Sofia, vamos ver o sol nascer! (Por Ricardo de Faria Barros)

 


Sentei-me na varanda da casa de meus pais, contemplando os belos tons de um pôr do sol. Contudo, nada obstante a paz do entardecer, tudo naquele instante me soava um tanto estranho. Como se fora uma primeira vez.

É que a nossa casa, outrora tão barulhenta, e com uma profusão de familiares e amigos que a frequentavam, agora fazia reverência ao silêncio.

A vizinhança também contribuía, com lacunas de sons que falam, ou que faltam, presentes na partitura do tempo, de um tempo que sabe compor saudades, inclusive daquilo que não chegamos a ser.

Em cada recanto daquele terraço, havia um pedaço de papai, ouvindo nossas histórias. De Guia, chegando de um mandado, e sempre a sorrir; e de Celina, convidando-nos para irmos logo para a cozinha, jantar. Ao que fingia que ficava brava, quando pedíamos só mais um tira-gosto. E não tem mais a Mel, a se enroscar em nossas pernas, pedindo um carinho, um dengo.

No infinito, badalavam os acordes do sino do Mosteiro das Clarissas, celebrando as 18h, e irrompendo os sons do silêncio com aquela melodia afetiva: “bem, bem, bem, bem, bem, bem!

A luz do poste se acendeu, como quem quer acordar os interiores de alma, para que iluminadas possam acolher, com serenidade, o fluxo do rio de suas histórias.

Mirei os olhos na mureta, de acesso da calçada para a varanda, e lembrei-me de que meus filhos nelas se sentavam, e sobre aquele gramado brincavam.

Quantas fotos registrei deles ali, naquele cantinho de tanta harmonia!

Na sala de visitas, mamãe adentra, falando alto ao celular.

Ela proseava com a tia Darcy, que mora em SP.

Logo depois, mamãe adentrou à varanda, para contar-me as novidades da tia. E a maior delas era que tia Darcy tinha encontrado uma carta de vovó, escrita para ela há muito tenpo, e que a carta era muito significativa e cheia de bons afetos. 

Quis o mistério do tempo que aquela carta ficasse perdida, em meio a importantes documentos, daqueles que sempre carregamos conosco, tipo escrituras e assemelhados, e que ao revirá-los ela foi encontrada.

Foi como se minha tia recebesse um afago do tempo, ao ter acesso à tão precioso registro, que em condições normais, crise à crise, mudança à mudança, migração à migração, teria sido extraviado. Como tantos que um dia guardamos, um dia esquecemos, um dia perdemos...

Lembrei do que falei pra minha neta, a Sofia (1 ano), sobre o nascer do sol que ela estava vendo.

“Sofia, quer você queira, quer não queira, ele irá nascer. E no final do dia ele vai se recolher, dando espaço para que a noite comece o seu próprio acontecer. Então, neta amada, aproveite o dia, pois ele passará”.

Acho que ela não entendeu muita coisa. Mas, foi mais ou menos assim que falei pra ela.

O que eu quis dizer é que a vida segue sua jornada. O sol nasce, se põe... e mais um dia nos ocorreu.

O que vai de fato diferenciar, um dia do outro, um nascer-pôr do sol, não são as condições climáticas. Mas, o que naquele dia fizemos para eternizá-lo.

Como a carta da vovó para Tia Darcy.

Como o carinho de minha mãe ao caprichar, numa de minhas jantas, com um bode com farinha, mesmo que a Fátima dissesse a ela que não sabia preparar bode. E ficou divino.

Como meu tio Ednaldo, ajudando a tia Cléo a preparar uma Traíra, com o que ele sabia fazer, que era martelar o dorso do peixe para cortá-lo em postas.

Como a Celina que nos espera amanhã em Alcantil, para um dedo de prosa e um almoço daqueles...

Como a Guia que aceitou ficar com a nossa querida Mel, uma cachorrinha dócil e amiga.

Percebem que são nossas pequenas atitudes, ao longo de um dia, o que vai dando sentido à vida, e com o qual ela vai sendo preenchida, e nas esquinas do futuro será lembrada?

E, por falar em sol, a única coisa que diferenciará um dia do outro, na composição das melodias de nosso viver, e o que faremos com o nosso sol interior.

A quem iluminaremos, com a nossa presença no mundo, com gestos e atitudes concretas?

Por quem nos deixaremos ser iluminados, aquelas pessoas que nos fazem sentir parte de uma Constelação quando estão em nosso convívio?

A quem aqueceremos com amor, ternura, respeito, paz e compreensão?

Quem deixaremos que nos aqueça, tirando-nos do útero da solidão?

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