O segredo está no casco e na corrente. (Autor Ricardo de Faria Barros)

Navio FRAM
Tenho acompanhado em vários espaços de meu viver: salas de aula, grupos de discussão temáticos, comunidades virtuais e até no seio da família, relatos sobre as condições atuais do mundo do trabalho, em muitos casos insalubres, do ponto de vista emocional.
Parece que a tal da modernidade, vida, amor e tempos líquidos, descritos como manifestações perversas da contemporaneidade, pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman, também ocorrem no mundo do trabalho, e isto não me causa estranheza alguma.
Uma vez que o mundo do trabalho não é uma bolha, apartada da sociedade, e de sua cultura dominante.
Então, digo eu, vivemos também sob a égide do Trabalho Líquido.
Com pouco espaço para vinculação social, com relacionamentos voláteis, fragmentados, sem reconhecimento, criação de identidades e de senso de pertencimento. Relações laborais líquidas.
Então, esta falta de sentido no trabalho e de satisfação para com o mesmo, aumenta os riscos de adoecimento sofrimento mental.
Voltar das férias torna-se uma tortura. E o domingo à noite é carregado de melancolia.
Em alguns casos, escutar o simples tom de voz da chefia já faz aumentar o batimento cardíaco e a pressão sanguínea.
Em todo lugar você testemunha relatos de sofrimento psíquico no trabalho que são os efeitos colaterais de uma cultura de produtividade, eficiência, competitividade e ambição a qualquer preço e custo social. Alguns destes relatos beiram ao assédio moral.
Agrava a situação as incertezas do mercado, as equipes cada vez menores, a política de contenção de custos - na busca frenética por uma maior eficiência operacional - e a qualquer preço, precarizando mais ainda o ambiente laboral. Soma-se a este quadro as metas cada vez maiores, as pressões de todos os lados, inclusive dos reguladores, uma chefia despreparada para liderar pessoas, usando o chicote, no lugar da palavra. E, diga-se de passagem, pessoas não gostam de chicotes, "porque gado a gente tange, mas com gente é diferente". (Música disparada)
Nestas horas, nada melhor de que se inspirar em fatos históricos para criar couraças e sobreviver.
Vou contar para você que porventura está passando por uma situação assim no trabalho dois épicos da navegação mundial.
O primeiro deles foi a conquista do Polo Norte (Mar Ártico), por Fridtjof Nansen, usando para a missão o navio Fram, em 1896.
O segundo navegador fenomenal foi o Shackleton, com o navio Endurance, que tentou a conquista da Antártida (Pólo Sul).
Sobre o segundo navegador muito já se falou. Há livros e até um filme. Ele é descrito como um exímio líder e sua trajetória é épica, culminando com sua chegada e de seu grupo, em 1916, após dois anos de luta na Antártida.
Mas, este texto não é sobre navios. É sobre a capacidade de resistir a pressões e de como isto faz a diferença no sucesso de uma travessia, de uma jornada.

O Navio Fram, do comandante Nansen, foi projetado para boiar sobre o gelo. O casco foi meticulosamente arredondado, as quilhas erguidas e o leme adaptado. De modo que quando as massas de gelo o pressionassem, ele seria erguido sobre elas. Ficando ali, ancorado no gelo, esperando que ele derretesse, e voltasse a navegar. Esta técnica possibilitou que por longos cinco anos o Navio Fram resistisse a todo tipo de investida dos blocos de gelo, e pudesse voltar pra casa, trazendo toda a tripulação.

Já o navio Endurane, do comandante Shackleton, tinha o casco reto. Embora fosse um navio bem mais potente do que o Fram, tando em espessura do casco, como motor e quilhas, ele foi projetado para cortar e navegar pelo gelo solto, com casco reto. E não para ser aprisionado pelo gelo, com casco abaulado.
Então, quando uma grande nevasca empurrou o Endurance como um sanduíche, por entre duas placas de gelo, elas o espremeram, qual esprememos um limão pra caipirinha. E, o casco rompeu, e o Endurance naufragou. Obrigando sua tripulação a sobreviver puxando os botes salva-vidas pelo gelo, numa épica história.
Uma outra coisa também foi fundamental para o Nansen conseguir a proeza da conquista do Pólo Norte.
Ele teve uma sacada quando viu restos de um navio, que chegavam às praias da Groelândia. Era um navio norte-americano chamado de Jeanette. Ora, para aqueles restos estarem ali, ele só poderiam ter vindo ao contrário de onde todos estavam navegando. Ele intuiu que todos estavam navegando contra esta corrente submarina. E que o segredo do sucesso seria se deixar levar por esta corrente.
E ele estava certo. Embora escutou poucas e boas de todos, inclusive que era maluco
De fato, as correntes e ventos, achados por ele em determinada posição do Ártico, foram fundamentais para que pelo ritmo da própria natureza o navio, sem gastar um litro seque de combustível, cumprisse seu objetivo, apenas aproveitando as forças das correntes e ventos.
Então, caros amigos e amigas que enfrentam ambientes de muitas pressões, tensões e coisas chatas do mundo do trabalho, há duas posturas que aumentam a resistência, deste tipo de navegação que enfrenta.
Ambas, retiradas da epopeia do Nansen e de sua embarcação Fram.
A primeira delas, a de trabalhar o casco. A arredondando-o para que ele possa aproveitar as forças do meio, erguendo-se sobre elas, no lugar de ser esmagado, como o Endurance.
Arredondar o casco é cultivar a flexibilidade de pensar, sentir e agir, é buscar convergências, é se adaptar mais rápido e de forma melhor, ás mudanças de situações, contextos e cenários. É cuidar do tecido emocional. Buscar apoio na espiritualidade. Nos esportes, amigos, em algum hobbie, fazer yoga, tai chi, meditação, caminhadas contemplativas, o que seja que possa fortalecer o couro emocional, o casco, arredondando-o.
Cascos retos batem de frente. Cascos redondos desviam a violência do ataque, e com a força do próprio opositor se defendem, como nas milenares artes marciais orientais.

A segunda delas, e aproveitar a corrente. Nunca ficar de frente a ela. Aproveitar a corrente significa extrair o que ainda de bom tem na relação com o trabalho, e potencializar o olhar sobre isto.
Aproveitar a corrente é não dar murro em ponta de faca, é não passar recibo, é fazer uma terapia paliativa de convivência com pessoas más, colocando sempre, após o contato com elas, esparadrapos emocionais para não infecionar o ferimento na alma - tão próprio da lida diárias com pessoas pequenas, inclusive chefes tiranos. É saber usar a força da onda para nela surfar.
Aproveitar a corrente é redirecionar a raiva para algo produtivo. Para melhorar a relação com o cliente, e obter dele o sentido do trabalho que anda carente.
Aproveitar a corrente é encontrar o que ainda te seduz, te faz feliz e te inspira, no mundo do trabalho, e dizer pra si mesmo que quanto ao demais: isso também passará e amanhã será melhor.
Enquanto os mares andam bravos e ruins de navegar, que tal cuidarmos de arredondar o casco, e de melhor aproveitar as forças das correntes?

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