Malotes, Lacres e Memórias que o Tempo Carrega


Num sábado qualquer, num brechó escondido de Brasília, arrematei um antigo malote por dez reais. O cheiro da lona gasta, o zíper pesado, a costura firme: bastou o toque para que um clarão de memórias me invadisse. Era como se o passado, dobrado e quieto, respirasse de novo, abrindo-se como um livro esquecido que sabe exatamente onde a história parou.

Nos anos de Banco do Brasil, na agência de Remígio, cabia a mim a honra de abrir o malote. O supervisor me concedera essa deferência com a solenidade de quem confia um segredo. E, de fato, o malote era o coração do dia. Ao romper o lacre, a agência despertava. Ali vinham o DEB 744, com o listão de saldos; o temido DEB 724, com as contas devedoras; o CPR 740, com a poupança. Havia respostas de transferências, os famosos “Funcionário-Assunto-Razões”, e os indispensáveis talões de cheque personalizados — quando cheque era o “pix” de uma época, com direito aos célebres voadores que, às vezes, pousavam antes do tempo, provocando pequenas tragédias que faziam o gerente suspirar.
O malote era mais que um saco de lona: era um cordão vivo que ligava agências, colegas e afetos. Dentro, podiam vir bilhetes carinhosos, pequenos embrulhos, livros, recados, favores — um correio interno mais ágil que a própria ECT, um fio de humanidade costurado em pano. Alguns envelopes gritavam “Confidencial – A/C do Gerente Geral”, e a simples leitura desse carimbo acendia murmúrios e olhares cúmplices. Eu, com vinte e poucos anos, sentia-me o maestro que fazia a orquestra começar. A agência só respirava depois do meu gesto, como se a vida do prédio dependesse daquele rasgo no lacre.

Mas se abrir o malote era festa, fechá-lo para o envio a João Pessoa ou Campina Grande era pura tensão. Lá iam cheques acolhidos na boca do caixa, comandos do SCAI (Processamento do Crédito Rural), acertos do DEB e, sobretudo, o formulário 0101 — a peça-chave de todo acerto contábil, que movia contas internas com um débito, um crédito e um histórico. Sem o 0101, nada se conciliava. Era o formulário da harmonia, a pequena partitura que garantia que tudo chegaria ao seu destino certo, contabilmente falando.

Voltando ao malote, o nosso "maloteiro" era o lendário Galego do Malote, com sei ic^}onico Fiat Uno. Ele vinha de Cuité, passava por Barra de Santa Rosa, Remígio, Esperança, Lagoa Seca e seguia para Campina Grande. Tinha um sorriso fácil e um gosto simples: bodes, galinhas, conversa boa. Nos fundos da agência, eu criava um casal de caprinos à espera de mudança para o sítio em Jenipapo. O Galego, antes de seguir viagem, espiava os bichos, e, nesse ritual, eu ganhava uns preciosos dez minutos para um último comando no XER ou uma derradeira correspondência, ou um acerto na Via CEDEP. Galego era feliz por natureza, um homem de estrada, mas também de pausas, daquelas que ao contemplar galináceos, no quintal de uma agência bancária, é capaz de atrasar a pressa do mundo. Seu jeito manso, farto de ser gente boa, parecia segurar nossa ansiedade do tempo pela aba do chapéu.

E como esquecer o Plano Cruzado, quando plantões de fim de semana tentavam acalmar correntistas de poupanças congeladas? No começo, alguns apareciam. Depois, ninguém mais. Eu e Catão ficávamos de nove da manhã à uma da tarde, jogando dominó e esperando o cozido de galinha do boteco vizinho. O silêncio dos plantões tinha gosto de espera e de tensão contida. Muitos estavam revoltados com o sequetrso de suas economias, e queriam alguém para bater. Foi nesse tempo que nasceu um dos trotes mais saborosos da minha vida.


Numa manhã preguiçosa, num daquees derradeiros plantões de final de semana, liguei para meu irmão Guga, que estava sozinho na agência de Esperança. Escrevi uma ata oficial, com assinatura e tudo, atestando a presença completa da equipe e pedi ao Galego que a levasse. E que ao chegar na próxima agência, de seu circuíto, mostrasse ao meu irmão. Não é que o  Guga acreditou, e mobilizou meio mundo, muotos em casa, para irem assinar. E, satisfeito, , ligou para saber  o setor do endereçamento, já que na minha não constava. E eu era doido? “Rasga tudo, era um trote!”, revelei. Do outro lado, um silêncio, depois gargalhadas nervosas. O Galego ria até chorar, cúmplice de minha traquinagem. Aquele riso parecia ecoar pelas estradas poeirentas que o levavam adiante, costurando as cidades com sua alegria discreta.

O episódio teve seu gran finale quando Anselmo, avisado da brincadeira, deixou a família em Areia e veio, bufando, “me pegar”. Eu me escondi debaixo da mesa da cantina, erguendo apenas o litro de uísque que seria o brinde da galinha: “Vem comer e beber conosco!”, desafiei. Anselmo confiscou a garrafa e saiu batendo o pé, meio furioso, meio divertido. Catão ria até doer a barriga, e o Galego, em algum ponto da estrada, certamente ria sozinho. Entre risos, galinha e dominó, selávamos a amizade no balanço tranquilo daquelas tardes.

Hoje, com o malote comprado no brechó entre as mãos, entendo que a vida é feita de malotes invisíveis. Cada encontro é a abertura de um deles: um lacre rompido que revela afetos, segredos, esperanças. Dentro, depositamos palavras, gestos, emoções. Quando a convivência termina, o malote se fecha. O meu e o do outro seguem viagem, carregando paz ou inquietação, bondade ou mal-entendidos. Alguns malotes da alma chegam abarrotados de paz, doação, gratidão, esperança, fé, ética, respeito e solidariedade. Outros trazem silêncios, cansaços, aprendizados mais duros. Mas todos, de algum modo, nos transformam.

O segredo da vida é esse: abrir lacres de malote, nos permitindo ao novo; e fechar lacres de malote, zerando pendências, fazendo a vida fluir.
Cada manhã é um convite para abrir um malote diferente — um abraço inesperado, uma conversa que nos atravessa, uma boa notícia que se aloja no coração. E cada despedida, quando bem vivida, é o fechamento sereno desse malote, selado com o que de melhor soubemos enviar.

Enquanto houver um Galego para rir com a gente, um Guga para cair em nossos trotes, um Catão para dividir galinha e dominó, e um Anselmo para protestar e perdoar, haverá sempre malotes a abrir e a fechar na grande agência do tempo. Porque, no fundo, a vida é uma contabilidade secreta de encontros: lacres que se rompem, histórias que se escrevem, malotes que se enviam cheios do que somos e do que ousamos compartilhar. Entendedores, entenderão.

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