Acordei cedinho, após uma madrugada de muita chuva, daquelas com raios e trovões. Uma tempestade caiu aqui em Sobradinho-DF, e aquela manhã de domingo acordou encharcada.
O nome da cidade foi originário de duas casinhas de João de Barro erguidas sobre um cruzeiro, erguido às margens de um ribeirão. O lugar então ficou conhecido como Sobradinho do Mirante, e com a fundação do DF, na década de sessenta, passou a se chamar Sobradinho.
Mesmo com tempo úmido e chuvoso resolvi ir na Feira do Padre. O nome foi originário do Pe. Jonas, administrador de Sobradinho-DF, que em 1979 mobilizou pequenos produtores para criarem a feira livre deles, retirando-os das mãos dos atravessadores, ou grandes lojas de varejo, que geralmente determinam o preço e exploram os pequenos produtores da agricultura familiar.
Considero as feiras livres um lugar terapêutico. Uma pesquisa (1) do CDS e UFPE, confirma minha intuição: 40% dos frequentadores afirmam que uma das razões pelas quais visitam a feira é pela amizade que fazem com os agricultores que ali comercializam seus produtos, em rústicas instalações.
Bem, então me espreguicei e, mesmo com o tempo molhado, resolvi sair em busca de amizades. Era dia de cultivar vínculos sociais, afetivos, cordiais e de respeito mútuo.
Começo a zanzar pelos corredores curtindo aquele burburinho típico de feira livre e vendo a variedade de produtos. Numa das banquinhas num anúncio o vendedor diz que tem um motor de opala, e em bom estado, para vender. rsrs
Gosto disso. Àquela hora da manhã as bancas de pastel, tapioca, caldo e café estão apinhadas de gente. E aquele aroma de café, passado na hora, inebria a todos, como se fosse um aroma de casa da vovó, aquele cheirinho misturado ao de terra molhada faz de tudo renovação.
Vejo uma fruta estranha, rosácea, e logo puxo assunto com seu produtor, o Sr. André. Ele me diz que ela se chama Pitaya, e dá num cacto, como se fosse a flor do cacto que se transforma em fruto. Sr. André fica todo orgulhoso de meu interesse na fruta, e me diz que trouxe uma mudinhas dos cactos, e aponta para local onde as deixou. Vou lá, fotografo, volto e ele fica feliz em falar de seu roçado de Pitaya. Com suas mais de cem mudas. Ele é o único que as têm, e é frutinha metida à besta de cara, sendo vendida em Brasília de 15 a 20 reais, uma fruta apenas. Ele vende por 8, e faz 2 por 15. Pechinchei três frutas e ele deixou por R$ 20,00. Feira livre sem pechincha é supermercado. Num presta.
Quando as Pitayas estavam posando para uma foto, junto ao seu dono, um grito e um som seco de um tombo na banca ao lado.
E é uma correira só, para acudir um feirante que desmaiou. Seu corpo estava rígido, muitos faziam-lhe massagem no peito, outro abanavam o rosto, outros ainda opinavam em puxar-lhe a língua para fora. Ele não reagia.
A sua mãe, cabelinhos brancos (80), gritava pelo filho (55) para que ele acordasse. Uma rede de solidariedade se fez presente. O filho do produtor da Pitaya correu até uma viatura da polícia para acionar o SAMU. Uma outra feirante, socorria aquela mãe desesperada, dando-lhe água, abraço, palavras de esperança e cuidados. Ela dizia que ele não tinha bebido nada, que estava bonzinho e que viera dirigindo o velho carro deles, do sítio até a feira. E que aquilo nunca tinha ocorrido antes. O clima de tensão no ar era enorme. Mas, lentamente, o feirante foi recobrando a consciência, se mexendo, e abrindo os olhos. E o povo aplaudiu. Muitos choravam. Ele não estava morto. As pessoas não deixavam que ele se levantasse, visto que bateu a cabeça no chão, ao cair,e conversavam com ele para que se acalmasse, pois os médicos estavam chegando. Acho que foi uma convulsão. A sua mãe dizia pra todos que ele nunca tivera nada parecido. Para alívio de todos, as enfermeiras do Samu chegaram, fizeram os primeiros socorros, e levaram-nos: mãe e filho, ao hospital mais próximo.
Um enorme silêncio se fez, quando ele saiu na maca, acompanhando por sua mãe a segurá-lo às mãos. Quanto amor!
Por uns 20 minutos, da queda até o socorro, eu testemunhei o melhor que existe na raça Homo Sapiens. Não havia curiosos fazendo self, fotografando ou só buscando uma notícia para suas redes sociais. Todos ali estavam querendo ajudar de alguma forma. Um deles abanava com a mãos o rosto do senhor caído no chão, para que moscas não pousassem nele. Um amigo deles, um cliente, assumiu o cuidado com a banca, mesmo sem saber os preços, ele garantia a segurança dos poucos itens expostos numa tosca tábua: umas dúzias de cocadas, de todas as cores, uns 4 litros de leite em garrafas, duas pencas de bananas e um bolo. Eram os produtos da senhorinha e seu filho.
Após o Samu levá-los, e ainda em choque, fui agradecer à feirante do lado pelo que ela fez à senhorinha, dando-lhe colo e afago. Ela me disse que poderia ser a mãe dela, e que precisava apoiá-la, mesmo fechando sua barraca ao possíveis atendimentos que poderia ter, e por um bom tempo.
Nossa Senhora!, quanta doação ao outro. O cliente que assumiu a barraca perguntou ao da Pitaya se ele cuidaria das coisas da vizinha, ao que ele afirmou com um "Sim, é claro!", do tamanho do infinito, e o cliente seguiu caminho.
Saí zanzando à caça de café e tapioca, para recobrar-me do susto e de tanta emoção que vivera. Na barraca da cearense, a melhor tapioqueira do pedaço, sentei-me num banquinho e, mastigando aquela iguaria, pensei em como a vida é finita. De como somos breves demais para sermos mesquinhos em nossas jornadas.
Continuei caçando amizades e achei o Sr. Beto, produtor de castanha de Baru. Uma figura de pessoa. Sabe tudo sobre o Baru e em sua propriedade rural, em Minas, tem muitos pés. Ele vai na roça a cada quinze dias, pois é longe, e traz de la de um tudo. Ao seu lado, fiel escudeiro, o Sr. José, seu caseiro. Sr. José é um daqueles velhinhos retirados dos contos de Monteiro Lobato, tipo uma Dona Benta.
Logo fiz amizade com ele, pois o Sr. André estava muito ocupado com a fila de gente querendo as cobiçadas castanhas de Baru, boas pra tudo, segundo ele e um jornal que fez cópia e distribuia.
Sr. José contou-me que trabalha para ele há muitos anos, e que são amigos. Que tem sua rocinha também, ao lado da do Sr. André. E que nela preserva os bichos do cerrado. Conversa com eles e educa os sitiantes vizinhos para não o matarem. "Pois temos nossa própria comida, pra quer matar esses bichinhos de Deus, tão raros e sofridos para comê-los?".
E me mostra um artefato de madeira que usa par pescar. Disse-me que fe aquele para um cliente que vem buscá-lo. José me contou que atrás de sua casa, aqui em Sobradinho, corre um pequeno ribeirão.
E que ele todos os dias pesca uns peixinhos, embora não goste de peixe e não coma. Ele me contou que na sua casa sempre tem um peixe fresco para um pedinte necessitado. E que é comum que pessoas batam á sua porta perguntando se tem algum lambari para doar.
Uauu!!!
Então ele pegou no bolso umas sementes e me contou que fará mudas para o Sr. André. "Foi uma frutinha que um cliente me deu, que achei doce e gostosa, e que guardei as sementes para fazermos mudas e levarmos para Minas. Plantarei uma na minha roça e outra na do patrão. Meu maior gosto é fazer mudas, fiz mais de 50 de ipês, e plantei em nossas propriedades. Quando eu morrer, as pessoas vão ver os ipês e se lembrarão de mim. Eu quero deixar algo meu naquela terra. Deixarei frutas e flores... "
Disfarcei uma tossida e escondi uma lágrima vadia que teimava em cair. Pedi licença da prosa, peguei meu Baru, e segui pra comprar pastel.
Resolvi comprar dois, um para mim e outro para o José. Enquanto era preparado, uma menininha me aborda, vendendo numa caixinha uns quinze chocolates tipo Baton. Perguntei-lhe quanto era o estoque, e o arremetei. Disse-lhe que poderia ficar com a mercadoria vendida, e que agora ela fosse para casa brincar. Ela deveria ter uns 12 anos. Não fiz nada. Quem fez algo foi Sr. José, o cliente da vovozinha que acudiu a banca, o filho de Sr. André que correu na polícia, e a feirante do lado que socorreu uma mãe desesperada. Eu estava retribuindo a generosidade que testemunhara, apenas isso.
Voltei e dei o pastel ao Sr. José, e ele fez uma festa com aquilo. Fiquei pensando, há quanto tempo Sr. José não come um pastel!
Após uma hora de zanzar pela feira, voltei para barraca do acidente de cedo, para colher notícias, e a vovozinha está lá, no seu posto, assumindo as vendas.
Que força! Quem de nós voltaria às vendas após um turbilhão emocional destes? ela voltou. Ela precisava vender aquelas cocadas, bananas e leites. Era o apurado da semana, e com o filho sob observação de 24 horas, ela poderia precisar de dinheiro.
Fiquei um pedaço conversando com ela. Na saída, deixei-lhe uma quantia para ajudar a fazer o lucro das vendas que ela não realizou. Ela não queria receber. Eu insisti, e disse-lhe que poderia ser útil ao para medicação do filho. Aí ela abriu um sorriso e disse: "aí tá certo, assim eu aceito." Não sabe ela que eu só estava remunerando a overdose de amor que ela me deu, naquela manhã.
Saí da feira com o coração cheio de emoções positivas. E segui caminho em busca de uma loja para colocar uma película no meu celular, que insiste em cair no chão e quebrar. No balcão da loja um bolod e chocolate e uma coca-cola. Perguntei ao Alisson, atendente prestativo, quem aniversariava. Ele falou: "vocês, nossos clientes. O refri e bolo é para vocês, pdoe servir.". Aproveitei e tomei um copod e coca-cola. Alisson avaliou os estragos do quebrado, como a perícia de um cirurgião. Perguntou-me se queria investir um pouco mais do que os R$ 10,00 e colocar uma de película de resina, de R$ 25,00, que ele iria cortá-la até ficar boa. E, por uns bons 15 minutos, ele foi moldando a película, como um artesão Depois, colocou-lhe no aparelho e eu vi que ficou excelente. Não mais precisaria trocar o visor, que custa uma fortuna. Qualquer outro atendente diria que não havia maneira, visto os estragos do vidro. Alisson não!
Ele não era qualquer um, ele faz a diferença com o seu trabalho.
Bateu vontade de tomar uma cerveja e petiscar e fui no Restaurante Diamante Negro, próximo a Igreja dos Migrantes, um lugar com comida e bebidas a preço justo e de excelente qualidade. Na chegada os garçons me saúdam, pois já nos conhecemos, e soltam um: "Paraíba, adivinha o que temos hoje?". Nem acreditei no que via, eram costelinhas de bode, um manjar.
Fiz um pratinho, peguei uma cerva gelada, e sentei-me na varanda, degustando tudo que vivera naquela manhã. E olhando feliz para meu celular renovado. Aí o cozinheiro me aborda com pedaços de pernil de carneiro, que acabara de tirar do forno. E me diz: "É para o senhor, não precisa pesar..."
Mais uma vez, aquela lagriminha rebelde insiste em se fazer presente. Voltei para casa pensando em como existem pessoas boas, safrejando no roçado da humanidade. Nessa imensa feira livre em que vivemos, que é só se especializar em catar gente que presta que as acharemos,e aos montes, e todas elas podem ser nossas mestras na arte da vida e do bem viver.
Escrevo nessa segunda bonita, deliciando-me com um cafezinho passado na hora, presente de pessoa amada que meu lar e vida mudar de fase: Sim, agora temos café.
O whatsapp apita, mensagem nova, é de mamãe. Dando-me instruções para comprar uma plantinha para ela, e levá-la para Campina Grande-PB, no final do ano. "Rico, é uma bougainvíllea branca e dobrada, mande foto quando achar para eu ver se é ela mesma." rsrs
Agora vou ali, comprar uma plantinha para mamãe. Chegará um tempo em que desejarei ardentemente que uma mensagem como essa apite em meu celular novamente.
(1) O Papel Econômico e Social da Feira do Padre
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