Cave um pouco mais, em busca de si mesmo.


Sr. Daniel é o Tio Barnabé do sítio de meu amigo Catão. Catão veio visitar sua filha e trouxe o Daniel. Uma figura rara. De prosa alegre, sempre de bem com a vida, sr. Daniel conhecia cada manha das plantas e bichos que cuidava. Falava deles com orgulho.
Aproveitei sua estada e pedi que ele cavasse uma cova para minha Cagaita, uma planta que adquiri por telefone de um viveiro de Goiânia, e que ainda não chegou. Tem que ter fé.
Ele cavou um buraco decente. Disse ele que em terra ruim tem que cavar profundo, ir além das dificuldades e aprofundar o solo.
Retirar de seu interior o cascalho velho, pedregoso, sem nutrientes e substituir o solo por uma terra adubada.

Ele poderia ter parado aos 40 cm. Até ali a terra era macia, sem maiores dificuldades.

Mas, ao aprofundar o buraco, para chegar ao 1 metro de fundura, ele encontrou um leito compactado, rochoso, de difícil penetração.

Não desanimou, lugar que só trator cava, Sr. Daniel encarou e abriu o solo, terra abaixo, centímetro a centímetro.
"Lasquei-me, o lugar era difícil, era solo ruim...”
Mas, Sr. Daniel não é homem de entregar serviço mal feito, pela metade.
Ele sabia que as raízes dali não passariam e que só aquela cobertura de solo não seria suficiente para o crescimento da planta.
Avançou, sol a pino, lentamente. Mas não desistiu.
Se você olhar atentamente a foto verá a diferença de solo, pelas cores. O mais fofo é mais vermelho, o mais compactado é mais pra bege.
Serviço feito, agora é preencher o buraco com a terra boa e jogar o cascalho estéril fora, só serve de aterro.
Quem gostou do buraco foi o João Gabriel que encontrou logo um esconderijo ideal para suas peraltices.
Sr. Daniel, ou Tia Barnabé dos contos do Monteiro Lobato, são pessoas que amam o que fazem e fazem bem. São quase instituições nos locais em que habitam.
Catão, ao contratá-lo em 2010 não sabia que estava ganhando mais que um empregado rural. Estava ganhando um amigo, um sábio tio Barnabé.
Mas, Catão também é especial e acho que pessoa especiais atraem.
A pouco mais de um ano faleceu Eusa, a esposa do Catão. Eusa era a vida em pessoa. Ocupava todos os recantos daquele pequeno sitio. Uma grande amiga, senti muito sua partida.
Sempre disposta, arranjava mil atividades para Catão e Sr. Daniel. Cada cantinho daquele sitio virava uma espécie de Sítio do Picapau amarelo coma presença de Dona Eusa, uma espécie de Dona Benta, para manter a analogia.

Ela era a bondade e o afeto em pessoa. Rimos muitos das nossas doidices.

Catão e Sr. Daniel sentiram muito a morte fulminante de Eusa, acometida por um câncer no pulmão.
A partir daí eles firmaram mais ainda a amizade. Um cura o outro, e ambos se fazem companhia. Coisa de Deus.

Olhando o buraco pensei no processo de autoconhecimento.
Creio que o autoconhecimento é um buraco que nos permitimos abrir em nosso ser, em nossa autoestima, em nosso orgulho, em nosso mundo de valores.
O autoconhecimento permite que nos aprofundemos em nós mesmos: naquilo que nos faz felizes, nos faz mal, nos amedronta, nos entristece, ou nos torna mais corajosos.

Agora tem que ter muito vigor e determinação para encarar a si mesmo. Não pode parar aos 40 cm.

Tem que se permitir ao mergulho, num processo que não acabará nunca mais.
Quando aprendemos a técnica nunca mais a largamos.
Não é uma técnica de difícil prática, exige apenas não parar à primeira resistência interna. Continuar, centímetro a centímetro a se descobrir.
A identificar as nossas forças, aquilo que nos faz diferentes. E a identificar também os cascalhos em nosso viver.
Capacitando-nos a retirá-los, expurga-los de nosso meio, possibilitando que nosso ser volte a se desenvolver.
O autoconhecimento abre espaço para que nosso interior possa suportar e alimentar o crescimento existencial.
Abre espaço para a renovação, para o descarte do que não faz mais sentido, a convivência com o que não se pode mudar, ou a mudança do que se pode operar e sob o qual temos controle.
Cavemos mais um bocadinho em nossos ser interior. Será que o que incomoda no outro não é o que em nós faz falta?
Será que o que nos entristece não é justamente o que guardamos em nosso interior, tal qual um cascalho sem nutrientes que tudo em que nele se planta é condenado à morte.
Vinga alguma coisa de um solo-coração cheio de cascalho-emoções pobres em ternura, afeto, perdão, esperança, aceitação e gratidão?
Crescer como pessoa é um tanto “arriscoso”. Exige esforço. Disciplina, resiliência e sabedoria. Crescer é dolorido. Precisa disposição para o desapego, para o abandono, para a renúncia, para recomeços, para a liberação de choros contidos e lágrimas represadas, implorando há séculos em nosso ser a sua mais bela expressão.
Crescer é complicado. Melhor reproduzir o ambiente.
Tornar-se mais um.
Melhor fingir que não é conosco, aumentar o som do carro, evitar ficar sozinho, ter aversão ao silêncio, medo de espaços de autoconhecimento, fugindo de qualquer possibilidade de escuta de si mesmo.


E, caso alguma terra boa tenha saído da sua cova interior, junto com a ruim, com o cascalho pobre em nutrientes, devolva-lhe com carinho ao seu interior. São suas forças e virtudes. O que te faz melhor a cada dia. Cuidado, para que no autoconhecimento, no cavocar de si mesmo, não jogue coisas boas de você junto com o cascalho. Entendeu? 


Na vida, existem as ferramentas do Sr. Daniel, avançando em nossos ser, solo adentro, na busca de nossa melhor essência. Elas são: a renovação de nossos valores, a disposição de pautar a vida pela ética e dignidade da vida, os valores, os bons amigos, os relacionamentos de confiança entre parceiros, os feedbacks que vamos recebendo nas instituições que frequentamos, verbais ou não-verbais, a fé, a educação, a meditação, e, não menos importante: a revisão de consciência diária.

Uma bela planta vingará de ti, dando fruto, sombra, flores para abelhas e casais apaixonados, madeiras para mourões como a Cagaita que plantarei.
Cagaita que de tão bela e preciosa, árvore rara do Cerrado, ensina-nos que no outono de nossa vida não precisamos perder todas nossas folhas e ficarmos com galhos expostos.
Podemos fazer como elas, que a cada folha velha e sem pique que cai de sua copa - no outono, faz vingar brotos carmins-avermelhados, dando lugar a tenras e esperançosas folhinhas em seu lugar.
Dispostas a enfrentar mais um ciclo de vida: primavera, verão, inverno, outono.
Assim devemos ser. Trocar folhas velhas por novas, e não nos contentarmos com o mundo que nos rodeia, mas fazer nossa parte para sua renovação.
Algumas folhas precisarão cair em nossa vida para que novos rebentos viguem.
Algum cascalho velho, e sem sentido, deverá ser cavado e descartado, sendo substituído por terra boa.
Para que nunca nos cansemos de viver, de renovar nossos propósitos, sonhos, projetos e fé.

Valeu Sr. Daniel, preciso cavar mais um pouco... e sempre!

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