Um tempo de delicadezas...


A manhã da sexta (19/07/2013) começou com uma notícia triste. A morte de um colega de Banco em Niterói-RJ, ontem. Ele cortava o cabelo num salão e o estabelecimento foi assaltado, quando saia do salão o marginal o atingiu com uma arma de fogo. Todos no nosso setor estavam chocados. O colega do BB que faleceu, tem um irmão também do BB e que trabalha em nossa diretoria. O que aumentava ainda mais o pesar. O silêncio de um luto mórbido, de uma morte besta, que chega sem pedir licença, reina.
Eis que um som de criança invade o setor. É sexta feira e uma colega resolve trazer sua filhota para conhecer o local de trabalho da mãe. Ela se chama Alice, tem três anos. Quando soube da idade fiquei surpreso. É uma menina desenvolta, comunicativa e mais parece que tem uns cinco anos, apensar de ser miudinha.
Por um momento a alegria de Alice, sua força vital, sua presença angelical, nos abençoa e sara atenua nossa dor.
Acho que as crianças têm esse dom de nos fazerem melhores e de acreditarmos em dias melhores. De tão serelepe, a Alice mais parecia a Emília, do Monteiro Lobato. Logo os colegas aproximam-se dela tome mimos.
Parece que todos estamos precisando da Alice. Aproximo-me também. Pergunto-lhe o que ela gosta de comer e ela responde com um sorriso doce: arroz, feijão, batata frita, cebola. E digo, Cebola?
Eca Alice!
Eu não gosto, e dentro dela mora um mostro. rsrsrs
Ela me olha assustada e feliz. Sacou que era uma brincadeira.
Como por mágica e bênção o ambiente fica mais leve. Além do luto, estamos muito cansados. Findamos a primeira semana de um enorme processo seletivo, coordenado por nossa Área.
E as tensões, são quase que intrínsecas em processo da espécie.
Alice, “anja” Alice, reina entre nós. Com sua vivacidade, com sua eloquência tagarelante, vai dialogando com cada um da gente.
Noemi, a sua mãe, olha para ela toda explicada e falante, no meio de marmanjos e marmanjas, e fica cheia de si - vaidosa e amorosa, como todas as mães.
Após um tempo vamos nos dispersando.
Noemi senta Alice numa das estações de trabalho que estava vazia. Fornece-lhe lápis, papel, e ali ela finge trabalhar. Passo perto e pergunto-lhe se já ligou para o Papai-Noel. Ela me olha com olhinhos faiscando de curiosidade. Apresento-lhe o telefone e digo-lhe para tentar.
Uma amiga saca a fuleiragem e chega perto pra contracenar. Eu vou saindo, e, por sinais, digo-lhe para ligar da “mesa da Alice” para o meu ramal, botando-lhe para falar com Papai Noel.
Na minha “baia”, escondo-me debaixo da mesa. Puxo o telefone e aguardo o toque.
Passado uns segundos o telefone toca. Atendo. Na outra linha era a Alice. Falo que sou o Papai Noel, ligando da Groelândia-Baia-mais próxima. OH OH OH...
Ela toda feliz.
Pergunto-lhe o que quer ganhar de Natal. Ela diz que um anel.
Pergunto-lhe se de ouro ou lata. Ela diz lata.
Pergunto-lhe mais uma vez, atônito que fiquei, e ela confirma: de lata.
Sua voz é decidida.
Ficou um tanto frustrado, gastei minha porção mágica de papai-noel para levar da distante baia-Groelândia, para a Alice, um anel de lata.
Todos caem na risada. Continuo fingindo e pergunto o que ela quer para a sua mamãe ela diz: um vestido.
Despedimo-nos, não sem antes desejarmos votos de feliz Natal.
Passo perto dela e pergunto-lhe se falou com o Papai Noel. Ela diz que sim, que vai ganhar um anel de lata e que o Papai Noel estava sério.
Pronto. Até minha performance caiu na esperteza da Alice.
Não sabe ela que fora sua lata que me desconcertara e por isso perdi a graça da brincadeira.
Fiquei serio e emocionado com tamanha singeleza.
Despedi-me do pessoal e da Alice, iria usar à tarde para fazer uns exames que o periódico de saúde recomendou. Nada sério. rsrs
Dirijo para um dos hospitais pensando em como são belos os sonhos de Alice, que agora deixou de ser Alice, tornando-se Alice das Maravilhas.
De tão mobilizado que fiquei acho até que passei por um pardal (radar) com velocidade acima da permitida. Paciência.
Da maravilha que é se sentir bem usando um simples anel de lata. Místico e mágico anel.
Da maravilha de ser quem é, da maravilha de SER, só SER, em relação aos outros pobres e insustentáveis, do ponto de vista de felicidade existencial, outros “ER” - Poder e Ter.
Alice é.
Amanhã vou procurar um anel de lata para a Alice.
Saindo do trabalho deparo-me com as painas das paineiras brancas forrando o solo qual um lençol alvinho, alvinho.
Na outra esquina deparo-me com uma árvore alta, cheia de galhos secos, nenhuma folha sequer. Toda seca. De sua “copa” emergem flores vermelho-carmim, de seus galhos idem. , Trata-se de um bougainville que nasceu ao seu lado e subiu por ela, enroscando-se numa simbiose fraterna. De longe, ver aquela árvore ressecada e florida fornecia uma cena de indescritível beleza. Da morte nascia a vida. Uma vida que encontrou, mesmo que numa árvore seca, um suporte para sua existência e brilho.
Vou voltando então para casa.
É perto das quatro da tarde. Agora estou bem perto de casa, já sigo pela Avenida do Sol do Jardim Botânico, em Brasília.
Não sinto fome e não almocei. Estou saciado, num frenesi para sentar-me e escrever o que vivi. Confesso que vivi.
O coração cheio, transbordando de emoções de um dia intenso.
Eis que à minha frente segue uma carroço de burros. Reduzo a velocidade para ultrapassá-la com segurança e noto que seu proprietário fizera tal quais as carroças do velho oeste dos EUA, fazendo uma espécie de barraca improvisada, com uma colcha laranja.
Agora é que fico curioso mesmo.
Quem será que a dirige?
O que ele leva ali de tão precioso que fez aquela “casinha rústica." Fiquei me punindo por está sem a máquina. Daria uma foto linda. Aproximo-me, vagarosamente, e o corto. Vou olhando, olhando. E me comovo, mais uma vez.
Trata-se de um senhor idoso, cabelos brancos, tocando seu burro com altivez de um puro sangue. Sentado ao seu lado, no banquinho da carroça, duas crianças.
Que cena linda!!! Quanto cuidado e carinho para com seus filhos ou netos. O sol estava implacante e ele teve a ideia de fazer uma armação rustica e sobre ela colocar a colcha. Se aquele senhor tiver um nome, na eternidade, será Protetor.
Quantas emoções invadiram meu viver e que necessito publicá-las ao compartilhar com vocês:
Uma criança e seu anel de lata; Um tapete branco sobre o solo, fofinho, fofinho, cheio de plumas das painas; Uma árvore que mesmo morta, ressurge com a força das flores de quem a toca, tomando-lhe por empréstimo seu brilho, sem anulá-lo. Um carroceiro e suas crianças, protegidas do sol por uma velha colcha laranja.
Que dia de vivências felizes: o anel de lata da Alice; o solo forrado de plumas brancas; o vermelho-carmim de bougainvilles, em cio, apoiadas em galhos secos; a colcha laranja que protege do sol e poeira do Cerado. .
Em cada cena uma pitada de infinito.
O infinito da humildade e sabedoria, de um simples anel de lata.
O infinito da paz e harmonia, de um campo vestido de plumas brancas.
O infinito da compaixão e solidariedade, das flores que só se embelezam quando servem aos galhos secos que a acolhem.
O infinito do cuidado e amor, de uma colcha laranja que protege do sol e poeira.
Em nós habita a eternidade, com esses valores. É só deixarmos que eles aflorem.
É só deixarmos falar e agir em nós a Alice que se encontra adormecida e que um dia fomos.
Aquela Alice que ficava tão feliz brincado com coisa pouca.
Aquela Alice plena de autoestima e sentido da vida.
Aquela Alice que em meio ao caos de um dia desgastante, no desgastante processo de amadurecer, encontrava razões para brincar e fantasiar que cuidava de um monte de bonecas, algumas sem braços, desformes, mas que na sua fantasia eram plenas.
Todos temos essa Alice em nós adormecida.
Todos podemos converter nossos anéis de lata de cada dia, no mais belo e significativo anel que alguém já usou.
É só vê-lo com os olhos do amor.
Onde mora seu tesouro? Onde mora seus valores?
Nem ouro, nem prata poderão nos fazer felizes se não temos a nós mesmos, e aos outros, em consideração e estima.
E, quando assim nos e os tivermos, um simples latão será suficiente para alegrar-nos e dá sentido ao nosso viver. Quanto ao luto, percebi que o amor o invade e o processa, no seu tempo, no seu ritmo. Basta acreditar na força de uma anel de lata, de um chão de plumas, de uma flor em galho seco, de uma colcha laranja. Viver é terapêutico e a vida cura. Mas, não apresse o rio da dor e do luto. Ele precisa de choro e de sofrer para seguir seu caminho.
Fiquei surpreso ao constatar uma coisa tão óbvia. Onde você guarda seu tesouro, e o que lhe atribui de valor, será ali que habitará e crescerá o amor em seu coração. Pense nisso!
Não me contive e voltei para fotografar a Paineira Rosa, e seus frutos que se abrem em paina de plumas brancas; além da trepadeira vermelho-carmim que fez amizade com os galhos secos.
Alice, eu e vocês merecemos essas fotos que ilustrarão essa crônica pela vida afora. 
Antes que me esqueça deixo-vos conselhos simples:  Vivam intensamente e perdoem-se sempre. Não guardem mágoas, ódios encardidos. guardem só por uns tempos. Até passar a raiva. Se demorar muito, você estará passando recibo contra si mesmo. 
Nunca saberemos o quanto de vida nos restará. 
Portanto, esteja sempre com a contabilidade dela em dia. Que no teu balanço sobre amor no ativo e falte indiferença no passivo. Amém!

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