Eu-bem-te-vi



Tempos atrás, em 2010, houve uma doação de mudas aqui onde moro, numa campanha de arborização. Ao buscar a minha muda, na sede do Condomínio, fiquei sabendo que quase todo mundo estava optando por pegar as mudas de ipês, sibipirunas, acácias, e flamboyants.

Aguardando a minha vez de ser atendido, desviei o olhar das mudas-vedetes e vi mais à frente, encostada num tronco de mangueira uma bela muda.

Perguntei ao moço que me atendia se ela houvera sido rejeitada, ou se estava esperando alguém que a reservara.

Ele disse que ninguém a quis, de todos que foram buscar mudas, e resolveu tirá-la do lote.

Gastava um tempão explicando sobre ela, tentando convencer os pretendentes, mas era em vão. Então desistira.

Falou-me que os espinhos no seu tronco afastam os “clientes”, apesar de suas belas flores rosáceas e da sua sombra frondosa. Falou quem em 20 anos aqueles espinhos do tronco caem, e ela pode até ser abraçada que não machucará ninguém. Disse-me ainda que ela alimentasse com suas flores muitas abelhas e pássaros como bem-te-vis e beija-flores.

Tudo a ver com seu nome. Pensei comigo que aquela muda seria minha.

Embora eu nem bem-tivesse-a-visto, já pressentia que um dia beijaria-suas-flores.

Perguntei seu nome e ele disse: paineira-rosa.

Apaixonei mais ainda, que nome doce!

Queria ter uma paineira-rosa na calçada de minha casa. Pode alguém machucar alguém com um nome tão doce, de encher a boca de quem o pronuncia, que ao ser evocado traz a sua presença o pai e a mãe, esta na metáfora da rosa. Lembrei o quão gostoso é ouvir meus filhos chamando-me pai, ou papai.

Decidido peguei a muda, para surpresa e alegria do jardineiro que as doava e ensinava os primeiros tratos. Cheguei em casa, arregacei as mangas e plantei.

Minha esposa quando a viu ficou seriamente preocupada.

“E estes espinhos”? O JG vai se ferir!

Era tarde demais. Aquela rejeitada já pertencia ao meu viver. Cuidaria dela.

Até que caíssem seus espinhos do tronco, uns 20 anos à frente, conforme me ensinara o jardineiro. Nos meus 65 anos estarei à sua sombra brindando este dia. Quem viver verá.

Comentei com ela que os espinhos de seu tronco eram passageiros.

Ela deu de ombros e entrou resignada.

Semana passada peguei a enxada e adubo e cuidar dela. Já está uma arvorezinha linda, agora com uns 2 metros. Mas ainda é criança de três anos. Mais velha poucos meses do que o JG. As paineiras- rosa são árvores centenárias e foram quase extintas de nossas matas nativas.



Todas estas cenas passaram qual flash por minha cabeça, ao chegar à feira de Sobradinho nesta manhã de belo sol e céu.



De longe avistamos uma grande árvore com copa frondosa, estava de parar o trânsito de tão linda.

Virei à direita para acessar a rua da feira e minha esposa comentou, deve ser uma quaresmeira.

Eu sabia quem era. Fiquei calado e sorrindo no interior.

Ela desceu e eu disse que iria andar uma quadra e tirar umas fotos da bela árvore, junto como JG.

Caminhei com o JG a passos largos, mal contendo a emoção de confirmar minha suspeita de que era uma paineira-rosa.

Chego embaixo de seu caule e emociono-me. Era sim. Alguém há uns 20 anos atrás, pelo seu tamanho e pela ausência de espinhos no seu tronco a plantara.



JG corria pela calçada coberta de flores, abaixava-se faceiro para recolher um buquê e eu imaginando que esta cena um dia seria rodada na calçada de nosso lar.

Olhei para sua copa e fraguei um casa de bem-te-vis e lembrei-me do que falara o jardineiro.

Fiquei ali embaixo de sua refrescante e aromada sombra um tempão.

Pensava em como todos nós temos nossa poção interior de paineira-rosa.

Do quanto somos rejeitados quando em algum momento de nosso viver ficamos espinhentos, e do quanto aqueles que continuam acreditando em nós, em nosso potencial, testemunham nosso florescer e a superação do tronco espinhoso.

Tem muita paineira-rosa encostada pela vida afora. Que não consegue participar de nossas rodas de conversa. Que perdeu o brilho interior. Que as dores que viveu e a pouca atenção que despertou foram resignando seu ser, e o cobrindo de espinhos.

Gente que sofreu muito, que não elaborou ou processou os lutos que viveu.

Gente que à primeira vista nos repele, na boniteza do encontro.

Fica em mim a mensagem daquele jardineiro, não desista dela.

Acredite com o tempo estes espinhos cairão, e ela ainda te dará muita alegria.

Quantos de nós estamos sendo vistos assim pelos que nos rodeiam - espinhentos.

Mas, se estes que nos rodeiam o fazem com o jeito amoroso do jardineiro, que não vê a crueza do estado presente, mas projeta o futuro e olha para nós com olhar de promessa, cresceremos.



Houve jardineiros assim em meu viver. Gente que soube esperar minha florescência.

Gente que acreditou, contra toda descrença.

Gente que viu em mim o que nem eu, com abalada autoestima, efeito colateral das pancadas que a vida vai dando, ainda via – potencial.

Gente que entrou em meu viver e pronunciou pra mim: Ricardim, eu-bem-te-vi!

Quero envelhecer paineira-rosa. A "envelhescência" deveria começar com uma aula sobre esta bela planta.

Tenho medo de ficar ranzinza, resignado, cheio de certezas e verdades sagradas que me tornarão espinhoso e de difícil acesso.

Cada gentileza doada, empatia sentida, escuta compromissada, ajuda gratuita e esperança anunciada são espinhos que vão caindo do tronco de meu viver.

E nunca mais verei os que não me atraem, por considera-los espinhentos, da mesma forma.

Lembrarei que com eles poderei estar fazendo o que fizeram com aquela muda, rejeitando e aumentando ainda mais sua dificuldade de crescer.

Poderei conviver com eles sem perder minha essência, sem embrutecer. E esta convivência, se for sábia qual mãos de jardineiro, poderá contribuir para derrubada dos muros e espinhos de nosso cotidiano e convivência nem sempre harmoniosa.

Creio que nosso Jardineiro-Maior nos vê a todos como se fôssemos bebê-paineira- rosa. Como frutos de uma promessa. E não desiste de nos tornar melhores.

Enquanto tudo isto vinha em meu viver, à sombra daquela paineira, João Gabriel recolhia um buquê de pétalas no chão.

Este seu gesto brindou minha manhã. Ele está certo. É preciso recolher as pétalas caídas e oferece-las para nós mesmos, ou para quem de nós fizer morada.

Não podemos perder a chance de recolher as pétalas caídas e perfumar nossa existência. Ou de trilhar nossa jornada interior como andássemos por sobre uma calçada de pétalas.

São estas pétalas que carinhosamente o JG juntava quem nos dará forças para continuar esperançando a vida, sendo bons quando tudo ao nosso lado fala em violência. Sendo éticos e justos, quando tudo ao nosso redor apela para o “você tem que levar vantagem em tudo”.

Afinal, como diz a canção: fica sempre um pouco de perfume nas mãos de quem oferece rosas.

E quero as minhas bem perfumadas.

E quero ano-a-ano ir perdendo os espinhos e me fazendo mais acessível para os que de meu ser venham a precisar.

Mas, para que tudo isso aconteça peço ao Jardineiro-Maior que me socorra nos momentos de aperreio com jardineiros-sapiens que não se aborrecerão com meus espinhos e continuarão gostando de mim, aceitando-me, estimulando-me a crescer, apesar de toda negação dos tempos presentes.

Gente que vez por outra me abrace e diga que não estou sozinho.

2 comentários:

  1. Descobri uma paineira em minha propriedade, fiquei encantado. Agora quero explorar tudo sobre ela. Linda demais! Bonito o seu texto. Parabéns.

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    1. Muito obrigado pelo incentivo. Elas são belas e só pedem paciência.

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