No amor, deixe cheirar o cuscuz

Cyca Revoluta 
Quase nunca lembro de meu sonho. Mas, pela madrugada sonhei abraçando minha naninha e sentindo seu cheirinho bom. É impressionante como o gesto de aspergir um perfume, numa naninha, pode transformar uma boneca de pano num memorial ao amor.
As Naninhas do Bem são bonequinhas de pano, doadas a crianças hospitalizadas.
Ganhei uma Naninha de uma aluna da Pós em RH UNIP-DF.

No sonho, eu agradecia pela companhia da Naninha em meu viver, um refresco perfumado, para dias de deserto. Era como se com ela eu dividisse sonhos de amanhecer dias encantados. Aquele perfume refrescava minha alma, tal qual aroma de terra molhada, de brisa Aracati, de relva orvalhada em flores que se oferecem a rasantes vôos de borboletas azuis.
Então, meu sonho foi sobre o aroma, aroma afetivos, aroma cotidianos que vão marcando nossa história.

Se é uma coisa que nos torna profundamente humanos é a memória afetiva de aromas.

No bairro de Jaguaribe, aqui em João Pessoa, sempre que visitava meus avós maternos eu caminhava por alamedas de jambeiros e mangueiras centenárias, nas proximidades de sua casa, e sentia vindo no ar um gostoso cheiro de terra molhada. Aquilo era algo que me fazia elevar o coração. Sempre que sentia aquele cheiro, em qualquer outra parte do Brasil, eu lembrava de meus avós. Hoje sei o que era aquele cheiro de terra molhada vem da Palmeira Cyca Revoluta (Sagu), da espécie macho. E se dá quando o espécie macho entra na inflorescência e libera esse aroma, atraindo pássaros, borboletas e abelhas para ajudá-lo a levar vida até sua amada, em forma de pólen.

Ainda aromatizando o sonho, aspirei o cheiro do café da Celina vindo da cozinha. Uauu. A vida também amanhece com cheirinhos de café.
Tomei um golinho com ela, e saí caminhando pela avenida que margeia a praia, à caça de padaria aberta.
Àquela hora, no haal do elevador sentia o cheiro do café da Celina, agora era o de queijo na chapa, que provocava os vizinhos.
Ao sair, Celina perguntou-me se eu continuaria o curso de fazer cuscuz.
Abri um sorrisão e disse-lhe que seria melhor amanhã. Hoje é domingo, temos visitas, e não é dia de arriscar na cozinha. rsrs
Continuei dizendo-lhe: ainda estou processando uma parte da receita que me ensinou, quando me disse que só desliga o fogo “uns oito minutos, após cheirar”.
Caminhei matutando sobre o tempo dos cheiramentos.
Para cujo desfrutar precisamos apurar o olfato. Aspirando as essências do bem viver.
Gostei da forma como Celina me ensinou qual o tempo do fogo aceso, “após o do cuscuz cheirar”.
Creio que o amor é esse fogo que faz cheirar. Mas, ele pede tempo, paciência, investimento, renuncia, flexibilidade e adaptabilidade ao outro. Ele pede um espaço do conhecer e reconhecer o outro.

É o tempo da espera do cheirar do cuscuz.

Após o que, a massa do amor estará pronta para ser servida e desgustada.
Nos relacionamentos, andamos querendo antecipar o tempo do cuscuz. E falo de todas as espécies de relacionamento. Pais e filhos. De namoro. Entre líderes e liderados. Pastores e suas ovelhas.
Queremos comer o bom cuscuz do relacionar-se, mas não queremos esperar que ele fique pronto, investindo nosso maior tesouro nisso, nosso tempo para o outro. Nossa disponibilidade em acolhê-lo em nossas vidas.
Sem mais querer esperar a maturidade do amor, sua evolução, acabamos queimando etapas, ou matando o outro com expectativas e cobranças que não cabem ainda, antes do cuscuz cheirar.
E, o que era antes algo bonito, torna-se asfixiante, pobre, sem sabor. Matamos a relação por excesso de tempo no fogo, ou por falta de tempo no fogo. Por ter desaprendido a “cheirar” o seu cozimento.
E tudo vai ficando muito rápido, frenético, como se o amor fosse um se alimentar num self-service. E não em restaurante do tipo slow food. Não se ama nada profundamente sem os oito minutos da Celina, após o cheirar do cuscuz.
Sem tempo para esperar o cheiro do cuscuz, acabamos tirando-lhe do fogo antes da hora, e ele estará cru, ou deixando mais tempo do que devia, por não reconhecer seu aroma, tornando-lhe seco, sem aquela elasticidade da massa, que derrete corações amanteigados.

Voltando dos mil pensamentos, e já avistando a esquina da padaria, escuto um som vindo de uma rua paralela à praia.
Aproximando-me do local, uma cena comove meu coração.
Um jovem faz uma serenata improvisada para sua amada. No rádio do seu carro ele bota pra tocar Chiclete, tira a camisa, a gira no ar, abre os braços sob a janela dela, e grita aos plenos pulmões:
“Então diga que valeu
O nosso amor valeu demais
Foi lindo, ficou pra trás.
Um beijo em você eu quero dar
Saudade presa no meu coração
Eu ando louco alucinado
Muito doido e apaixonado por você”

Sabe o que ele faz? Ele exala para ela o perfume da Cica Revoluta. Ele cultiva o tempo do cozimento do amor, os oito minutos.
Ela sai à janela, sorri, e pede que ele não acorde todos. Ele a obedece. E ficam se olhando, e eu a eles, sem poder continuar a caminhar. De tão linda a cena.
Recuperado de tanta beleza, volto sentido cheiro de pão quentinho, e o aroma da praia em desabrochar me elevar o ser, levando-me para casa novamente.
Um aroma de naninha que me fez deixar de se sentir migrante, forasteiro ou órfão de mim mesmo. Um perfume que diz: “Vou te trazer aqui...”
É isto que os aromas afetivos fazem conosco, nos trazem a algum lugar bom de viver.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores