Sentei-me na varanda da casa de
meus pais, contemplando os belos tons de um pôr do sol. Contudo, nada obstante a paz do entardecer, tudo naquele instante me soava um tanto estranho. Como se fora uma primeira vez.
É que a nossa casa, outrora tão
barulhenta, e com uma profusão de familiares e amigos que a frequentavam, agora
fazia reverência ao silêncio.
A vizinhança também contribuía,
com lacunas de sons que falam, ou que faltam, presentes na partitura do tempo,
de um tempo que sabe compor saudades, inclusive daquilo que não chegamos a ser.
Em cada recanto daquele terraço, havia um pedaço de papai, ouvindo nossas histórias. De Guia, chegando de um mandado,
e sempre a sorrir; e de Celina, convidando-nos para irmos logo para a cozinha, jantar.
Ao que fingia que ficava brava, quando pedíamos só mais um tira-gosto. E não
tem mais a Mel, a se enroscar em nossas pernas, pedindo um carinho, um dengo.
No infinito, badalavam os acordes
do sino do Mosteiro das Clarissas, celebrando as 18h, e irrompendo os sons do silêncio
com aquela melodia afetiva: “bem, bem, bem, bem, bem, bem!
A luz do poste se acendeu, como
quem quer acordar os interiores de alma, para que iluminadas possam acolher,
com serenidade, o fluxo do rio de suas histórias.
Mirei os olhos na mureta, de acesso
da calçada para a varanda, e lembrei-me de que meus filhos nelas se sentavam, e
sobre aquele gramado brincavam.
Quantas fotos registrei deles
ali, naquele cantinho de tanta harmonia!
Na sala de visitas, mamãe adentra, falando
alto ao celular.
Ela proseava com a tia Darcy, que
mora em SP.
Logo depois, mamãe adentrou à
varanda, para contar-me as novidades da tia. E a maior delas era que tia Darcy tinha
encontrado uma carta de vovó, escrita para ela há muito tenpo, e que a carta era
muito significativa e cheia de bons afetos.
Quis o mistério do tempo que
aquela carta ficasse perdida, em meio a importantes documentos, daqueles que
sempre carregamos conosco, tipo escrituras e assemelhados, e que ao revirá-los
ela foi encontrada.
Foi como se minha tia recebesse
um afago do tempo, ao ter acesso à tão precioso registro, que em condições
normais, crise à crise, mudança à mudança, migração à migração, teria sido
extraviado. Como tantos que um dia guardamos, um dia esquecemos, um dia perdemos...
Lembrei do que falei pra minha
neta, a Sofia (1 ano), sobre o nascer do sol que ela estava vendo.
“Sofia, quer você queira, quer
não queira, ele irá nascer. E no final do dia ele vai se recolher, dando espaço
para que a noite comece o seu próprio acontecer. Então, neta amada, aproveite o
dia, pois ele passará”.
Acho que ela não entendeu muita
coisa. Mas, foi mais ou menos assim que falei pra ela.
O que eu quis dizer é que a vida
segue sua jornada. O sol nasce, se põe... e mais um dia nos ocorreu.
O que vai de fato diferenciar, um
dia do outro, um nascer-pôr do sol, não são as condições climáticas. Mas, o que
naquele dia fizemos para eternizá-lo.
Como a carta da vovó para Tia
Darcy.
Como o carinho de minha mãe ao
caprichar, numa de minhas jantas, com um bode com farinha, mesmo que a Fátima dissesse
a ela que não sabia preparar bode. E ficou divino.
Como meu tio Ednaldo, ajudando a
tia Cléo a preparar uma Traíra, com o que ele sabia fazer, que era martelar o dorso
do peixe para cortá-lo em postas.
Como a Celina que nos espera
amanhã em Alcantil, para um dedo de prosa e um almoço daqueles...
Como a Guia que aceitou ficar com
a nossa querida Mel, uma cachorrinha dócil e amiga.
Percebem que são nossas pequenas
atitudes, ao longo de um dia, o que vai dando sentido à vida, e com o qual ela vai sendo preenchida, e nas
esquinas do futuro será lembrada?
E, por falar em sol, a única
coisa que diferenciará um dia do outro, na composição das melodias de nosso
viver, e o que faremos com o nosso sol interior.
A quem iluminaremos, com a nossa
presença no mundo, com gestos e atitudes concretas?
Por quem nos deixaremos ser
iluminados, aquelas pessoas que nos fazem sentir parte de uma Constelação
quando estão em nosso convívio?
A quem aqueceremos com amor,
ternura, respeito, paz e compreensão?
Quem deixaremos que nos aqueça, tirando-nos
do útero da solidão?