiam os pais mais ausentes também.

Tinha pais que passavam duas horas líquidas no lar, com os filhos, à noite, e os filhos os percebiam como ausentes. 

Tinha pais que passavam apenas 30 minutos, chegando em casa após o terceiro turno, pegando os filhos já tomados banhos e de pijama.  E ao perguntarem sobre a percepção de tempo que os pais passavam com eles, estes jovenzinhos diziam ser suficiente, sem bom, ser muito tempo.

É que naqueles 30 minutos os pais eram 100% presentes aos filhos. Contavam histórias de seus trabalhos, ouviam a dos filhos, penteavam os cabelos deles, e tinham rotinas sacramentais de cuidado para com eles, antes deles irem dormir, como um beijo na testa, ou uma música que cantavam. 

Percebem que o tempo pede a educação de sua presença? O tempo é com um alimento que se evapora em nossas mãos, e que só fica nelas caso o degustemos com sabor. O tempo pede o sabor das coisas, pessoas e realidade.  Pede, para ser bem vivido, foco no que se faz, contemplação, vazios, desligamentos de ansiedades e preocupações que tiram o presente do presente. 

Corta a cena e escuto crianças brincando no corredor dos cobogós. Logo enturmo o João Gabriel com elas e aquilo lá vira uma festa. Eles brincam de polícia e ladrão. JG é a polícia. O Davi, o Artur, O Lucas e A Maria são os ladrões.

Mas, JG não contava com uma estratégia dos "ladroes, para dele fugirem. Eles escalaram os cobogós. Aposto que os criadores dos cobogós também. E a pequena Maria correu do JG também em direção á escalada dos mesmos.

Como percebi esta cena mágica? Estando presente ao meu filho, degustando os abor de vê-lo brincar com os novos amigos. 

Estar presente é o cobogó de nossas emoções. Nos mantém arejados, protegidos do sol e seguros, para nos envolver plenamente com o que vivemos.

Nos mantém confortáveis diante do outro para acolher sua grandeza, sua história de vida, seu momento único que generosamente nos doa. 

Paredes não são cobogós. Elas fecham espaços. Paredes não permitem os fluxos.  Não sem razão a moda agora é abrir os vãos e dividir os espaços com as coisas, resgatando inclusive a cozinha para a área social. Tudo vira social. 

Precisamos quebrar nossas paredes emocionais, substituindo-as por cobogós. Que nos darão um certa privacidade e individualidade, sem nos fechar para o outro, em nosso egoíco mundo.

Precisamos vazar as paredes de nossos comportamentos, para que o outro seja a ele permeável. Isto se faz com mais tolerância, ética da convivência e respeito às diferenças.

Precisamos arejar nossos pensamentos, tirando dele a toxidade do pessimismo e negativismos, preguiçosos em si mesmo, na sua força transformacional. 

Precisamos acumular capital tempo, com investimento no estar presente em tudo que vivemos, sendo inteiros e completos naquilo que o momento a vida pede nossa atenção, ousando parar processamentos em paralelo que só contribuirão para que os bons momentos vivido caia nos porões da indiferença.  

Sejamos cobogós para nós mesmos, para o outro e para a realidade: arejados, permeáveis, sem pegar pressão por tudo de pequenos que a rotina do dia a dia nos apresenta, e abertos a outras prumadas do olhar.  A ansiedade é o vilão do capital tempo de qualidade. Ela é como a maresia no ferro, ninguém a vê, mas seu efeito causa dano tremendo às fundações das estruturas.  A ansiedade é a maresia de uma vida plena de sentido e de qualidade. 
E é preciso muita coragem para parar processamentos em paralelo que consomem energia emocional e que tiram capacidade de apreciar o que ocorre no presente. É preciso muita coragem para erguer os tijolos da felicidade possível, pois necessariamente passarão por uma mudança no estilo de vida. E isso não é fácil.
Mas, espero que este texto possa chegar em alguma pessoa tipo a Marta, dos Evangelhos, ou tipo eu, de tempos atrás, com meu jeitão elétrico de ser,  e alertá-lo(a ) a tempo de curtir coisas legais, estando mais presentes a elas.

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