Está difícil, contudo é o que temos para hoje! (Autor Ricardo de Faria Barros)


Recebo o matinal telefonema de meu pai, que mora em Campina Grande-PB, distante 2.500 de Brasília-DF, onde moramos, os seus filhos.
Entre a costumeira conversa sobre o clima, ele solta uma frase, quase sem querer:
"Tem muitos dias que não saio de casa nem pra pisar na calçada da rua, está difícil isto, e só cresce, parece que não acaba nunca!
Mas, logo ele se apruma na conversa e diz assim: "mas, não estou reclamando não, você me conhece... ".
Acho que papai fala por boa parte da Humanidade. Realmente, está difícil.
Compreender o que está causando este sentimento de angústia é importante para ativar os recursos internos para lidar com eles, no que chamo de ligar o "Modo Sobrevivência".
Esta doença trouxe pelo menos cinco interrupções e dez consequências disto, nos cursos da vida e do viver.
As interrupções que destaco, longe de querer exauri-las, ou esgotá-las, são:

1. No ciclo natural da vida e morte. Inclusive em seus processos de luto;
2. Na intricada, diversificada, energética e complexa rede de relacionamentos humanos (presenciais);
3. Na dinâmica de funcionamento das famílias, escolas e trabalhos;
4. Na vivência de eventos de lazer, sociais, culturais, esportivos e religiosos;
5. E nos projetos concebidos para ocorrer neste período e nos próximos meses.

Sim papai, está difícil mesmo. Este vírus não só invadiu as células biológicas, mas se alastrou em todas as áreas da vida, provocando nelas, como as acima citadas, paradas não previstas, desgastantes e anormais.

Estas cinco paradas, ou interrupções, cobram uma conta emocional, econômica e social muito salgada, que se traduzem em dez impactos. Com certeza, você deve estar passando por algum deles.

1. Impactos na Socialização Urbana - O outro com o qual eu cruzo é uma ameaça viral, até que prove em contrário. Ninguém se sentirá à vontade, interagindo com pessoas que não sabemos se elas poderão nos contaminar. Mesmo nas rebeldes visitas familiares, ainda assim esta sensação de meio que fica sombreando o momento.

2. Impactos nos Planos e Visão de Futuro. Que é a característica do Ser Humano de sempre ter uma data à frente para alcançar algo, ou para agendar coisas a fazer no amanhã. Por exemplo, quem poderá de bom juízo programar um encontro da família, no final do ano, enquanto não sair uma vacina?

3. Impacto nos Projetos Pessoais - Que vão desde a reforma de um imóvel, até a programação das férias, ou uma viagem há muito tempo cobiçada.

4. Impacto na Relação com os Idosos - Qual filho não sente medo em transmitir esta doença para seus pais? Se os idosos já enfrentavam o vírus da solidão, a situação agora - da solidão, agrava-se mais ainda.

5. Impactos nos Ritos de Passagem - O Ser Humano é fecundo em criar seus Ritos de Passagem, e eles viram marcos históricos e celebrativos. É um chá de bebê; um batizado, uma formatura, um casamento, uma data festiva comunitária. A falta destes Ritos provocam uma sensação de vazio. É o que sente aquela jovem mãe que ao voltar da maternidade, não pode receber os amigos e familiares para o "Cachimbo".

6. Impactos no Envelhecimento Ativo - Uma revolução grisalha estava em curso. Os idosos estavam redescobrindo a vida, após os 60. E muitos deles voltando a estudar, trabalhar, viajar, namorar e viver mais uns bons 30, 40 anos de vida. Isto tudo entrou no modo Pause, até que venha uma vacina.

7. Impactos Psicológicos - A humanidade está sofrendo de um estresse traumático, e pós-traumático, com o enfrentamento desta doença. Seja pelo luto dos amigos, seja pelo desemprego e perda de renda, seja pelo medo de adoecer. Não se pode, nem se deve, conviver muto tempo num ambiente incerto, inseguro, imprevisto e sem garantias. Isto causa ansiedade e drena a saúde emocional. Precisamos apoiar nossa existência em bases sólidas. E, esta doença nos colocou numa situação de muita fragilidade.

8. Impactos na Organização da Vida  - Desde que nos entendemos por gente organizamos nossos ciclos da vida em períodos, horários e rotinas. E, isto de uma certa maneira foi meio que bagunçado. E, tem muita gente perdendo a noite pelo dia, e vice-versa. É como se perdêssemos o referencial das horas que nos habituamos a seguir, inclusive com o tempo do transito, e vivemos um "jet-lag" emocional.

9. Impactos na Economia e Trabalho  - Diferente de outras crises que a economia passou, agora vive-se a crise do Não-Mercado. O Mercado está albergado, amedrontado e de mal-humor. E isto causa uma profunda recessão, com reflexos na competitividade das empresas e na manutenção dos níveis de emprego.

10. Impactos nos Relacionamentos -  O logo tempo de isolamento tanto solidificou relações que já eram boas, como agudizou as relações que estavam tensas. A casa não foi planejada para tanta gente morando junta e por tanto tempo. E isto causa polos de tensão quase que permanente.  

Então pessoal, papai fala acertadamente que está difícil! E ele não está deprimido. Nem eu. Nem você.
Só estamos desgastados por tantas interrupções que houve em nossa vida e seus consequentes impactos.

Queria deixar umas dicas com vocês, as mesmas que falo para papai. Mas, não esperem as fórmulas fáceis.
Reconheço que não está sendo fácil, e que está sendo difícil.
E, em minha vida fui impactado por várias das situações acima descritas. Então,sei de onde estou falando.
Creio que a consciência crítica nos ajuda a pelo menos entender o mundo em que vivemos. E, este entendimento ajuda-nos a sair da confusão mental, da alienação, negação ou revolta.

Não adianta dourar a pílula. Tenho visto mofados e cínicos conselhos para quem está sofrendo que beiram uma violência para com estas pessoas.
A consciência do porquê estamos tristes, sofrendo e ansiosos já é um excelente antídoto à apatia.
Sabendo o que ocorre conosco, e o porquê ocorre, podemos ativar o Modo Sobrevivência de que falei no inicio deste texto.
Neste modo, procuramos resistir um dia de cada vez. Neste modo, acreditamos que vai passar, e nos apegamos a esta crença com força.
Neste modo, fazemos pequenas intervenções na rotina de nossos dias, para que de forma paliativa possamos proteger nossa saúde emocional.

Tal qual botamos um band-aid num ferimento. Pode não curar a ferida, mas reduz as chaces de uma infecção. É isto a que me proponho quando oriento pessoas que se sentem em crise neste momento: - encontre os teus band-aids. Que passam por perguntas tais como:

Que personagem interno está sabotando em você a energia emocional: Será o crítico? Será o ingrato? Será o perfeccionista? Será a vítima? Será o rabugento?
O que é importante manter, descartar, adiar, esquecer, ou renunciar, neste momento em que vive?
O que pode fazer para achar um bocadinho de paz e prazer no teu existir?

No Modo Sobrevivência ativamos as gambiarras existenciais para conseguir reduzir os danos e riscos a que estamos expostos. É neste modo que a criatividade é muito fecunda.  Você e eu precisamos encontrar as formas de subverter o tédio e a tristeza pela privação de mutias coisas que tivemos. E isto se faz com autenticidade e uma certa "malandragem" na forma como se leva a ´serio, ou encara a vida.

Por exemplo, eu deixei de caminhar, pelo perigo que estava tendo em cruzar com muitos sem máscaras. Então descobri que o corredor do apartamento toma um belo sol pela manhã, então botei uma cadeira nele, tiro a camisa, e tomo o cafezinho matinal ali. Naquela área comum do prédio. Fico na porta da cozinha, sentado numa cadeira de acampamento, sentindo-me na praia, pouco me lixando pra quem por ventura por ele passe. 
A saudade aperta? Que tal escrever cartas?
A casa está pequena? Que tal navegar em cidades, parques e museus virtuais?
O dia se arrasta?  Que tal aprender algo pela internet?

Cada um sabe dos band-aids que funcionam. Mas, repito, o principal neste momento é se entender dentro de muita coisa que lhe foi tirada, e da falta que estas coisas estão causando em teu viver.

Por último, falo uma coisa pra papai que considero das mais importantes. Marque algo na agenda para fazer num amanhã possível e realista.  Seja uma celebração, daquelas dos Ritos de Passagem anteriormente descrita, uma viagem, ou iniciar um projeto pessoal a muto adiado.
Force teu cérebro a agendar algo para o amanhã, isto ajuda em muito a diminuir a sensação de falta de controle e ação sobre o carrossel do destino. Eu irei no São João de Campina Grande-PB, em junho de 2021. Ah se vou!

Está difícil sim, e não sei quando vai passar. Só sei que vai. Mas, não me pergunte quando.
Também não sei se para todos vai passar. Para muitos, estes dias deixarão sequelas.
E precisamos ter compaixão e empatia para com eles. E, o coração e mente em reverenciosa contrição. Pois que este momento pede também um pouco mais de silêncio, contemplação.
Pede empatia para com outras pessoas que não estão dando conta.
Pede coragem, a coragem dos sobreviventes, aquela que nos diz que é preciso resistir - um dia de cada vez!   E que se não "esperançarmos" a vida, ela irá murchar rapidamente. 

Amorável Manhã (Por Ricardo de Faria Barros)

Sob o sol dos cobogós, trago minha alma para tomar banho, nestas manhãs iluminadas de isolamento. Confesso que este será um dos bons legados, destes dias tão cinzentos, nos quais me vejo perdido em em pensamentos de quando é que isto tudo que aí está vai cessar...
E é um legado que só a parada de tudo, em hibernação social, fez se mostrar.
E, nas manhãs tenho feito esta aprazível rotina.
O tempo está ajudando: céu aberto Anil-Brasília e temperatura pelos 20 graus.
E aí, um bom café, uma música de qualidade, uma cadeira de acampamento, uma revista Vida Simples, e está feito o acampamento no corredor do apartamento, estrategicamente montado à frente da entrada da cozinha.
Ali, tomo meu banho de sol e vejo as brincantes de maritacas que se escondem nos reticulados das parede de concreto, sem se mostrarem para mim, mas flagradas em suas sombras gritantes.
E uma lufada de luz amorável invade meu ser.
O poeta Manoel de Barros definiu este termo dizendo que ele é próprio das andorinhas, dado que o urubus são carniceiros.
Então, estas manhãs tem sido amoráveis. Manhãs andorinhas.
É preciso cultivar um jeito de viver amorável, no qual a cada tempo, gourmetizado vivido, gera nascentes de sentido, travestidas em mil possibilidades de presença.

Folheio matérias ao léu, e paro as vista na esquina de uma folha, na qual vejo a fotografia de um osso. Trata-se de um fêmur pré-histórico.
O que ele teria de tão importante? Matuto minhas caramiolas.
Descobri que aquele osso humano tinha uns 50 mil anos, desde sua última caminhada (*).
E o que chamou minha atenção ao ler a matéria foi a descoberta, da Antropóloga Margaret Mead (+1978), sobre aquele singelo pedaço de osso.
Numa análise mais apurada, os cientistas descobriram que aquele fêmur tinha um talho no seu meio, preenchido com tecido ósseo mais jovem, produzido como fruto da colagem das duas partes que se quebraram.
Nenhuma espécie que tenha ossos, para suportar sua caminhada, como os caprinos, bovinos ou prosaicas galinhas, terão seus ossos restaurados, após quebrados, em iniciativas de assistência à saúde promovidas pela sua própria espécie.
Estes animais estarão condenados a mancarem, a morrerem por inanição, ou até a se infecionarem pelo corte ali produzido.
Mas, ali, 50 mil anos atrás, algo ocorria diferente com a espécie humana. E, aquele fóssil restaurado comprovava isto.
Alguém providenciou um cuidado para aquele ser humano.
Alguém o alimentou, tracionou a perna para juntas as partes seccionadas.
E colocou talas fixando os ossos, as amarrando com tiras de cipó.
Por meses, aquele ser humano foi alimentado, deram-lhe água, protegeram-lhe das ameaças do frio, das feras.
E até retardaram sua marcha, migrante pelas estações do ano, para dele cuidar.

O sol vai se erguendo, agora o sol bate em meu coração e cabeça. Sinto sua presença.
O telefone toca e é papai, para nossas matutinas conversas a 2.500 km de distância um do outro.
Ele pergunta como estou, o que estou fazendo, e digo-lhe que estou sob os sol dos cobogós.
Ele sorri, e me diz que também está bem. E que vai tocando a vida no isolamento, deliciando-se com a vida de alguns youtubers de caminhoneiros que achou.
Depois, quem me aciona é meu filho mais velho. Ele diz que virá buscar o meu carro para botar um equipamento que comprei, e depois devolverá com aquilo lá resolvido.
Ufa!
Desligo e vejo que tem mensagem da namorada, querendo saber do Rodrigo, de quantas andas o mal estar que ele começou a sentir de uns dias pra cá.
Aproveito, e pergunto sobre uma dor que ela andava sentindo nos pés, se o exame de ácido úrico já saíra.
Mando mensagem pra Rodrigo e digo que estou na área, para o que ele venha a necessitar.
Se há uma característica universal da Humanidade é o cuidar. Desde aquele fêmur, até os diálogos cuidadosos deste adolescer da manhã.
Esta é a nossa essência, cuidar uns dos outros.
Podemos até termos nos afastado disso, nestes dias cinzentos que vivemos. Mas, o cuidar faz parte de nossa narrativa social.

Veja por exemplo quantos profissionais de saúde estão de desdobrando, dando em trabalho muito mais do que são contratados, e recebendo muito menos do que merecem, só para não deixarem pessoas sem assistência.

Veja os professores que tiveram que se desdobrarem, país afora, para não deixarem seus alunos sem aulas. Improvisando até varais de atividades, impressas em velhos mimógrafos a álcool, criando uma nova metodologia de ensino a distancia: o varal ensinante.

Veja quantas pessoas estão doando recursos financeiros, em vaquinhas virtuais, ou doando seu próprio tempo, para melhorarem a vida dos mais sofridos, ou levarem um pouco de sol para almas congeladas.

Somos Homo-Cuidadores. Não deixamos ninguém para trás. E, se necessário for, atrasaremos nossa marcha até o fêmur calcificar novamente.

Aqui e acolá aparece alguém que nega esta essência. Sim, eu sei. Pessoas más que asfixiam a outra com a perna, que tratam os tidos por diferentes deles com escarnio, violência e injustiça.
Sim, eu sei...
Eles também existem. Noutras tribos, também há 50 mil anos atrás, algum de seu morador poderá também ter tido um fêmur quebrado. E, nela, a cultura sobrejacente não era a do cuidado, era a de sacrificar o inválido, ou deixá-lo à própria míngua.
Mas, na evolução da Humanidade, são as tribos de cuidadores que predominam. São eles quem socorrem os feridos, apoiam os cansados, estimulam os sem ânimo e fortalecem, com presença, os carentes de esperança.

O cuidar é o primeiro tratado ético-moral e civilizatório de nossa espécie.
É uma habilidade afetiva e sócio-emocional, derivada da empatia. Da consciência que o outro importa e que toda a vida humana é preciosa. E merece ser vivida em plenos direitos e dignidade.

A empatia pode ser ensinada pelo exemplo.
A mãe que cuida das tarefas, alimentação e higiene dos filhos, enquanto também trabalha em casa.
Está ensinando empatia aos pequenos.
O (a) parceiro(a) afetivo(a) que cuida desta mãe, contribuindo com a saúde mental dela, ao assumir parte das tarefas domésticas, também está dando aula prática da disciplina Empatia.
A empatia se aprende e se ensina na escola da vida. E nela, que desde pequenos vamos sendo cuidados e cuidando, uns dos outros, e até de nossos animais de estimação e plantas.
E, isto é contagiante, Famílias andorinhas-cuidadoras, formam desde pequenos os futuros cuidadores. São famílias amoráveis, como diz o poeta.
Lá em casa, por exemplo, nunca um pedinte saia de mãos vazias. Mamãe sempre arrumava algo no fogão, na dispensa, nos armários de roupa, para dividir para com eles.
E, com ela aprendemos.

Mas, pra aprender o verbo do cuidar tem que antes conjugar o do interessar-se.
Sem se interessar o outros nunca se fará presente ao nosso viver, e vamos condená-lo ao pior dos ódios, o da indiferença.
Você tem alguém em teu viver que conjuga bem este verbo? O do interessar-se?
Eu tenho. E, quando ela o conjuga, como num ato contínuo, dele brotam duas manifestações amoráveis: a empatia e o cuidar.
Se interessar, ter empatia e cuidar, parecem ser palavras de uma mesma frase que diz assim: A Humanidade pode dá certo, sim!
Mas, precisamos fazer um enorme esforço coletivo para que a espécie de cuidadores não entre em extinção.
E, isto depende da minha e da tua resposta às várias situações da vida que reivindiquem interesse, empatia e cuidado.
Guardo as tralhas na cozinha, o sol já levantou.
Escuto vozes no corredor. Abro a porta e vejo que por ele vem correndo, uma criança em seu velocípede, e um avô-zorro em seu encalço.
Estão em amorável comunhão do existir. Acho na dispensa um pirulito. Pego com guardanapo e chamo o pequeno para presentear-lhe com aquela guloseima.
Ele pega e sai todo feliz, pedalando e abrindo o doce, com seu avô correndo atrás.
Abro um sorrisão com a cena
Sim a humanidade tem jeito. E aquele avô está ensinando ao neto - ciclista de velocípede, a arte do cuidar.

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