Cartas ao JG – Na vida, aprenda a se curvar, escutar, ver e agir. (Por Ricardo de Faria Barros, pai do JG de 9 anos)

Sabe filho meu, nesta noite de uma quarta-feira de cinzas evoco uma canção para escrever a ti:

“Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais
Brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas
Foi o que restou...”

Escuto esta canção do Vinicius e lembro que nesta tarde, ao dizer-lhe que precisava ir deixá-lo de volta na casa de tua mamãe, já que ficara o feriado de Carnaval todo contigo, tu me abraçaste, todo choroso, e resmungando falou:
- Ah! Não!
Aí, tentei te consolar dizendo que o próximo dia de nos veros está logo ali, na outra semana, e faremos tudo outra vez.
Queria te confessar que estou reaprendendo a ser pai contigo, e após separado de tua mãe.
E tem sido uma experiência incrível e cheia de novas descobertas, de mil possibilidades de afetos, a cada reencontro nosso.
Lógico que as pessoas não precisam se separarem para aprenderem a ser pais, ou mães.
Mas, o desafio de cuidar de você, por 5 dias seguidos, sem uma mãe por perto a me socorrer, fez-me correr atrás e aprender a maternidade da paternidade. Um materno-pai estou me tornando.
Este carnaval, como diz a canção, deixou muitas saudades. Fecho os olhos e escuto tuas risadas, com os yuotubers que assistia.
Tapo os ouvidos e olho tu chutando bola, num campo deserto. De longe tu avistas eu me aproximar de ti. E, todo sorridente, grita:
- Papai, você veio jogar comigo, mesmo com a perna inflamada?
Vim filhote, fico agarrando. Tu chutas bola e eu tento pegar.
E foi uma festa.
Este carnaval teus irmãos estavam fora do DF, ou noutros programas. A casa do tio Guga e tia Patrícia, lugar de encontros aconchegantes, também estava fechada, pois eles foram para João Pessoa.
Então, era eu e tu. Tu e eu.
E como foram dias bons. Cada um deles tinha sua própria rotina. Acordar cedo. Sim, eu e tu acordamos cedo.
Preparar teu café: pão com queijo derretido, iogurtes e uma fruta.
Depois saíamos, cada dia para explorar um lugar e algo diferente.
Pedalamos pelas quadras desertas da Asa Sul.
Fomos ao Carreira, pra tu correr no Kart, depois brincar de autorama e no simulador de F1.
Também pedalamos no Eixão, Parque da Cidade e no Parque da Asa Delta.
Nadamos, fizemos churrasco e jogamos bola, no campinho de grama sintética, na AABB.
Cozinhamos em casa, uma deliciosa bisteca de porco com acompanhamentos.
Vimos filmes juntos. Daqueles com efeitos especiais dignos de um óscar.
E rimos muito, ao sincronizar o celular, que acessava o youtube, com o som do carro, ouvindo e vendo os candidatos do Programa Ídolos desafinarem e levarem bomba. Cada bomba mais engraçada que outra. E tu dobrava de rir.
Era entrar no carro e começar nossa risadagem.
A bicicleta ia sempre no porta-malas, cujos banco de trás eu deitei para que ela coubesse sem aperreio.
Mas, a cada pedalada tu reclamava do barulho que dela vinha. Eu não entendo nada de bicicleta. Um ciclista, vendo que estávamos parados olhando para ela, com um olhar de sei que lá, sei que lá, sei que lá, assumiu o comando dos trabalhos.
E, com expressão profissional, condenou a corrente. Segundo ele, tinha sido soldada e fazia o barulho. Mas que tu podias andar nela. E que nada ocorreria, até ela torar de vez. (Sic!)
No Parque da Cidade tu levou uma queda, ao frear dentro de uma poça de água. E, ao voltar a andar, o barulho cessou completamente. Milagre da queda, pensamos!
Mas, tão logo parávamos em algum lugar, e voltávamos a andar, o barulho voltava. Teco, teco, teco, teco, a cada volta que o pedal dava.
Eu condenei o cubo, dizendo que podia tá danificado. Tu, condenava o “médico da bicicleta” para o qual tua mãe já tinha levado ela, com este barulho, e umas três vezes. “Na última, ele nem cobrou”, dizia tu, em expressão tristonha. Não por não ter cobrado. Mas, por não ter consertado.
Aí, fiz algo diferente. Abaixei-me para ver e ouvir de onde vinha o barulho. Girei a manivela da bicicleta, que tava de pernas para o ar, e fiquei com olhos e ouvidos atentos.
E pensei:
- Achei onde é o problema.
- É a face interna do pedal que está batendo na haste do descanso da bicicleta.
De pronto, tu saltaste de onde estava, e, assumindo o controle da situação, empurrou a haste mais para dentro do pneu.
Montou na bicicleta e pedalou. E abriu um sorrisão tão lindo, como a tanto tempo não via vindo de ti.
- “Papai, achou o problema!”
E achei mesmo. O descanso estava mal afixado, então, dependendo de como ele retornava da posição para tu pedalar, ele tocava no pedal, e fazia o som chato de teco, teco, teco.
Não era a corrente, não era o cubo, não era nada que justificasse 3 idas ao “médico de bicicleta”. Era um prosaico roçar de peças, mal alinhadas, entre si.
Sabe filho meu, na tua vida que apenas começa, haverá muitas situações como esta.
Situações que para enfrentar um problema terás que se ajoelhar, ouvir e ver o que de fato está ocorrendo ao teu viver.
Ao se ajoelhar tu se permites colocar-se numa posição de humildade, frente ao não saber. Além de se conectar com o sagrado.
Ao ouvir, tu emancipas teus pensamentos, permitindo que outros sons, que não sejam os de tua própria mente, bem estressada e confusa, adentrem em teu coração.
Ao ver, tu expandes a consciência para além daquilo que teimava ver, dentro de um modelo mental modelado pela força de hábitos e emoções limitantes: as correntes barulhentas.
Quando o problema estava no descanso e pedal.
Esta situação que ocorreu conosco, neste inesquecível e saudoso carnaval, nos ensinou muito.
Nada mais triste ao desenvolvimento humano do que a arrogância do saber. Uma pessoa arrogante não muda. Não se coloca numa posição de ouvir os outros, sobre seus próprios comportamentos e os impactos dele em si mesmo, na realidade e em quem convive.
A arrogância do saber, e seu irmão gêmeo, o orgulho do proceder, limitam o crescimento do ser humano.
O segundo ensinamento é do ouvir. Ouvir com todo o ser. Para dos sons escutados e interpretados, fazer conexões de sentido. Foi ouvindo de onde vinha o som que se descobriu ser do choque do pedal com o descanso. Saber ouvir é uma atitude que rareia, nesta sociedade tão falante, numa babel de monólogos individualistas em que vivemos.
Ah! Como é bom ter quem nos escute. E, melhor ainda, como é bom dispormos de tempo e coragem, para nos ouvir, a nós próprios.
O terceiro ensinamento, para o crescimento dos ser, é a capacidade de ver para além de onde achamos que está o foco do problema. É aquele olhar inovador, sem se deixar aprisionar pela armadilha das certezas, ou dogmas, e expandir o raio de visão, melhorando a compreensão do todo que nos rodeia, e de uma forma holística.
Num abaixar para ouvir e ver de onde provinha aquele ruído atemorizante, uma lição para nossas vidas!
Aparecerão pessoas em teu viver com este dom também. O de se abaixarem até teu mundo, te ouvirem e te olharem, e verem em ti, o que talvez nem tu enxergues mais, tua essência reluzente e destinada a ser mais. Eu tenho uma delas, "a tia" que te salvou neste dia.
É preciso ajoelhar, ouvir, ver, e por fim, aprumar o que está desalinhado em nosso viver, para voltar a pedalar de forma mais plena e feliz.
Acredite, filho meu, cada vez que isto ocorrerá em teu viver tu sairás para a vida com aquele mesmo sorriso gostoso no rosto, o sorriso dos sobreviventes!
Sobreviventes são todos aqueles que passam pelo teco teco teco, do atrito de coisas que tiram o movimento do viver, e as enfrentam. Tal qual você enfrentou aquela haste, de descanso de bicicleta, pondo-a no lugar onde deveria estar, e de onde nunca deveria ter saído.
Sabe filho, nunca se acostume com o que te faz infeliz, com os teco teco teco, sabe por que? Chamo a canção do Vinícius novamente para te responder:
“ Porque são tantas coisas azuis.
E há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe”.

Sim, quanto ao milagre da bicicleta, aquele da tua queda no Parque da Cidade, ele foi proporcionado pela posição que a bicicleta caiu, empurrando a haste do descanso para dentro do pneu, e acabando com o teco teco teco. Mas, não se iluda, também há outros milagres naquela queda. Mas, para vê-los, precisa ajoelhar, ouvir e olhar para dentro de si mesmo. E perceber que só estarmos vivos, após um baque que levamos da vida, já é em si um milagre. 

Um comentário:

  1. Como sempre, um tanto assim de coisas boas e interessantes para lermos!!! Muito obrigada!!!

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