Histórias não Escritas do BB - As Bolachas do Funrural




Dois toques que encerravam o dia e faziam a fita do caixa cantar. Primeiro, o balanço: conferência minuciosa, o frio na barriga que nenhum veterano perdia. Ninguém quer fechar caixa com diferença — nem pagar para trabalhar. Depois, a cortina baixava: saldo confirmado, missão cumprida.

Era como se a agência respirasse aliviada junto com a gente, soltando um suspiro de tarefa concluída. Aquele momento tinha cheiro de papel térmico e gosto de vitória.

O palco das siglas que viravam música

O Banco do Brasil era um grande palco, e as siglas eram instrumentos de uma orquestra secreta. Cada uma trazia um som próprio, um ritmo de bastidores:
- ESCAI – onde a roça virava linha contábil, escrituração que transformava semente em número.
- 0613 – a chave dourada que abria a porteira do financiamento agrícola.
- DEB 724 – o clarim da manhã, revelando a posição das contas correntes antes mesmo de o sol esquentar o telhado.
- CPR 740 – soprando a melodia guardada da poupança, a música dos sonhos em repouso.
- SLIP – a carteira de identidade das operações rurais, documento minucioso que dava rosto e história a cada contrato do campo.
- BIP – o batimento mensal da equipe: um jornal interno que misturava inaugurações, “Histórias não contadas” e notícias de conquistas.
- SETEX – local que fervia de clientes: sacando, pagando, depositando ou dizendo que o dinheiro não tava mais na conta. kkkk
- RETAG – mãos de costureira, tecendo lotes com documentos semelhantes dos caixas, alinhavando o expediente para que cada papel encontrasse seu lugar certo.
- CESEC – quase um gigante de silício, que mastigava dados e devolvia, em ritmo de pamonha e canjica contábil, a matemática da agência.
Até o MVS, com seu Mapa de Volume de Serviços que todos adoravam odiar, fazia parte da sinfonia inevitável do expediente.

Onde o papel virava vida

Mas a agência não era só papel.
Havia a Rural, com cheiro de terra molhada e café passado, onde liberar um financiamento agrícola significava ver dignidade brotar do chão. A gratidão, muitas vezes, vinha em forma de presente vivo: uma galinha, ovos fresquinhos, um quilo de feijão recém-batido.
A Plata, sala de visitas, era quase uma sala de estar: ali se falava de colheitas, de sonhos, de filhos na escola.
O Setop tecia linhas de crédito como quem borda esperança.
O Compe 30, maestro final, fechava a partitura do dia: saldos de cheques e documentos dançando em harmonia.
Cada código era mais que um comando: era um pequeno rito de transformação.

Personagens que viraram eternos

Na Agência 2520-8, em Remígio-PB, nos anos 80, cada cliente tinha um rosto, uma história, um cheiro.
Seu Juvenal fechava o dia me oferecendo vitamina de banana na bodega.
Dr. Passos, o maior aplicador, confiava seus milhões a um bloco de notas de bolso.
Edmilson perfumava o balcão com alho.
Dona Lurdinha trazia o cuidado das farmácias.
Petrônio abastecia sonhos com o mercadinho.
Sr. Mizinho, dono do posto, chegava com cheiro de gasolina e conversa boa.
Neto Bronzeado, prefeito com nome de sol, espalhava carisma.
E Catão… ah, Catão.
Rei das filas, cigarro aceso entre os dedos, humor que fazia o tempo escorregar. Sua fila dobrava, mas ninguém se importava: saía todo mundo rindo e com o caixa certo. Ele me ensinou que atendimento é encontro — que um simples pagamento de conta de luz pode virar conversa de alma.

A família de dentro

Nos bastidores, seis corações que cabiam numa Kombi: eu, Catão, Loyola, Jocimá, Severino e Barbosa — depois o Gomes.
Mais que colegas, cúmplices. Cada expediente era um jogo coletivo, em que cada um conhecia o passe do outro.
Havia heróis silenciosos:
- Marcelo, da agência de Areia, um verdadeiro Shaolin do ESCAI, capaz de desarmar as diferenças mais teimosas.
- Amadeu e Bartolomeu, vigilantes-poetas, que além de guardas eram conselheiros, informantes, guias de Funrural, e cronistas da cidade.
E tinha um comportamento delee que hoje minha memória me agraciou, e que partilho com vocês.  Amadeu e Bartolomeu sempre tinham por perto um copo de leite, água, café e bolachas, para acudir idosos que chegavam dos sítios de madrugada, para pegar um bom lugar na fila, e vinham muitas das vezes em jejum. Eles faziam isso por livre iniciativa. Hoje, 35 anos depois, tenho a comprensão do valor inestimável daquela atitude do Bartolomeu e do Amadeu. Quanta empatia e compaixao para com aqueles velhinhos que vinham de longe receber suas aposentadorias. 
Esse cuidado simples era uma aula de hospitalidade e humanidade.
Quando chegavam os dias de pagamento da prefeitura ou do Funrural, a agência virava uma festa: cheiro de café, gente que vinha de longe, papéis amassados que valiam como prova de vida. Uma pequena cidade cabia ali dentro.


Para quem chega agora

Aos novos bancários, deixo um convite:
olhem cada cliente como pessoa inteira, não como conta-corrente.
Cultivem amizades de equipe, pois são elas que sustentam nos dias mais duros.
Celebrem cada microvitória — um problema resolvido, um sorriso conquistado, uma dúvida desfeita.
Aprendam algo novo em cada expediente, mesmo que pareça repetição: a novidade pode estar no detalhe de uma história.
E mantenham o propósito vivo. É ele que transforma anos de serviço em fonte de alegria.

E lembrem-se: há vida além do banco. Essa foi uma das lições mais preciosas que levei comigo.
- Estudos e leituras: investir em conhecimento fora do expediente alimenta a mente e abre horizontes.
- Família e amigos: reservar tempo para estar com os filhos, netos, companheiros e velhos amigos é nutrir o coração.
- Igreja ou comunidade de fé: a espiritualidade fortalece e ajuda a processar os dilemas do dia.
- Boteco e roda de conversa: uma mesa simples, uma prosa longa, uma risada demoram mais a passar do que qualquer tensão.
- Esporte e natureza: caminhar, nadar, jogar bola, cultivar uma horta ou cuidar do jardim são maneiras de devolver paz ao corpo.
- Cultura e música: um show, uma peça, um filme ou um disco de vinil são lembretes de que a vida é maior que o saldo final do dia.

No dia a dia do trabalho bancário, aprendi a força do coletivo, do trabalho em grupo. Do sentido do que eu fazia, ou seja do meu trabalho com sentido, e não do sentido do meu trabalho. Também da gratidão, do propósito e da amizade.
A perceber que trabalho é lugar de significado, de realização, de encantamentos e propósitos, quando o cotidiano é costurado com humor e cuidado.
Esses respiros eram meu contraponto ao barulho das cifras. Eles me ajudaram a mediar tensões, a processar frustrações, a renovar forças. O Banco pode ser exigente, mas não deve ser o único enredo da sua história.

Porque, no fim das contas, o Banco do Brasil é mais que uma instituição financeira.
É um território de crescimento humano, onde cada meta pode virar semente de esperança e cada atendimento, um gesto de cuidado.
Quem entra hoje tem a chance de continuar essa sinfonia: não apenas guardando cifras, mas plantando humanidade — e também vivendo plenamente fora do expediente.
Há vida também fora do BB!

Entre Siglas e Afetos: Memórias da Agência 2520-8


Há palavras que não morrem. E há pessoas que vivem em nós. 

Ficam gravadas na pele como um carimbo datador, teimando em viver no presente.
O vocabulário que aprendi no Banco do Brasil é um desses baús: ESCAI, 0613, CPR 740, RETAG, CESEC…
Quem nunca habitou o coração de uma agência não imagina a música secreta que cada sigla escondia.
O ESCAI era o primeiro acorde: escrituração dos contratos de financiamento, a roça virando linha contábil.
O 0613 era a chave-mestra para registrar o financiamento agrícola.
A Ficha Cedep amarrava o enredo: conciliava contas internas que saíam de um departamento e repousavam, pacificadas, nas agências.
O DEB 724 inaugurava as manhãs com a posição das contas correntes.
O CPR 740 soprava os números guardados da poupança.
E o XER 601 destrinchava, com rigor de escriba, a contabilidade do crédito rural.

A Partida 0101 era coreografia pura — débitos e créditos girando em torno de um histórico escrito como quem narra pequenas epopeias.
O LIC condensava a doutrina bancária; o CIC, seu pai, guardava o saber dos primórdios.
O BIP, nosso jornal interno, batia o coração mensal da equipe, entre "Histórias não Contadas", inaugurações, e as últimas do BB, e seus triunfos. 

No palco das operações, cada setor era um planeta.
O SETEX, a verdadeira porta da esperança, era onde se processavam os valores depositados, transferidos, aplicados, sacados.
Ali, cada operação carregava uma história de vida — o sonho de um eletrodoméstico, o salário que "caia", a lavoura que ia brotar, a escola do filho, o conserto de um telhado.
O SETIN cuidava dos bastidores, processando papéis. Quase invisível, que só aparecia nas horas que algo dava muito errado. 
A RETAG preparava os papéis que viam dos caixas, embalava-lhes em lotes prontos, como quem fecha cartas de um correio invisível.
O AIA transmitia as captações, e o MVS media produtividade — um espelho frio diante do calor humano de cada atendimento. O Mapa de Voluime de Serviços  (MVS) era uma unanimidade, odiado por todos. kkkk

A Rural tinha cheiro de terra molhada e café passado.
A Plata, sala de visitas do BB, recebia clientes com jeito de casa de conversa.
O Setop operava com as linhas de crédito.  
O DAD e o DCD corrigiam diferenças da COMPE, mesmo as minúsculas, quase invisíveis.
O Compe 30 era maestro do fechamento: resumia o saldo dos cheques e documentos de débito em trânsito de compensação, enquanto boletos e DOCs faziam o mesmo para os créditos.
Os boletins BAL e BAC afinavam a contabilidade da Rural.
O Anexo Extracaixa guardava o que escapava da rotina, e o "bagaço de caixa".
A Ficha de Lote capeava conjuntos de documentos contábeis, como quem costura capítulos inteiros de uma história.
O oitavado — a oitava parte de um A4 — era o nosso post-it de raiz, servindo para pequenas anotações que faziam girar a engrenagem. Em alguns casos, substituia o email.  
E o Carimbo Tanque deixava, no verso dos cheques, as anotações que selavam seu destino.
No centro de tudo, o CESEC — para nós um quase gigante computador - que debulhava tudo que vinha das agências, transformando aquilo em pamonhas e canjicas contábeis.  

Mas ,a agência não era feita apenas de papéis.
Não havia alegria maior do que liberar um financiamento agrícola, sobretudo para pequenos produtores. A expressão deles, de alívio e consuideração, guardo até hoje nas lanternas do meu coração. 
Era quando eu via o papel do BB, ao sentir que o crédito virava colheita, dignidade, futuro.
E não raro, a gratidão vinha em forma de presente: uma galinha viva, uma dúzia de ovos, um quilo de feijão recém-batido.

Ali, na Agência 0520-8, em Remígio-PB, onde fui caixa na década de 80, cada dia tinha rosto, sabor e aromas.
As filas ainda eram por caixa — nada de fila única — e cada cliente tinha seu atendente preferido.
O seu Juvenal, por exemplo, gostava de ser atendido por mim. Seu Gonçalo, era o dono da padaria, e também gostava de minha fila. Era o último a chegar na agência. Com ele, eu sempre me lascava, já perto de fechar meu caixa, porque ele chegava com o dindin embrulhado num saco de pão, com o dinherio todo desarrumado, puído e moedas a rodo. Mas, eu gostava do jeito manso dele. 
Quando o expediente interno terminava, pelas três da tarde, os que moravam em Campina subiam a ladeira para pegar o ônibus, que fazia parada na bodega de Sr. Juvenal. Ali, ele preparava uma vitamina de banana para mim. Era sua forma de agradecer o atendimento. E era o sabor do dia encerrado.
Tinham outros personagens-clientes: o meticuloso Dr. Passos, maior aplicador da agência, que organizava tudo em um simples bloco de papel. O Edmilson, que vendia alho, transformando cheiros fortes em negócio. 
Dona Lurdinha, da farmácia.
O Petrônio, do maior mercadinho.
O Sr. Mizinho, do posto de gasolina.
O Neto Bronzeado, prefeito com nome de sol.
Cada um trazia sua história para dentro do balcão.
E havia o Catão, o caixa mais rápido que já conheci.
Um cigarrão firme entre os dedos, uma comunicação aberta, cheia de humor, e com um dialeto que qualquer cliente entendia. Catão conseguia transformar o "rebucetei" em algo sereno.  
Ele era o rei das filas: a sua dobrava de tamanho e, no fim do dia, raramente dava diferença.
Catão sabia compreender cada cliente como único.
Foi ele quem me ensinou que atendimento é mais do que agilidade: é encontro e presença amiga.
Com ele comecei a aprender  arte de humanizar cada relacionamento, de transformar um simples pagamento de conta de luz, numa breve conversa sobre a vida.

Assim, o retalho do dia se costurava, cheio de afeto, cumplicidade e humor, mostrando que trabalho também é lugar de alegria.

Nos bastidores, éramos seis. 6 corações que cabiam numa Kombi: eu, Catão, Loyola, Jocimá, Severino e Barbosa. Depois, após anos de choramingo com o Funci, veio o Gomes. 
Um grupo pequeno, mas que se completava e se ajudava como se cada expediente fosse um jogo coletivo.
Nosso grande herói era o Marcelo, da agência de Areia, um verdadeiro Shaolin do ESCAI.
Era ele que, com paciência e precisão, nos ajudava a arrumar as diferenças do SCAI. 
Porque ESCAI podia ser a própria sigla de inferno: diferença nele era a chapuletada do capeta: expressão que fazia sentido cada vez que um número teimava em não bater. E, poucos iluminados sabiam os labirintos dos códigos de comando do SCAI, como o Marcelo. 

Em dias de pagamento da prefeitura, a agência se tornava uma festa: um caos animado e produtivo.
Quando era o Funrural, o trabalho virava quase oficina de cidadania — explicando a muitos como transformar velhos papéis, “de embrulhar confetes”, em prova de vida. Ou acolhendo com água, café e biscoito, aqueles que vinham de sitios de madrugada, e estavam pálidos de fome. Amadeu e Bartolomeu eram os encarregados de prover um pequeno cafe para eles, custeado pelos colegas da agência. 
Amadeu e Bartolomeu? Posso dizer que sem eles a agência não funcionava. Amadeu e Bartolomeu eram os vigilantes da agência. Muito simpáticos que, além de cuidarem da segurança, erma conselheiros, informantes, guias de procedimentos do Funrural e relações-públicas da cidade. Se eles dissesse que o cliente tinha uma "vida pregressa boa";  era correr para o abraço e financiar! 
Naquele tempo, os vigilantes do BB eram patrimônio imaterial do banco, especialmente nas pequenas cidades.

Havia também os territórios de processos que nos impactavam. 
O Funci-Movim definia remoções e transferências.
A AUDIT, sinônimo de auditoria, fazia corações dispararem.
O Desed, depois Gepes, era pouso de cursos e reinvenções.
O Pronaf segurava o produtor rural.
O CTRL BAL revelava o saldo do caixa; o CTRL Z encerrava o terminal, como quem baixa a cortina de um palco.
E, ao final, o Espelho, nosso contracheque, refletia em números o suor que nenhuma cifra traduzia.

Mesmo o lazer falava essa língua.
O Satélite, famosa AABB, e a própria AABB eram quintal de futebol, música e riso.
O lendário 001, número do Banco do Brasil, soava como selo de pertencimento a um país inteiro.

Hoje, quando fecho os olhos, não vejo apenas um banco.
Vejo vidas entrelaçadas, amizades que se transformaram em escola de empatia, generosidade e humor.
Cada colega, cada cliente, cada gargalhada e cada desafio contábil foi um convite silencioso para cultivar as forças que a Psicologia Positiva chama de essenciais para o florescimento:
gratidão, pela confiança depositada e pelos presentes inesperados;
propósito, ao perceber que um simples lançamento podia gerar dignidade e futuro;
resiliência, ao enfrentar diferenças de centavos ou sistemas complexos sem perder a serenidade;
amizade e humor, que tornavam o trabalho leve e a vida mais saborosa.

Aprendi que, mais do que números, o que conta é a capacidade de transformar rotina em significado, de perceber que cada atendimento é oportunidade de fazer o bem, de criar vínculos que atravessam décadas.
Essas experiências seguem me ensinando que a verdadeira riqueza está em relacionamentos genuínos, na coragem de recomeçar e no prazer de celebrar as pequenas vitórias cotidianas.
Tudo o que vivemos ali continua a me lembrar que florescer é possível em qualquer tempo, quando escolhemos viver com gratidão, cultivar o bom humor e manter a esperança de que o trabalho, quando é humano, vira poesia para sempre.

E para quem hoje chega ao Banco do Brasil, deixo um recado:
olhe para cada cliente como pessoa inteira, não como um número de conta.
Aproxime-se com curiosidade e respeito; celebre cada pequena conquista do dia — um problema resolvido, um sorriso conquistado, uma dúvida desfeita.
Invista em amizades de equipe, pois são elas que darão sustentação nos momentos de pressão.
Pratique a escuta generosa, que é mais valiosa do que qualquer manual de atendimento.
Busque aprender algo novo a cada expediente, mesmo quando as tarefas parecerem repetitivas; a novidade pode estar em um detalhe, em uma história, em um olhar.
E, sobretudo, mantenha o sentido de propósito vivo: saber por que você faz o que faz é a energia mais poderosa para atravessar anos de trabalho com alegria.

Porque, no fim das contas, o Banco do Brasil não é apenas uma instituição financeira.
É também um território de crescimento humano, onde cada atendimento pode virar um ato de cuidado, e cada meta pode se transformar em oportunidade de desenvolvimento pessoal.
Quem entra hoje tem diante de si a chance de continuar essa história — não apenas guardando cifras, mas plantando esperança e colhendo humanidade.

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Obs: Na foto, da esquerda para a direita, Catão é o de barba. Tem também o Gouveia de camisa branca, e o Arimateia, de camisa listrada vermelha. Tem a Corrinha e a Silvia. Grandes amigos e amigas.  Eles são pessoas que vivem em mim. 

Malotes, Lacres e Memórias que o Tempo Carrega


Num sábado qualquer, num brechó escondido de Brasília, arrematei um antigo malote por dez reais. O cheiro da lona gasta, o zíper pesado, a costura firme: bastou o toque para que um clarão de memórias me invadisse. Era como se o passado, dobrado e quieto, respirasse de novo, abrindo-se como um livro esquecido que sabe exatamente onde a história parou.

Nos anos de Banco do Brasil, na agência de Remígio, cabia a mim a honra de abrir o malote. O supervisor me concedera essa deferência com a solenidade de quem confia um segredo. E, de fato, o malote era o coração do dia. Ao romper o lacre, a agência despertava. Ali vinham o DEB 744, com o listão de saldos; o temido DEB 724, com as contas devedoras; o CPR 740, com a poupança. Havia respostas de transferências, os famosos “Funcionário-Assunto-Razões”, e os indispensáveis talões de cheque personalizados — quando cheque era o “pix” de uma época, com direito aos célebres voadores que, às vezes, pousavam antes do tempo, provocando pequenas tragédias que faziam o gerente suspirar.
O malote era mais que um saco de lona: era um cordão vivo que ligava agências, colegas e afetos. Dentro, podiam vir bilhetes carinhosos, pequenos embrulhos, livros, recados, favores — um correio interno mais ágil que a própria ECT, um fio de humanidade costurado em pano. Alguns envelopes gritavam “Confidencial – A/C do Gerente Geral”, e a simples leitura desse carimbo acendia murmúrios e olhares cúmplices. Eu, com vinte e poucos anos, sentia-me o maestro que fazia a orquestra começar. A agência só respirava depois do meu gesto, como se a vida do prédio dependesse daquele rasgo no lacre.

Mas se abrir o malote era festa, fechá-lo para o envio a João Pessoa ou Campina Grande era pura tensão. Lá iam cheques acolhidos na boca do caixa, comandos do SCAI (Processamento do Crédito Rural), acertos do DEB e, sobretudo, o formulário 0101 — a peça-chave de todo acerto contábil, que movia contas internas com um débito, um crédito e um histórico. Sem o 0101, nada se conciliava. Era o formulário da harmonia, a pequena partitura que garantia que tudo chegaria ao seu destino certo, contabilmente falando.

Voltando ao malote, o nosso "maloteiro" era o lendário Galego do Malote, com sei ic^}onico Fiat Uno. Ele vinha de Cuité, passava por Barra de Santa Rosa, Remígio, Esperança, Lagoa Seca e seguia para Campina Grande. Tinha um sorriso fácil e um gosto simples: bodes, galinhas, conversa boa. Nos fundos da agência, eu criava um casal de caprinos à espera de mudança para o sítio em Jenipapo. O Galego, antes de seguir viagem, espiava os bichos, e, nesse ritual, eu ganhava uns preciosos dez minutos para um último comando no XER ou uma derradeira correspondência, ou um acerto na Via CEDEP. Galego era feliz por natureza, um homem de estrada, mas também de pausas, daquelas que ao contemplar galináceos, no quintal de uma agência bancária, é capaz de atrasar a pressa do mundo. Seu jeito manso, farto de ser gente boa, parecia segurar nossa ansiedade do tempo pela aba do chapéu.

E como esquecer o Plano Cruzado, quando plantões de fim de semana tentavam acalmar correntistas de poupanças congeladas? No começo, alguns apareciam. Depois, ninguém mais. Eu e Catão ficávamos de nove da manhã à uma da tarde, jogando dominó e esperando o cozido de galinha do boteco vizinho. O silêncio dos plantões tinha gosto de espera e de tensão contida. Muitos estavam revoltados com o sequetrso de suas economias, e queriam alguém para bater. Foi nesse tempo que nasceu um dos trotes mais saborosos da minha vida.


Numa manhã preguiçosa, num daquees derradeiros plantões de final de semana, liguei para meu irmão Guga, que estava sozinho na agência de Esperança. Escrevi uma ata oficial, com assinatura e tudo, atestando a presença completa da equipe e pedi ao Galego que a levasse. E que ao chegar na próxima agência, de seu circuíto, mostrasse ao meu irmão. Não é que o  Guga acreditou, e mobilizou meio mundo, muotos em casa, para irem assinar. E, satisfeito, , ligou para saber  o setor do endereçamento, já que na minha não constava. E eu era doido? “Rasga tudo, era um trote!”, revelei. Do outro lado, um silêncio, depois gargalhadas nervosas. O Galego ria até chorar, cúmplice de minha traquinagem. Aquele riso parecia ecoar pelas estradas poeirentas que o levavam adiante, costurando as cidades com sua alegria discreta.

O episódio teve seu gran finale quando Anselmo, avisado da brincadeira, deixou a família em Areia e veio, bufando, “me pegar”. Eu me escondi debaixo da mesa da cantina, erguendo apenas o litro de uísque que seria o brinde da galinha: “Vem comer e beber conosco!”, desafiei. Anselmo confiscou a garrafa e saiu batendo o pé, meio furioso, meio divertido. Catão ria até doer a barriga, e o Galego, em algum ponto da estrada, certamente ria sozinho. Entre risos, galinha e dominó, selávamos a amizade no balanço tranquilo daquelas tardes.

Hoje, com o malote comprado no brechó entre as mãos, entendo que a vida é feita de malotes invisíveis. Cada encontro é a abertura de um deles: um lacre rompido que revela afetos, segredos, esperanças. Dentro, depositamos palavras, gestos, emoções. Quando a convivência termina, o malote se fecha. O meu e o do outro seguem viagem, carregando paz ou inquietação, bondade ou mal-entendidos. Alguns malotes da alma chegam abarrotados de paz, doação, gratidão, esperança, fé, ética, respeito e solidariedade. Outros trazem silêncios, cansaços, aprendizados mais duros. Mas todos, de algum modo, nos transformam.

O segredo da vida é esse: abrir lacres de malote, nos permitindo ao novo; e fechar lacres de malote, zerando pendências, fazendo a vida fluir.
Cada manhã é um convite para abrir um malote diferente — um abraço inesperado, uma conversa que nos atravessa, uma boa notícia que se aloja no coração. E cada despedida, quando bem vivida, é o fechamento sereno desse malote, selado com o que de melhor soubemos enviar.

Enquanto houver um Galego para rir com a gente, um Guga para cair em nossos trotes, um Catão para dividir galinha e dominó, e um Anselmo para protestar e perdoar, haverá sempre malotes a abrir e a fechar na grande agência do tempo. Porque, no fundo, a vida é uma contabilidade secreta de encontros: lacres que se rompem, histórias que se escrevem, malotes que se enviam cheios do que somos e do que ousamos compartilhar. Entendedores, entenderão.

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