Amorável Manhã (Por Ricardo de Faria Barros)

Sob o sol dos cobogós, trago minha alma para tomar banho, nestas manhãs iluminadas de isolamento. Confesso que este será um dos bons legados, destes dias tão cinzentos, nos quais me vejo perdido em em pensamentos de quando é que isto tudo que aí está vai cessar...
E é um legado que só a parada de tudo, em hibernação social, fez se mostrar.
E, nas manhãs tenho feito esta aprazível rotina.
O tempo está ajudando: céu aberto Anil-Brasília e temperatura pelos 20 graus.
E aí, um bom café, uma música de qualidade, uma cadeira de acampamento, uma revista Vida Simples, e está feito o acampamento no corredor do apartamento, estrategicamente montado à frente da entrada da cozinha.
Ali, tomo meu banho de sol e vejo as brincantes de maritacas que se escondem nos reticulados das parede de concreto, sem se mostrarem para mim, mas flagradas em suas sombras gritantes.
E uma lufada de luz amorável invade meu ser.
O poeta Manoel de Barros definiu este termo dizendo que ele é próprio das andorinhas, dado que o urubus são carniceiros.
Então, estas manhãs tem sido amoráveis. Manhãs andorinhas.
É preciso cultivar um jeito de viver amorável, no qual a cada tempo, gourmetizado vivido, gera nascentes de sentido, travestidas em mil possibilidades de presença.

Folheio matérias ao léu, e paro as vista na esquina de uma folha, na qual vejo a fotografia de um osso. Trata-se de um fêmur pré-histórico.
O que ele teria de tão importante? Matuto minhas caramiolas.
Descobri que aquele osso humano tinha uns 50 mil anos, desde sua última caminhada (*).
E o que chamou minha atenção ao ler a matéria foi a descoberta, da Antropóloga Margaret Mead (+1978), sobre aquele singelo pedaço de osso.
Numa análise mais apurada, os cientistas descobriram que aquele fêmur tinha um talho no seu meio, preenchido com tecido ósseo mais jovem, produzido como fruto da colagem das duas partes que se quebraram.
Nenhuma espécie que tenha ossos, para suportar sua caminhada, como os caprinos, bovinos ou prosaicas galinhas, terão seus ossos restaurados, após quebrados, em iniciativas de assistência à saúde promovidas pela sua própria espécie.
Estes animais estarão condenados a mancarem, a morrerem por inanição, ou até a se infecionarem pelo corte ali produzido.
Mas, ali, 50 mil anos atrás, algo ocorria diferente com a espécie humana. E, aquele fóssil restaurado comprovava isto.
Alguém providenciou um cuidado para aquele ser humano.
Alguém o alimentou, tracionou a perna para juntas as partes seccionadas.
E colocou talas fixando os ossos, as amarrando com tiras de cipó.
Por meses, aquele ser humano foi alimentado, deram-lhe água, protegeram-lhe das ameaças do frio, das feras.
E até retardaram sua marcha, migrante pelas estações do ano, para dele cuidar.

O sol vai se erguendo, agora o sol bate em meu coração e cabeça. Sinto sua presença.
O telefone toca e é papai, para nossas matutinas conversas a 2.500 km de distância um do outro.
Ele pergunta como estou, o que estou fazendo, e digo-lhe que estou sob os sol dos cobogós.
Ele sorri, e me diz que também está bem. E que vai tocando a vida no isolamento, deliciando-se com a vida de alguns youtubers de caminhoneiros que achou.
Depois, quem me aciona é meu filho mais velho. Ele diz que virá buscar o meu carro para botar um equipamento que comprei, e depois devolverá com aquilo lá resolvido.
Ufa!
Desligo e vejo que tem mensagem da namorada, querendo saber do Rodrigo, de quantas andas o mal estar que ele começou a sentir de uns dias pra cá.
Aproveito, e pergunto sobre uma dor que ela andava sentindo nos pés, se o exame de ácido úrico já saíra.
Mando mensagem pra Rodrigo e digo que estou na área, para o que ele venha a necessitar.
Se há uma característica universal da Humanidade é o cuidar. Desde aquele fêmur, até os diálogos cuidadosos deste adolescer da manhã.
Esta é a nossa essência, cuidar uns dos outros.
Podemos até termos nos afastado disso, nestes dias cinzentos que vivemos. Mas, o cuidar faz parte de nossa narrativa social.

Veja por exemplo quantos profissionais de saúde estão de desdobrando, dando em trabalho muito mais do que são contratados, e recebendo muito menos do que merecem, só para não deixarem pessoas sem assistência.

Veja os professores que tiveram que se desdobrarem, país afora, para não deixarem seus alunos sem aulas. Improvisando até varais de atividades, impressas em velhos mimógrafos a álcool, criando uma nova metodologia de ensino a distancia: o varal ensinante.

Veja quantas pessoas estão doando recursos financeiros, em vaquinhas virtuais, ou doando seu próprio tempo, para melhorarem a vida dos mais sofridos, ou levarem um pouco de sol para almas congeladas.

Somos Homo-Cuidadores. Não deixamos ninguém para trás. E, se necessário for, atrasaremos nossa marcha até o fêmur calcificar novamente.

Aqui e acolá aparece alguém que nega esta essência. Sim, eu sei. Pessoas más que asfixiam a outra com a perna, que tratam os tidos por diferentes deles com escarnio, violência e injustiça.
Sim, eu sei...
Eles também existem. Noutras tribos, também há 50 mil anos atrás, algum de seu morador poderá também ter tido um fêmur quebrado. E, nela, a cultura sobrejacente não era a do cuidado, era a de sacrificar o inválido, ou deixá-lo à própria míngua.
Mas, na evolução da Humanidade, são as tribos de cuidadores que predominam. São eles quem socorrem os feridos, apoiam os cansados, estimulam os sem ânimo e fortalecem, com presença, os carentes de esperança.

O cuidar é o primeiro tratado ético-moral e civilizatório de nossa espécie.
É uma habilidade afetiva e sócio-emocional, derivada da empatia. Da consciência que o outro importa e que toda a vida humana é preciosa. E merece ser vivida em plenos direitos e dignidade.

A empatia pode ser ensinada pelo exemplo.
A mãe que cuida das tarefas, alimentação e higiene dos filhos, enquanto também trabalha em casa.
Está ensinando empatia aos pequenos.
O (a) parceiro(a) afetivo(a) que cuida desta mãe, contribuindo com a saúde mental dela, ao assumir parte das tarefas domésticas, também está dando aula prática da disciplina Empatia.
A empatia se aprende e se ensina na escola da vida. E nela, que desde pequenos vamos sendo cuidados e cuidando, uns dos outros, e até de nossos animais de estimação e plantas.
E, isto é contagiante, Famílias andorinhas-cuidadoras, formam desde pequenos os futuros cuidadores. São famílias amoráveis, como diz o poeta.
Lá em casa, por exemplo, nunca um pedinte saia de mãos vazias. Mamãe sempre arrumava algo no fogão, na dispensa, nos armários de roupa, para dividir para com eles.
E, com ela aprendemos.

Mas, pra aprender o verbo do cuidar tem que antes conjugar o do interessar-se.
Sem se interessar o outros nunca se fará presente ao nosso viver, e vamos condená-lo ao pior dos ódios, o da indiferença.
Você tem alguém em teu viver que conjuga bem este verbo? O do interessar-se?
Eu tenho. E, quando ela o conjuga, como num ato contínuo, dele brotam duas manifestações amoráveis: a empatia e o cuidar.
Se interessar, ter empatia e cuidar, parecem ser palavras de uma mesma frase que diz assim: A Humanidade pode dá certo, sim!
Mas, precisamos fazer um enorme esforço coletivo para que a espécie de cuidadores não entre em extinção.
E, isto depende da minha e da tua resposta às várias situações da vida que reivindiquem interesse, empatia e cuidado.
Guardo as tralhas na cozinha, o sol já levantou.
Escuto vozes no corredor. Abro a porta e vejo que por ele vem correndo, uma criança em seu velocípede, e um avô-zorro em seu encalço.
Estão em amorável comunhão do existir. Acho na dispensa um pirulito. Pego com guardanapo e chamo o pequeno para presentear-lhe com aquela guloseima.
Ele pega e sai todo feliz, pedalando e abrindo o doce, com seu avô correndo atrás.
Abro um sorrisão com a cena
Sim a humanidade tem jeito. E aquele avô está ensinando ao neto - ciclista de velocípede, a arte do cuidar.

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