Acordei com um barulho na janela do quarto. Esfreguei os olhos, arregalei os ouvidos, e tentei entender o que seria aquele barulho.
Seria um ladrão? Mas, estatelado
de medo na cama eu pensei que seria muito difícil ser, pois que moro no sexto
andar, e não tem como acessar meu apartamento por aquele local. Só com escadas
de bombeiros.
Seria o vizinho de janela,
batendo alguma coisa nela? Não seria improvável, mas seria muito fantasioso,
dado que o som vinha do meio da minha janela. Se eu tivesse medo de alma, tinha
ficado paralisado, mas não tenho.
Então, reuni o pouco de coragem
que ainda me restava e fui abrir as cortinas para verificar de onde vinha
aquele som. Que ora parecia um aranhão no vidro, ora uma batida.
E vi que era um casal de pombos,
que chamarei de João e Maria fazendo um ninho. Cada um deles trabalhava com seu
graveto, que iam colocando um sobre o outro, bem arrumadinho, fazendo com eles
uma cama. Eles aproveitaram a jardineira de grade que tenho e ali mesmo, e sem
cerimônia, começaram a construção. Fiquei um tempo do lado de cá, aproveitando
que o vidro é fumê, olhando aquela engenharia de amor entre eles. João corria para
pegar um graveto e deixava com Maria, que ia aprumando sobre a estrutura. Aí
era a hora dela sair e deixar João, bicando os gravetos, para entortá-los. E
Maria batia asas procurando um novo graveto que desse naquele estágio do
projeto.
Então, daquela observação, um
rasgo de luz invadiu meu ser e meu deu um bom ânimo. Como é bacana ver algo sendo construído, do
nada, só pelo esforço e esperança de poder com aquilo gerar vida.
Então, lembrei-me que no outro
quarto também tinha um ninho, na jardineira da janela. E que eu vinha acompanhando toda a sua
evolução. Quando eu viajei para
ministrar um curso a mamãe pomba já estava chocando um ovo. Depois que voltei
me esqueci de ir olhar.
Fui lá no quarto e fiquei pasmo
com o que vi.
A mamãe-pomba não estava mais
chocando o ovo. E, do ovo aparecia restos de um feto. Coloquei na minha mão
para enxergar mais de perto, e percebi que o filhote não nascera. Algo ocorreu
e o ovo não fora chocado a bom término.
Então, a ficha caiu. Aquele casal
de pombos, o João e a Maria, eram os mesmos deste ninho, que não logrou êxito.
E eles não desistiram. Mudaram de
quarto, de jardineira de janela, de posição. Escolheram uma outra área, mais
sombreada e protegida, pelo ar-condicionado, dando uma distância dele, por
conta do calor do compressor.
Fiquei me perguntando por que
eles não reaproveitaram o ninho que antes tinha feito, aquele projeto anterior?
Já que todos os gravetos estavam
li, e seria bem mais fácil?
Quanto ensinamentos João e Maria
nos fornecem?
Quantas das vezes nosso projeto
que investimos tanto nele não vinga? Não choca, como aquele ovo.
Seja por circunstâncias que não prevíamos.
Seja por falta de recursos. Seja porque não deu pra fazer o que nos propomos,
faltaram-nos as forças, faltaram-nos a coragem e a resiliência.
Não sei. Só sei que naquela cena
de um ovo que não vingou, num ninho perfeito, muita coisa me tocou.
Nem sempre é culpa nossa quando
algo não deu certo. Quando não aconteceu algo que investimos muito.
Como João e Maria investiram
tempo e dedicação naquele ninho e na chocagem.
Não foi culpa deles. Algo ocorreu
com o processo que deu ruim.
Mas, João e Maria não são de
desistirem fácil.
Após se recuperarem da frustração
e luto de um projeto que não vingou. Lá estão eles novamente, graveto a
graveto, a montarem novamente a estrutura que receberá a vida, após o tempo da
postura e chocagem.
Escolheram agora um outro local, zeraram
as mágoas, seguiram em frente, e sem olhar para o ninho que ficou, nem o luto do
filhote que não nasceu.
Passaram a régua e começaram tudo
outra vez, sem ser novamente.
Dedico esta crônica a todos e
todas que já ficaram desempregados, que passaram por decepções na política, que não tiveram dinheiro para pagar o
custeio básico de suas vidas, que olham para o amanhã e não veem saídas, aos
que já perderam entes queridos, que já passaram por desilusões amorosas. Que sofrem com doenças crônicas. Já passam por
relações difíceis no trabalho, Ou os que pensam em desistir de tudo...
Não desanimem, do ovo que gorou em suas vidas. Sempre é tempo de recomeçar, tal qual o João e Maria!
Caso contrário, “eles” e as
circunstâncias os terão vencido!
Eu e você temos um João e Maria dentro de nós.
E que possamos também, após um
profundo luto, uma grande perda, uma puxada de tapete, um sonho negado, um
projeto frustrado, ou um aborto-de-satisfação que nos ocorreu, voltar a regar
as sementes de esperança em nosso viver.
Voltar a construir no hoje,
graveto a graveto, novas possibilidades de enfretamento da situação.
Graveto a graveto. Sem pensar no
ontem, no ovo que não foi chocado. Nem pensar no que pode voltar a ocorrer no amanhã,
por conta do trauma do ontem. Tipo, será que valerá a pena fazer outro ninho, e
se não der certo novamente?
Quando os ovos de alguns de nossos
projetos, desejos, ou sonhos não vingarem, só nos resta se entregar ao presente.
Fazendo o que tem que ser feito no
agora. Um dia de cada vez. Comendo pelas
beiradas.
Existindo, insistindo,
persistindo e resistindo e sem medo de chorar e recomeçar.
Graveto a graveto.
Sem temer o amanhã. Nem se
aprisionar no ontem.
Apenas subvertendo a ordem
reinante, que não se deixa morrer quando se ousa soprar as brasas da esperança.
Obrigado João e Maria por me acordarem!
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Ps. Após a publicação desta crônica, o amigo Hayton, que escreve coisas belíssimas no seu blog o https://www.blogdohayton.com , que recomendo que sigam, presenteou-nos com esta belíssima reflexão abaixo:
É como se Maria e João, no seu infatigável balé de asas movidas pelo espírito de Dom Helder Câmara, nos dissessem em arrulhos: “deixem-nos acender cem vezes, mil vezes, um milhão de vezes a esperança que os ventos perversos e fortes teimam em apagar. Que grande e bela profissão escolhemos: acendedores de esperança!”
Que delícia de olhar meu caro Riquinho. Comecei bem o dia ao te ler. Gratidão. Joaozinho @joaobmendes_69
ResponderExcluirÉ como se Maria e João, no seu infatigável balé de asas movidas pelo espírito de Dom Helder Câmara, nos dissessem em arrulhos: “deixem-nos acender cem vezes, mil vezes, um milhão de vezes a esperança que os ventos perversos e fortes teimam em apagar. Que grande e bela profissão escolhemos: acendedores de esperança!”
ResponderExcluirA vida, no seu balé de emoções, levando nós a todos os tipos de sentimentos. E aí vem João e Maria e nos ensina que é possível dançar, basta mudar a perspectiva.
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