Empatia

Como seria bom se tivéssemos a função CHKDSK (Check Disk), nas nossas vidas.
Esta função, presente no Sistema Operacional Windows checa a integridade do sistema de arquivos de um disco rígido, corrigindo os arquivos/áreas defeituosas. Tal qual a foto tirada de meu notebook, ao ter a função chkdsk ativada.
Arquivos não indexados, corrompidos e com entradas órfãs vão sendo corrigidos, com o CHKDSK.
Como em nossa vã pretensão de ter controle sobre as coisas sonhamos com a possibilidade de reconectar-nos ao nosso diretório central. De aproximar sentimentos órfãos, pessoas órfãs - de nossa caminhada afetiva, situações órfãs, e por órfãs, tão distantes que nem lembranças mais são.
Como em nossa vã pretensão acabamos por achar que será fácil reviver sentimentos, saberes e momentos, num todo que nos façam sentido, tal qual o “diretório central” do Windows.
Nem sempre podemos. Nem sempre, por melhor que seja nosso Sistema Operacional e o seu CHKDSK interior daremos conta de “corrigirmos entradas órfãs, arquivos corrompidos ou não indexados”.
Quando a ação para correção depender de nossas posturas, atitudes e comportamentos, bacana, a isso chamo de crescimento existencial.
Mas, quando a situação que causa um desconforto no nosso SOI (Sistema Operacional Interior) depender de mudanças no outro, de situações sobre as quais não temos controle, ingerência e responsabilidade, aí já viu né!
Afinal, viver é se perder e perder.
Um perder de coisas que nos atrapalham de crescer, de vistas de um ponto, de referências, e até de nós mesmos. Faz parte do pacote. Vamos perdendo para achar. Para filtrar a essência, descartar o supérfluo e acumular realmente o faz sentido guardar e ficar.
E assim, vamos largando uma coisa aqui, outra acolá.  Hoje um amigo muito me tocou. Ele está precisando demais passar o CHKDSK no seu ser.
Precisa voltar a “indexar” seus arquivos interiores, que estão órfãos de sentido.
O que o fez sentir-se órfão de si mesmo? As mudanças pelas quais passaram sua família nos últimos dois anos.
Vejam como ele as descrevem:
“Eu cresci com aquele sentimento de família unida, de muito amor, de união, que não tinha problemas. [...] cresci com a ideia de família perfeita, de muita união, de sinceridade. Via as outras famílias em crise, em discussões e sentia um orgulho muito grande, pois pensava que aquilo ali não acontecia na minha família. Minha mãe faleceu há pouco mais de dois anos e de lá pra cá as coisas deram uma desandada. Estou com um irmão que está com problemas com alcoolismo. [...] Estou com uma sobrinha adolescente com problema de drogas. E fui descobrindo, tomando ciência dos fatos, acordando para a vida.  Claro que nunca fui cego, mas talvez por não ter sido "treinado" para enfrentar essas dificuldades, por ter crescido com a ideia da perfeição. Acredito que eu somatizo muito. Eu choro a dor dos outros, em me preocupo, eu deixo de dormir bem, meu humor mexe... Enfim, fico uma bosta. Não é um problema meu, não vou conseguir impedir muita coisa, mas isso me cria uma angústia, um sentimento de impotência, de raiva e tristeza.”
Li e reli seu relato umas dez vezes. Em cada linha um brado, um grito, uma sensação de estranhamento com tudo que lhe ocorre.
Ele pede socorro. Sente-se inválido emocionalmente para lidar coma situação.
Na sua vontade de sentido criou um mundo seguro, em paz, no qual habitam todos os que ama.
Criou um ethos de amor, uma “casinha na roça” para cultivar relacionamentos.
Eis que as coisas começam a sair do controle. Um irmão que dá trabalho, que dói vê-lo estragando sua vida com o álcool. Uma sobrinha, de outro irmão, que sucumbe às drogas, numa trajetória muitas vezes sem retorno.
Aí ele sofre. Aciona o modo compaixão e absorve as dores de todos. Afinal, eles são seu “diretório central”. E, cresceu “com a ideia de família perfeita, de muita união, de sinceridade.”
Entranho tudo isso lhe martiriza e agride.
Em luto, procura insistentemente reconectar seus arquivos familiares – órfãos pelas escolhas que fazem em seu viver.
Em luto sofre.
Ao sofrer, alargar a dor numa avenida, irradiando na sua própria família o pesar com o qual convive.
Como é comum essa cena.
Como queremos que as coisas sejam do jeito que foram um dia. Queremos resgatar situações bacanas, sem ter que nos despedir delas.
Viver sua morte. Seu ponto de mutação.
Assim, vamos acumulando – tal esponjas, as dores da humanidade.
Um pedido de socorro. Ele precisa reconectar-se para encontrar a paz. E, é justamente nessa necessidade de reconexão, que ele se perde novamente e sofre.
Ele quer juntar ao diretório central de sua família valores de tempos idos. Como se pudéssemos voltar ao passado, trazer dele as coisas que nos fizeram bem e consertar o futuro.
Como queremos que as coisas sejam do jeito que foram um dia. Queremos resgatar situações bacanas, sem ter que nos despedir delas.
Viver sua morte. Seu ponto de mutação.
Assim, vamos acumulando – tal esponjas, as dores da humanidade.Como se pudéssemos ativar a função CHKDSK no outro.
Não, não podemos. A decisão de mudar é dele.
A escolha, idem. Os ônus, bônus, e renúncias idem.
Todo mundo que tem uma pessoa que precisa de atenção e cuidado na família sofre esse dilema. O dilema do cuidador – mais cedo ou mais tarde será ele quem precisará de cuidados.
De tanto envolver-se na dor do outro, numa empatia simbiótica, esse ser quebrasse em mil pedaços, como que para conter, lidar, estancar a dor que sente pelo outro.
Desindexa de seu próprio diretório central, dando vida a outros núcleos de diretórios centrais que agora farão parte de sua tentativa de perceber-se como um ser de sentido – mesmo que um sentido projetado no outro que é percebido como alguém que sofre.
Tem casamento vivendo esse dilema. Pais que cuidam de filhos “especiais”. Filhos que cuidam de pais “especiais”.
Especiais seres que cuidam de “especiais” amigos ou familiares.
Veja relato abaixo:

"Desde a infância, passando tbm pela adolescência, tive facilidade no Estudo no campo das Exatas. Matemática, Física, etc. eram matérias que me dei sempre bem. Eram meu chão. Sabia resolver fórmulas nas quais muitos de meus colegas tinham dificuldades. Criei na minha cabeça ingênua que tudo na vida era fácil. Bastava encontrar a fórmula (de Báskara por exemplo) e tinha-se sempre uma solução (até como resultado de números irreais/imaginários). Mas fui crescendo e vendo que a realidade é outra, muito mais abstrata. Como seria excelente se tivéssemos Fórmulas para se resolver Problemas! Era só dar o comando e Vapt-Vupt! CHKDSK no Winchester e pronto!!!! Mas não!!! Não dá pra ser assim!!! Fiquei sem chão! Fiquei Deprê! Que ignorante fui! Não dava a importância devida às áreas de Biológicas e Humanas! Mas nunca é tarde pra acordar!!! Tombos, cabeçadas, tropeços, erros, são necessários para dar valor às coisas!!! Não é fácil encontrar o seu ponto de equilíbrio. Mas, conseguimos!!! Temos que ter fé!!! Primeiro em si, não é fácil, não. Depois contar com seus parceiros. Mas a vida é assim. Cheia de obstáculos. Fórmulas a gente precisa encontrar continuamente não só no campo das Exatas. "

É... nunca é tarde para entender o quanto é empatia, sentir a dor do outro,  e o quanto vai virando uma espécie de fuga de nossa própria vida, de indigestão emocional por excessiva compaixão ao sofrer do outro. Vamos deixando de viver nossa própria vida e encontrar sentido nela. Absorvermos em excesso o pesar do próximo sem cuidar de nossa própria saúde mental.
E aí vamos juntos. Embarcamos juntos e la se vai nossa família, vida profissional, amigos.
Esse comportamento é muito comum em cuidadores de doentes crônicos que vão se esquecendo de seu próprio viver. Não se cuidam mais e sua autoestima fica refém da autoestima daquele a quem destinamos nosso tempo e amor para cuidar.

Não temos como ativar a função CHKDSK no outro. Por mais amor que tenhamos. O máximo que podemos fazer é orientá-lo, ajudá-lo, perdoá-lo, amá-lo, mas a decisão de mudar será sempre dele. E não devemos nos punir, culpar e flagelar por isso.
Não temos esse controle todo sobre as coisas que gravitam em nossa emoção. Família, por exemplo.
Isso não quer dizer que devamos ficar frios, indiferentes, com falta de solidariedade e compaixão. Nada disso.
Significa que é do hiato entre o que queremos fazer e o que de fato pode ser feito que residirá o espaço da aceitação.
Aceitação de nossos próprios limites em teimar em devolver as situações á normalidade anterior. Isso só dá certo em computadores. E, mesmo assim, tem situações que de tão estragado que o HD está o CHKDSK não funcionará.
Tem que formatar.
Diria ao meu amigo que sofre pela sobrinha, pelo irmão: - você é eterno.
Quando sofremos pelo outro nos eternizamos.
Diria a esse mesmo amigo que sofre pela sobrinha, pelo irmão: - você não tem tanto poder quanto queria ter para mudar as situações com quais convive e não gosta.
Então, aceitá-las numa perspectiva crítica e tolerante, para longe de ser uma atitude de comodismo ou resignação, é sinal de autocontrole emocional e de realismo.
As coisas mudam. Configuram-se, desconfiguram-se.
Configuram-se novamente e assim vai.
Viver é se achar.
Achar as pontas do novelo da trama do viver e religa-los num tecido possível e que faça sentido.
Aperte seu CHKDSK interior e encontre sentimentos órfãos, lembranças desindexadas, pessoas que sua velocidade em viver as corrompeu de seu HD interior.
Viver é se achar, mas também é se perder.
Se perder de suas verdades sagradas. De sua mania de querer que as coisas voltem a ser como dantes. De querer controlar a tudo e a todos. Se perder de pessoas que te sugam, te oprimem.
Se achar de suas melhores fragrâncias, de suas melhores ternuras, de seus melhores momentos, de suas melhores pessoas.
Ligar o modo “hibernando” e compreender que as coisas evoluem ou involuem. Sem se levar tão a sério e sem querer viver o personagem principal, o mocinho, que muitas famílias associam a um de seus familiares. Sobre o qual é depositado o jogo, o fardo emocional de todos, como que nele as culpas e mazelas fossem expiadas.
De tanta dedicação aos outros acabam esses personagens acabam destruindo sua própria vida, pois só se encontram no papel do outros.
Casamentos vão para o saco. Relações pais e filhos. Relações entre amigos, do tipo sanguessuga. Até relações laborais. Tudo fica permeado por uma extrema codependência afetiva, mórbida, pois que destrói a mais tenra forma de vida que termina em nós se fazer presente, caso a morte ronde o outro, idealizado e mitificado em nossa fantasia de onipotência.
Só ficamos felizes se em nosso modelo mental tudo estiver ok. Nosso irmão alcoólatra, nossa sobrinha viciada...
De tanto viverem a vida e papéis do outro, tomando sobre si seus sofreres, perdem-se de si próprios.
Aceitar situações limites - sobre as quais pouco podemos fazer para mudar, visto que em última análise dependem do outro, mas sobre as quais podemos ainda assim mudar a nós próprios, no sentido do impacto que deixamos acontecer em nosso interior como resultado de sua convivência.
Se a situação é difícil, preliminarmente insolúvel, mude a si mesmo. Mude a forma com a qual reage e se mobiliza quando a situação, tida como difícil, ou fora de controle, acontece.

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