Graveto a Graveto, à reconstrução! (Por Ricardo de Faria Barros)


Acordei com um barulho na janela do quarto. Esfreguei os olhos, arregalei os ouvidos, e tentei entender o que seria aquele barulho.

Seria um ladrão? Mas, estatelado de medo na cama eu pensei que seria muito difícil ser, pois que moro no sexto andar, e não tem como acessar meu apartamento por aquele local. Só com escadas de bombeiros.

Seria o vizinho de janela, batendo alguma coisa nela? Não seria improvável, mas seria muito fantasioso, dado que o som vinha do meio da minha janela. Se eu tivesse medo de alma, tinha ficado paralisado, mas não tenho.

Então, reuni o pouco de coragem que ainda me restava e fui abrir as cortinas para verificar de onde vinha aquele som. Que ora parecia um aranhão no vidro, ora uma batida.

E vi que era um casal de pombos, que chamarei de João e Maria fazendo um ninho. Cada um deles trabalhava com seu graveto, que iam colocando um sobre o outro, bem arrumadinho, fazendo com eles uma cama. Eles aproveitaram a jardineira de grade que tenho e ali mesmo, e sem cerimônia, começaram a construção. Fiquei um tempo do lado de cá, aproveitando que o vidro é fumê, olhando aquela engenharia de amor entre eles. João corria para pegar um graveto e deixava com Maria, que ia aprumando sobre a estrutura. Aí era a hora dela sair e deixar João, bicando os gravetos, para entortá-los. E Maria batia asas procurando um novo graveto que desse naquele estágio do projeto.

Então, daquela observação, um rasgo de luz invadiu meu ser e meu deu um bom ânimo.  Como é bacana ver algo sendo construído, do nada, só pelo esforço e esperança de poder com aquilo gerar vida.

Então, lembrei-me que no outro quarto também tinha um ninho, na jardineira da janela.  E que eu vinha acompanhando toda a sua evolução.  Quando eu viajei para ministrar um curso a mamãe pomba já estava chocando um ovo. Depois que voltei me esqueci de ir olhar.

Fui lá no quarto e fiquei pasmo com o que vi.

A mamãe-pomba não estava mais chocando o ovo. E, do ovo aparecia restos de um feto. Coloquei na minha mão para enxergar mais de perto, e percebi que o filhote não nascera. Algo ocorreu e o ovo não fora chocado a bom término.

Então, a ficha caiu. Aquele casal de pombos, o João e a Maria, eram os mesmos deste ninho, que não logrou êxito.

E eles não desistiram. Mudaram de quarto, de jardineira de janela, de posição. Escolheram uma outra área, mais sombreada e protegida, pelo ar-condicionado, dando uma distância dele, por conta do calor do compressor.

Fiquei me perguntando por que eles não reaproveitaram o ninho que antes tinha feito, aquele projeto anterior?

Já que todos os gravetos estavam li, e seria bem mais fácil?

Quanto ensinamentos João e Maria nos fornecem?

Quantas das vezes nosso projeto que investimos tanto nele não vinga? Não choca, como aquele ovo.

Seja por circunstâncias que não prevíamos. Seja por falta de recursos. Seja porque não deu pra fazer o que nos propomos, faltaram-nos as forças, faltaram-nos a coragem e a resiliência.

Não sei. Só sei que naquela cena de um ovo que não vingou, num ninho perfeito, muita coisa me tocou.

Nem sempre é culpa nossa quando algo não deu certo. Quando não aconteceu algo que investimos muito.

Como João e Maria investiram tempo e dedicação naquele ninho e na chocagem.

Não foi culpa deles. Algo ocorreu com o processo que deu ruim.

Mas, João e Maria não são de desistirem fácil.

Após se recuperarem da frustração e luto de um projeto que não vingou. Lá estão eles novamente, graveto a graveto, a montarem novamente a estrutura que receberá a vida, após o tempo da postura e chocagem.

Escolheram agora um outro local, zeraram as mágoas, seguiram em frente, e sem olhar para o ninho que ficou, nem o luto do filhote que não nasceu.

Passaram a régua e começaram tudo outra vez, sem ser novamente.

Dedico esta crônica a todos e todas que já ficaram desempregados, que passaram por decepções na política, que não tiveram dinheiro para pagar o custeio básico de suas vidas, que olham para o amanhã e não veem saídas, aos que já perderam entes queridos, que já passaram por desilusões amorosas.  Que sofrem com doenças crônicas. Já passam por relações difíceis no trabalho, Ou os que pensam em desistir de tudo...

Não desanimem, do ovo que gorou em suas vidas. Sempre é tempo de recomeçar, tal qual o João e Maria!

Caso contrário, “eles” e as circunstâncias os terão vencido!

Eu e você temos um João e Maria dentro de nós.

E que possamos também, após um profundo luto, uma grande perda, uma puxada de tapete, um sonho negado, um projeto frustrado, ou um aborto-de-satisfação que nos ocorreu, voltar a regar as sementes de esperança em nosso viver.

Voltar a construir no hoje, graveto a graveto, novas possibilidades de enfretamento da situação.

Graveto a graveto. Sem pensar no ontem, no ovo que não foi chocado. Nem pensar no que pode voltar a ocorrer no amanhã, por conta do trauma do ontem. Tipo, será que valerá a pena fazer outro ninho, e se não der certo novamente?

Quando os ovos de alguns de nossos projetos, desejos, ou sonhos não vingarem, só nos resta se entregar ao presente.

Fazendo o que tem que ser feito no agora. Um dia de cada vez.  Comendo pelas beiradas.

Existindo, insistindo, persistindo e resistindo e sem medo de chorar e recomeçar.  

Graveto a graveto.

Sem temer o amanhã. Nem se aprisionar no ontem.

Apenas subvertendo a ordem reinante, que não se deixa morrer quando se ousa soprar as brasas da esperança.

Obrigado João e Maria por me acordarem!

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Ps. Após a publicação desta crônica, o amigo Hayton, que escreve coisas belíssimas no seu blog o https://www.blogdohayton.com , que recomendo que sigam, presenteou-nos com esta belíssima reflexão abaixo:

É como se Maria e João, no seu infatigável balé de asas movidas pelo espírito de Dom Helder Câmara, nos dissessem em arrulhos: “deixem-nos acender cem vezes, mil vezes, um milhão de vezes a esperança que os ventos perversos e fortes teimam em apagar. Que grande e bela profissão escolhemos: acendedores de esperança!”

3 comentários:

  1. Que delícia de olhar meu caro Riquinho. Comecei bem o dia ao te ler. Gratidão. Joaozinho @joaobmendes_69

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  2. É como se Maria e João, no seu infatigável balé de asas movidas pelo espírito de Dom Helder Câmara, nos dissessem em arrulhos: “deixem-nos acender cem vezes, mil vezes, um milhão de vezes a esperança que os ventos perversos e fortes teimam em apagar. Que grande e bela profissão escolhemos: acendedores de esperança!”

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  3. A vida, no seu balé de emoções, levando nós a todos os tipos de sentimentos. E aí vem João e Maria e nos ensina que é possível dançar, basta mudar a perspectiva.

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