Não é apenas um bolo. É redenção, superação, reinvenção... (Por Ricardo de Faria Barros)




Entrei na cozinha da Girlane e ela estava animada. Dançando ao som dos Aviões do Forró, enquanto mexia algo no fogão.
Cheguei mais de perto e vi que eram bananas, que eram fritas na manteiga, e em seguida polvilhadas com canela.
E aquele cheiro gostoso enebriava o ar daquela cozinha. Que junto à música e à alegria genuína da Girlane, criavam uma atmosfera de acolhimento e paz. Adoro cozinhas. Creio que elas são a morada do afeto, lugar de encontros, diálogos e de muita amorosidade. Quando alguém te chamar para a cozinha da casa, pode ter certeza de que tu és especial para esta pessoa.
Voltando à animação era que era que tinham aparecido mais dois pedidos de bolos de banana, um para as 17h, e outro para as 19h, numa semana em que as vendas estavam fraquíssimas. E que as bananas, previamente compradas da Marcilene, iriam estragar sem serem usadas.
Salivando, lembrei-me do meu primeiro bolo que comi, vindo da Girlane Bolos. Foi um presente que meu filho mandou pra minha mãe, no Dia das Mães. E eu estava em Campina Grande-PB, com minha mãe, e pude saborear aquele manjar, ao lado dela.
Tem preço isso?
Não sou muito de comer doce, mas aquele bolo me conquistou. Na verdade, aquilo lá não é um bolo, é uma torta de banana que junto ao leite moça, farinha de trigo, ovos e outros produtos (que ela não revela nem a pau) a tornam uma iguaria. Daquelas de se comer ajoelhado, agradecendo a Deus.
Na cozinha, a dancinha de forró continuava, e tome bananas na frigideira! Cada torta leva uma “palma” de bananas, algo em torno de 12 bananas. E, após botar montar as bananas na forma, junto com os demais ingredientes, numa montagem que por si só daria uma crônica, ela o coloca no forno, para em 30 minutos ficar pronta.

Voltando para onde eu estava, de seus olhos saem orvalhos marejados. Que ela tenta disfarçar.
Pergunto-lhe o que ocorre, por que ela está emocionada?
Aí ela me conta que eram lágrimas de felicidade, porque aquele bolo-torta de banana era sua redenção. Era sinal de esperança em sua vida e da bondade de Deus.
Como adoro uma história, fui fuçando para saber um pouco mais.
Não sei você, que me lê, mas eu adoro uma memória afetiva de alguma comida. Adoro saber sua história e o que está por trás da vida de quem a produz.
Não sem razão meus olhos brilharam no Globo Rural de hoje, dia 16/10/2022, ao ver a história dos produtores do queijo da Canastra, uma região de Minas Gerais.

Girlane me contou que quando se separou, em 2020, ela perdeu tudo que tinha, pois que foi uma separação litigiosa, e como ela trabalhava para o ex-marido, além de ficar desempregada, ainda ficou com os bens, objeto da partilha, bloqueados para venda, pois que estão, ainda hoje, sub judicie. Aguardando a decisão judicial.
Então, de um dia pra outro, ela se viu sem eira e nem beira, como dizemos por aqui no Centro-Oeste. Ou seja, falida e mal paga! E com uma filha pra alimentar e criar, além dela mesma.
Aí teve a ideia, estimulada pela filha Mariana, de fazer uma receita de bolo-torta de banana que recebeu da professora Fátima, da escola Municipal Luiz J. Avelino, no bairro do Jeremias, em Campina Grande-PB. Girlane já houvera trabalhado lá, como Secretaria. E ela tinha guardada a receita.

Mas, e com que dinheiro compraria o material necessário para começar? As formas de bolo, a frigideira, a batedeira, e os insumos? Pois que o ex-marido rapou tudo que tinha na casa, como forma de puni-la por ter querido a separação?
Aí apareceu a anja da guarda Patrícia, uma de suas melhores amigas, aposentada do Banco Itaú, que sensibilizada pelo desfecho horrível que o divórcio tomara, a emprestou-deu R$ 500,00 reais, para pagamento um dia qualquer, num futuro distante. Sem juros nem pressa.
Fico aqui marejando a alma com este gesto da amiga Patrícia. Que não a deixou só, naquele momento tão difícil, que só quem já se separou sabe de onde falo.
Patrícia teve muita sororidade, que é a empatia entre mulheres.
Então, com aqueles recursos ela foi no Atacadão fazer as compras dos recursos que seriam necessários.
Mariana, sua filhota, que à época tinha 23 anos, foi a maior incentivadora. Não deixou a mãe ficar desanimada, nenhum minuto sequer. Não soltou a mão da mãe.
E, naquele início de 2020 ela começou a produzir e vender os bolos. Um negócio impulsionado no Instagram (@girlaneboloss) pela filhota Mariana, e pela rede de amigos de ambas.
Contou-me que cada bolo vendido era direcionado para custear as despesas de seu lar: água, luz, ração para cachorros, material de limpeza e alimentação. Até que aparecesse uma outra remuneração, aqueles bolos foram os bolos da salvação. Como se diz no Nordeste, aqueles bolos foram “a safra de umbu”. Que quando chega salva o produtor rural que vem de meses numa seca, e agora na beira das estradas vende os umbus e consegue sobreviver mais uns meses.
A procura de um emprego formal seguia desesperada. Era início de 2020, e nada aparecia. E, o pior, chega à pandemia, e adeus aparecerem vagas de empregos formais no Brasil. Então, sua única fonte de renda passou a ser a venda dos bolos, e que sem eles tudo teria sido muito mais difícil.
O despertador apita os 30 minutos. Ela retira do forno o primeiro bolo-torta e começa o trabalho de desenformá-lo. Fico ansioso, temendo que aquilo lá se desmonte. Mas, com um jeitinho que só ela tem, o bolo-torta cai sobre a plataforma da embalagem, sem se despedaçar. E aí é que o cheiro fica bom mesmo. E aquela obra de arte fica convidativa ao prazer do degustar.
Girlane me conta que a maior dificuldade, na pandemia, era encontrar boas bananas, do tipo prata. E que os preços subiram muito. Um dia, ela contou os trocados que restaram, da venda de um bolo, e depois que tirou o que precisava para a gasolina do carro (que usa nas entregas) e comprou o item mais caro da receita, o leite moça, sobraram 5 reais que dariam pra comprar duas palmas de banana. Ou seja, daria pra dois bolos. Ela foi na mesma pessoa que vinha comprando. Ele pediu 6 reais nas duas palmas. Ela só tinha 5 reais. Tentou negociar, pechinchar, deixar aquele um real que faltava no pendura. Mas, aquele feirante não estava num dia bom. E a tratou com rispidez, sem fornecer qualquer desconto e fechando a cara.
Ela chorou por dentro. O filme de sua vida passou, bateu medo, desesperança, agonia. Nem sentia o chão de tamanha humilhação que passou.

Com olhos cheios de sofrimento, vagou atônita por entre feirantes, e passou pra o outro lado da rua, onde também têm barracas.
Macilene, ao olhar para Girlane, leu os sons do silêncio dela. Leu a alma. Viu de onde ela falava, e o que estava passando. Teve empatia e sororidade ao sofrimento dela. Macilene também tem uma filha e isto gerou mais uma ponte de afeto entre elas.
E, não só deu o desconto, nas palmas de banana, como ainda vendeu outros produtos, e no fiado.
Achei belíssima a sororidade de Macilene para com a Girlane. Sororidade é a quando uma irmandade, empatia e parceria entre mulheres acontece. E aí, entre elas, se faz mágica, mística, magia e mistura boa de afetos.

Macilene é agricultora familiar há dez anos. Ela tem uma um sítio em Alagoa Nova, cidade que dista 30 km de Campina Grande-PB, no qual produz, junto com o maridão e família, os melhores hortifrutigranjeiros da feirinha do Zé Pinheiro. E tudo sem agrotóxicos, com geração de emprego e renda locais, e produzidos com o maior esmero. Ela acorda com o maridão todas as madrugadas, para colher os produtos e já comercializá-los pelas 6 da manhã. E sua vida não é nada fácil, nem glamorosa, como as que vi no Globo Rural dessa manhã. Não é nada fácil vida de pequenos agricultores familiares que comercializam produtos sem muito valor agregado, verdadeiras comodities rurais, cujo lucro muitas das vezes é bem pequeno, e que ainda são explorados por atravessadores e grandes de redes varejistas. Diferente dos produtores de queijo da Serra da Canastra. Por isso adoro comprar em feiras livres, e de produtores locais.

Entre uma dancinha e outra, agora não mais chorando, ela me contou que nos momentos mais difíceis a Macilene a emprestava dinheiro, para ela comprar outras coisinhas que não vendiam na sua banca, e que estavam faltando em casa. Além de deixar na “Caderneta de Fiado” os itens de sua própria banca.
E que sempre entendeu quando ela dizia que “tinha deixado a bolsa em casa com o dinheiro”.
Não fazia perguntas, não a humilhava, apenas anotava no caderninho e a abraçava. Como quem diz, um dia tua vida vai melhorar!
Hoje a filha da Girlane, a Mariana, está empregada em Brasília. É advogada e das boas. Girlane também terminou seu curso de Direito, e trabalha como advogada na área na prefeitura de Campina Grande-PB. Patrícia vive de boa, em João Pessoa, curtindo a vida de aposentada e vem sempre em Campina, ficando na casa de Girlane, são amigas fiéis. Macilene tornou-se da família, e ambas ainda são grandes amigas.
E Girlane ainda tem a mesma alegria ao receber um pedido de bolo, que entre um estudo e outro, pra concurso, e uma ida no trabalho, ela consegue produzir.
Quem consome o bolo-torta da Girlane, está consumindo uma memória afetiva, uma bênção, uma história de redenção, de resiliência, superaçãio, de coragem, de garra e sororidade.

Aquele encontro, entre elas, que até hoje persiste, foi Deus quem providenciou. Inclusive a negativa do desconto, do vendedor rabugento, que a humilhou por ela não ter um real para completar a compra. Girlane e Macilene têm a coragem de sobreviventes. Que não têm tempo para ficar chorando o ontem, nem ansiando um amanhã que não chega nunca. O tempo delas se movimenta no presente. Conjugado com os verbos do resistir, insistir e persistir em subverter a ordem reinante, e empunhar a bandeira da esperança e vida! E no aqui e agora.

E, sobre o vendedor que não deu um desconto, nem deixou um fiado, quantas portas fecharam para nós, e que depois vimos que aquilo lá possibilitou que outras, melhores e maiores, fossem-nos abertas? Não é? Se não fosse ele, elas não teriam se conectado.

Obrigado Girlane, Patrícia, Mariana e Macilene, vocês nos ensinam muito, nestes tempos de tão pouca empatia e resiliência que vivemos.

"Esta crônica que você me mandou pelo whatapp só reforça o caminho que estou trilhando. É o caminho certo do bem, e para o bem. A vida vai nos ensinando e o tempo vai trazendo o tom de cada coisa que a gente almeja e luta no dia a dia. E é isso!. A vida ensina e o tempo traz o tom, em tudo que que vem acontecendo em minha trajetória ". 
 

Na foto: Girlane e Patrícia; Girlane e Mariana (sua filhota), Girlane e Macilene. Girlane e este que vos escreve.

Se você estiver em Campina, e quiser encomendar o bolo-torta da redenção, é só clicar aqui:

https://l.instagram.com/?u=https%3A%2F%2Fwa.me%2Fmessage%2FJ2VJ5RNRU2QSD1&e=ATMQhTx4yL6SkNg80M26vd14hFEevZGaCWAszKA-ra8TVYpEFvRYVkE2moaGDuLYj7sCmNaO7xZoZeYRc8wSZomEczdlMryMKrjsDac&s=1)

Graveto a Graveto, à reconstrução! (Por Ricardo de Faria Barros)


Acordei com um barulho na janela do quarto. Esfreguei os olhos, arregalei os ouvidos, e tentei entender o que seria aquele barulho.

Seria um ladrão? Mas, estatelado de medo na cama eu pensei que seria muito difícil ser, pois que moro no sexto andar, e não tem como acessar meu apartamento por aquele local. Só com escadas de bombeiros.

Seria o vizinho de janela, batendo alguma coisa nela? Não seria improvável, mas seria muito fantasioso, dado que o som vinha do meio da minha janela. Se eu tivesse medo de alma, tinha ficado paralisado, mas não tenho.

Então, reuni o pouco de coragem que ainda me restava e fui abrir as cortinas para verificar de onde vinha aquele som. Que ora parecia um aranhão no vidro, ora uma batida.

E vi que era um casal de pombos, que chamarei de João e Maria fazendo um ninho. Cada um deles trabalhava com seu graveto, que iam colocando um sobre o outro, bem arrumadinho, fazendo com eles uma cama. Eles aproveitaram a jardineira de grade que tenho e ali mesmo, e sem cerimônia, começaram a construção. Fiquei um tempo do lado de cá, aproveitando que o vidro é fumê, olhando aquela engenharia de amor entre eles. João corria para pegar um graveto e deixava com Maria, que ia aprumando sobre a estrutura. Aí era a hora dela sair e deixar João, bicando os gravetos, para entortá-los. E Maria batia asas procurando um novo graveto que desse naquele estágio do projeto.

Então, daquela observação, um rasgo de luz invadiu meu ser e meu deu um bom ânimo.  Como é bacana ver algo sendo construído, do nada, só pelo esforço e esperança de poder com aquilo gerar vida.

Então, lembrei-me que no outro quarto também tinha um ninho, na jardineira da janela.  E que eu vinha acompanhando toda a sua evolução.  Quando eu viajei para ministrar um curso a mamãe pomba já estava chocando um ovo. Depois que voltei me esqueci de ir olhar.

Fui lá no quarto e fiquei pasmo com o que vi.

A mamãe-pomba não estava mais chocando o ovo. E, do ovo aparecia restos de um feto. Coloquei na minha mão para enxergar mais de perto, e percebi que o filhote não nascera. Algo ocorreu e o ovo não fora chocado a bom término.

Então, a ficha caiu. Aquele casal de pombos, o João e a Maria, eram os mesmos deste ninho, que não logrou êxito.

E eles não desistiram. Mudaram de quarto, de jardineira de janela, de posição. Escolheram uma outra área, mais sombreada e protegida, pelo ar-condicionado, dando uma distância dele, por conta do calor do compressor.

Fiquei me perguntando por que eles não reaproveitaram o ninho que antes tinha feito, aquele projeto anterior?

Já que todos os gravetos estavam li, e seria bem mais fácil?

Quanto ensinamentos João e Maria nos fornecem?

Quantas das vezes nosso projeto que investimos tanto nele não vinga? Não choca, como aquele ovo.

Seja por circunstâncias que não prevíamos. Seja por falta de recursos. Seja porque não deu pra fazer o que nos propomos, faltaram-nos as forças, faltaram-nos a coragem e a resiliência.

Não sei. Só sei que naquela cena de um ovo que não vingou, num ninho perfeito, muita coisa me tocou.

Nem sempre é culpa nossa quando algo não deu certo. Quando não aconteceu algo que investimos muito.

Como João e Maria investiram tempo e dedicação naquele ninho e na chocagem.

Não foi culpa deles. Algo ocorreu com o processo que deu ruim.

Mas, João e Maria não são de desistirem fácil.

Após se recuperarem da frustração e luto de um projeto que não vingou. Lá estão eles novamente, graveto a graveto, a montarem novamente a estrutura que receberá a vida, após o tempo da postura e chocagem.

Escolheram agora um outro local, zeraram as mágoas, seguiram em frente, e sem olhar para o ninho que ficou, nem o luto do filhote que não nasceu.

Passaram a régua e começaram tudo outra vez, sem ser novamente.

Dedico esta crônica a todos e todas que já ficaram desempregados, que passaram por decepções na política, que não tiveram dinheiro para pagar o custeio básico de suas vidas, que olham para o amanhã e não veem saídas, aos que já perderam entes queridos, que já passaram por desilusões amorosas.  Que sofrem com doenças crônicas. Já passam por relações difíceis no trabalho, Ou os que pensam em desistir de tudo...

Não desanimem, do ovo que gorou em suas vidas. Sempre é tempo de recomeçar, tal qual o João e Maria!

Caso contrário, “eles” e as circunstâncias os terão vencido!

Eu e você temos um João e Maria dentro de nós.

E que possamos também, após um profundo luto, uma grande perda, uma puxada de tapete, um sonho negado, um projeto frustrado, ou um aborto-de-satisfação que nos ocorreu, voltar a regar as sementes de esperança em nosso viver.

Voltar a construir no hoje, graveto a graveto, novas possibilidades de enfretamento da situação.

Graveto a graveto. Sem pensar no ontem, no ovo que não foi chocado. Nem pensar no que pode voltar a ocorrer no amanhã, por conta do trauma do ontem. Tipo, será que valerá a pena fazer outro ninho, e se não der certo novamente?

Quando os ovos de alguns de nossos projetos, desejos, ou sonhos não vingarem, só nos resta se entregar ao presente.

Fazendo o que tem que ser feito no agora. Um dia de cada vez.  Comendo pelas beiradas.

Existindo, insistindo, persistindo e resistindo e sem medo de chorar e recomeçar.  

Graveto a graveto.

Sem temer o amanhã. Nem se aprisionar no ontem.

Apenas subvertendo a ordem reinante, que não se deixa morrer quando se ousa soprar as brasas da esperança.

Obrigado João e Maria por me acordarem!

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Ps. Após a publicação desta crônica, o amigo Hayton, que escreve coisas belíssimas no seu blog o https://www.blogdohayton.com , que recomendo que sigam, presenteou-nos com esta belíssima reflexão abaixo:

É como se Maria e João, no seu infatigável balé de asas movidas pelo espírito de Dom Helder Câmara, nos dissessem em arrulhos: “deixem-nos acender cem vezes, mil vezes, um milhão de vezes a esperança que os ventos perversos e fortes teimam em apagar. Que grande e bela profissão escolhemos: acendedores de esperança!”

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