E QUANDO SECAREM AS LÁGRIMAS?





Pela manhã, ao sair para trabalhar segui trilhando pela avenida costumeira, onde vi uma cena expressiva. Um grupo de funcionários, de uma empresa de jardinagem urbana, perfilava-se em frente ao caminhão para uma foto.
Fiquei feliz, ali havia autoestima em dia. Adoro fotos. Sempre que vejo alguém posando para fotos sei que algo de bom acontece. Com certeza, um deles – aquele que sempre conclama a todos para uma “fotinha”, queria registrar o momento e enviar para os seus, postá-lo em redes sociais ou até imprimi-lo para mostrar em casa, todo orgulhoso.
Poderia ser o primeiro dia de trabalho daquela turma, poderia ser tanta coisa que motivara o gesto inesperado e inusitado e não muito comum de vermos no dia-a-dia. Como era perto das oito da manhã, a luz estava boa e aquela foto deve ter ficado bacana.
Após o almoço, pela mesma rota, voltava novamente ao trabalho. Antes de pegar a ponte JK, avistei ao longe umas viaturas da polícia. Reduzo a velocidade e presto atenção redobrada. No canteiro central, um corpo envolto num lençol. De soslaio, vejo cabelos esvoaçantes, teimando em viverem.
Segui perplexo para o trabalho. Passei o dia pensando da frugalidade do viver e morrer. Aqueles cabelos esvoaçantes não saiam de meu pensar.
Como que a me perseguir, com um tema pra mim muito dolorido, tudo ao meu redor, nos últimos meses, começara a falar em perdas, sofreres e o que fazemos com eles.
Seja o excesso de notícias relacionadas à morte que ultimamente circulam em nosso portal corporativo, seja pela morte do avô de uma funcionária, que a deixou triste, seja por posts de amigos que os leio e me fazem refletir. Selecionei três deles, mais recentes, que me tocaram bastante:
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1. “Tardiamente, o saudável estímulo à reciclagem tomou conta dos espaços nas grandes cidades. [...] Na contramão, iniciei lista de coisas que, lamentavelmente, não podemos mais reciclar: carta não escrita, palavra maldita, choro contido, tempo perdido, mágoa enrustida, afeto adiado... Tô aceitando sugestões.”

2. “Perdido. Eh assim que me sinto. Desde quando [meu filho foi diagnosticado com autismo], há quase 03 anos, vivencio sentimentos de culpa, de impotência, de medo. Coisas simples do dia a dia, as quais estava acostumado, se tornaram grandes desafios. O que ele vai ser quando crescer? Com quem vai casar? Onde irá trabalhar? São questões que me apavoram e me paralisam. Tenho ouvido muito referencias sobre "o presente" que recebi, metáforas espirituais de que "Deus nunca dá uma carga maior do que podemos suportar" mas, infelizmente, não as compreendo. Não agora, mas sei que Ele me ajudara a compreender. É nisso que acredito.”

3. “No consultório, após algumas horas de agonia, recebo a notícia de que só tenho, aproximadamente, um mes de vida. Entre "bem que eu desconfiava" e o "isso não pode ser" levou alguns segundos. Como a medicina não poderia mais fazer nada por mim.... faço eu. Liguei para a minha filha e lhe dei a notícia, na lata, liguei para a minha mãe, para um grande amigo, talvez para uma amiguinha recém conhecida, minha irmã, que só me falta colocar no colo sempre que nos vemos e para o meu irmão, com quem me dou muito bem. Os seguros estão ok, os imóveis regularizados, a filha amadurecendo.
Fui imediatamente ao encontro da minha filha e repeti o que lhe digo às vezes: oi minha grande companheira de viagem" agora nós vamos aproveitar mais ainda! Aceita ficar comigo nesse período? Vamos viajar, comer, parênteses (eu (beber, fumar). Vamos alugar um carro diferente a cada período, vamos pagar tudo à vista, vamos dar mais "ois", vamos dançar mais, se já sorrimos, vamos sorrir mais, vamos rir de quem merece e vamos elogiar quem merece, também?
Quando faltarem uns poucos dias, vamos ficar com seus tios e avó.
Como ela acabou de tirar sua carteira de motorista, ela quem irá dirigindo, é claro, pois eu quero participar disso tudo, afinal tem mão minha nessa escultura de 18 anos.
Podem ter certeza de que um dia estará reservado para eu comer quantas coxinhas de galinha que eu quiser. Sentarei na minha cama, abrirei os pacotes a "atacar!!!!". Pedirei emprestado um carro bem caro e chique para dar uma volta em alguma estrada bem próxima. Ai faltando bem pouco, mas bem pouco, ligarei para algumas pessoas e lhes direi o que sempre quis dizer mas não podia ou até mesmo não devia. Este texto não representa a realidade mas poderia representá-la, mas essa hipótese tem uma grande vantagem: eu saberia quando morreria. As pessoas como o rapaz da 413 [que morreu aqui em Brasília de bala perdida] não teve essa chance.”
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Fiquei conectando as vivências e assombrado com insights que teimavam em vir à mente. Do tipo, será que aquele motoqueiro registrara seus bons momentos, ou reciclara seu ser para um maior desenvolvimento sustentável interior, preservando valores e comportamentos realmente edificantes.

Será que teve tempo ou oportunidade de escrever cartas pendentes, de pronunciar palavras benditas, de chorar choros contidos, de ganhar um tempo perdido, dissolveu mágoas encrustadas, escancarou afetos imediatos? Vai saber. Acho que nem ele nem ninguém. Vamos adiando isso.

Relaxei, afinal somos sempre devedores de afeto na contabilidade da vida. Nunca estaremos com nossas contas em dia no que concerne aos nossos relacionamentos. Só podemos cuidar para este prejuízo emocional, de coisas adiadas ou não ditas, malditas, desditas, aumente.

Costumamos botar muitas tralhas emocionais na dispensa de nosso coração e algumas delas – mágoas antigas, ressentimentos estéreis, vinganças e ciúmes áridos – aumentam nosso débito para com a vida plena.

Perguntei sobre mim mesmo. Levei-me para passear, olhei-me no retrovisor, não gostei da cara amarrada, tensa, cheia de futuros afazeres e preocupações comezinhas.

Percebi o quanto meu ser está precisando de uma reciclagem.

Ontem participei de uma escuta institucional, de algo que ocorrera com um grupo de funcionários, um deles me disse, “eu tentei chorar, mas há muito tempo desaprendi."

Ouvi esta profunda e sensível frase de um colega que vive um luto organizacional. Nada pior do que lágrimas choradas e engolidas. Para estas, não há lenço disponível que as socorra e enxugue os olhos da alma, disfarçando as evidências do sofrer. Dói todo o ser. Solidarizei-me com o colega e este relato pegou-me num momento que também sofro meus lutos organizacionais. Acho que todos os têm.

Já vivenciei muitos lutos. De morte de entes queridos, de puxadas de tapete no trabalho, de problemas de saúde, com os filhos, família, de perda do afeto, etc...

Todos vivenciamos lutos. Na maioria das vezes sobrevivemos. Nossa força interior se mobiliza e nos ajudar a superar.

Um dia me perguntaram o que digo, como psicólogo, a quem sofre. Não digo nada. Só lhe abraço, toco, digo que estou presente para ouvi-lo e ampará-lo no seu sofrer. Dá um trava língua e não consigo dizer nada.

Certa vez ouvi de uma amiga que, ao ir a um velório ou perceber que o outro está enlutado, faz “mãozinha que tira terra do ombro”.

Acho que é uma excelente técnica.

O luto pede seu tempo.
Há um tempo de amadurecimento do luto. E quem já viveu sabe que é um “cálice que temos de tomar”.

Ele tem recaídas, qual uma virose. Lembra quando o doutor diz ás nossas crianças, com febre e tossindo, que o quadro precisa evoluir? É assim mesmo com o luto. Um dia estamos melhor, noutro pioramos, e o processo se arrasta.

Ele é uma virose na alma e precisa evoluir.

E evolui no tempo de cada um.

O que dizer ao pai da criança-autista? O que dizer à minha funcionária que se despediu do avô querido?

O que dizer ao senhor que não tem mais lágrimas, de tantas puxadas no tapete que recebeu no ambiente de trabalho?

O que dizer a uma jovem mulher que fez uma cirurgia e não pode mais engravidar?

O que dizer quando o amor acaba, não é correspondido, ou se frustram expectativas de um dos amantes, o enlutado?

O que dizer? O que dizer?

Não sou bom em textos de autoajuda, embora sem querer me ofender, um colega classificou um deles neste estilo medonho.

Então não tenho palavras doces para o luto.

Luto dói. Tira o brilho e as cores da manhã. Luto prostra. Luto adoece. Luto rouba energias interiores e tira o humor e prazer em viver.

Quem vive momentos de luto, vive sua virose interior, tal qual uma infeção emocional.

Então como proceder junto a alguém que vive este adoecer emocional?

Só se faça presente. Só o escute.

Coloque-se numa postura de compaixão. Mas nunca, nunca mesmo, relativize o luto de quem o sente. Ou compare-o a lutos, por você vivenciados, como maiores.

Seu amigo enlutado só quer desabafar contigo. Não quer explicações que não explicam.
Só quer um espaço para dizer-lhe o quanto sofre.
Muitas das vezes só o fato de te ver por perto já o conforta.

O problema é que ficamos tão mexidos com a dor do amigo que num processo de verbalização extrema deitamos a dar-lhe conselhos ou a falar de coisas que naquele momento pouco sentido farão.

Só ouça. Só aconchegue. Só nine. Só se faça presente. Só diga que se quiser estará disponível para um conversa.

Só o pegue para passear, vez por outra.

Só leve um filme pra assistir com ele.

Só se ofereça para pequenos afazeres domésticos.

Só escute e, vez por outra, diga o quanto seu amigo é forte e o quanto tem certeza de que ele conseguirá superar aquela situação.

Quem vive profundos estados de luto desorganiza sua rotina. Coisas, antes simples, são feitas com dificuldade.

Tudo pode ferir ou machucá-lo, pois o enlutado fica supersensível aos acontecimentos que vive, pois olha o seu viver pelas lentes da emoção. Vê as cenas de seu viver com as lentes da emoção e está ferido no seu interior.


Pouco resolverá.


O processamento deste sofrer existencial é individual e só faz sentido para o que sofre.
Não adianta prescrever velhas fórmulas, mesmo que para você já tenham feito sentido.
E é de sentido que falo.
O luto pode ser visto também como uma busca de sentido. Uma resposta de nosso ser a um processo de infecção emocional.

Às vezes a pessoa enlutada precisará de ajuda profissional para melhor lidar com o luto.

Mas, na maioria das vezes, a própria vida vai elaborar o luto.

Viver é terapêutico.

Só precisa ter forças para continuar respirando.

Mas cedo ou mais tarde, as cores vão surgindo novamente, pequenos prazeres vão se fazendo presente na nossa agenda cotidiana.

Mas nunca, nunca mesmo, engula lágrimas.

Não banque o forte, não racionalize o sofrer.

Procure livros, vídeos, grupos, pessoas que vivem a mesma situação e os apresente ao seu amigo. Trocar experiências com quem sofre de dores da mesma natureza ameniza a sensação de estar só na dor.

Para quem vivencia estados de luto, participar de atos religiosos, fazer voluntariado, escrever sobre a vivência em blogs ou redes sociais, fazer algum tipo de terapia-ocupacional, pode ajudar.

Para o amigo do enlutado, talvez a postura do “Pitchula” seja uma boa.

Num banheiro de um cemitério aqui do DF, inscrito na parede, dentro de um coração desenhado li a frase: “Pitchula, só queria te dizer que eu vim te ver, viu?”.

Acho que eles viviam um romance às escondidas, fiquei emocionado ao ler tal brado último de amor. O autor desta frase sem querem ensinou-me muito.

É só se fazer presente na vida dos enlutados, “só vim te ver”...

Ao escrever esta crônica senti uma vontade danada de voltar a posar para fotos, de recomeçar, de lançar pontes - em muros da discórdia que recentemente ajudei a levantar. Quem sabe...

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