Todos estamos presos.



Um belo dia pela manhã, ao alimentar os pássaros, percebi que João Gabriel deixara a porta da gaiola erguida e libertara o casal de Agapornis. Ele adorava brincar com aquela porta e, numa dessas brincadeiras, a portinhola travou e ficou erguida. Estes pássaros são da família dos periquitos, araras e papagaios. Não fiquei nem um pouco triste, no interior, vibrei com o acontecido. Dias depois, notei que eles fizeram sua morada no pé de cajá-manga e que olhavam para a área onde estava a gaiola.

Não sei se olhavam por medo ou por fome, arrisquei a segunda opção, e botei comida ali perto. Fiquei observando de longe e eles vieram, numa serelepe algazarra, ali se alimentarem.

Estimulado com a alegria da liberdade, resolvi também abrir a gaiola dos periquitos, decretando a abolição dos pássaros na casa dos Tapiocas. Mas estes não foram embora.

Passei a observá-los diariamente, bem como ao casal de agarpornis do pé de cajá-manga.

Todos os dias acompanhava a saga daquele casal que reaprendia a ser livre, o que não era fácil. Aliás, não é fácil pra ninguém que mora em gaiolas – sejam físicas, sejam emocionais.

A verdade é que quem aprende a viver em gaiolas, tem dificuldades em sair delas.

Mas o azul e a imensidão do céu, o farfalhar das folhagens e o vento suave do outono foram um convite para liberdade. E ali estava o casal de agapornis a sobrevoar o pomar e a visitar todas as árvores. Uma festa só.

Contudo, a reação dos periquitos foi diferente. A gaiola ficou aberta por uma semana e nada deles saírem. Acostumaram-se de tal modo à prisão que a liberdade chegou tarde demais, não fazia mais sentido.

Solidário a sua sina, botei pra tocar para eles uma bela canção de Renato Teixeira, Olhos Profundos, que numa de suas estrofes retratava bem o assombro e medo que aqueles periquitos viviam:

“O velho barco toda vez que vê o mar

Fica confuso, com vontade de zarpar

E ver o mar às vezes bem que é preciso

Pra ter certeza de ainda estar-se vivo

Mesmo que o casco esteja velho e corroído.”

Passei então a ser observador de comportamentos de periquitos e agapornis, sempre torcendo, ao chegar do trabalho, que os periquitos ali não estivessem mais.

Notei que um dos agapornis desaparecera. Passei a sofrer com o que ficara só.

Era perceptível a dor que vivenciara, estes pássaros tem por principal característica o apego ao seu parceiro. Não sabia o que houvera.

Na região tem gaviões e corujas que podiam ter comido aquele pequeno pássaro, ainda tão frágil nos conhecimentos das forças da natureza, na qual passara a habitar.

Todos os dias chegava do trabalho e a rotina era olhar para o pé de cajá-manga, ver um dos agapornis ali empoleirado, e dirigir-me para o quintal da casa para ver se os periquitos voaram.

Neste final de semana algo de inusitado aconteceu. Acho que o agapornis ficou tão triste, mas tão triste com a solidão, que entrou na gaiola dos periquitos para puxar conversa.

De longe via a cena e não acreditava. A foto que ilustra esta crônica registra este momento.

À tardinha ele voltava para sua árvore. Fez isto no sábado e hoje. E os periquitos não o acompanharam, preferiram ficar, na segurança daqueles aramados.

Estes pássaros muito me falaram.

Lembrei o quanto temos dificuldade em romper nossas estruturas internas e padrões de comportamento e mudar.

Acostumamos a morar em gaiolas. Gaiolas que nos sufocam nos limitam, nos oprimem... porém nos alimentam e nos protegem das incertezas do ambiente.

Gaiolas afetivas, laborais, emocionais, sociais, materiais, ou seja, de todas os matizes.

Acho que todos as temos. Em maior ou menor grau. Todos de certa forma somos presos.

Ficar preso a algo que nos dá prazer é uma escolha válida, acho que é esta a escolha dos periquitos. Eles têm opção de voarem, mas fizeram a escolha de ficar, enquanto causar prazer. Se eu encher muito a paciência deles, ou for relapso no seu cuidado, partirão.

Admira-me a força do agapornis que mesmo de luto e entristecido, ainda opta por voltar para a imensidão do céu azul, após uma aprazível e solidária conversa com os periquitos, a ter que morar em gaiolas novamente.

Ele nos ensina muito ao agir como velho barco da canção, que vez em quando precisa ver o mar para sentir-se vivo: “O velho barco toda vez que vê o mar fica confuso, com vontade de zarpar. E ver o mar às vezes bem que é preciso, pra ter certeza de ainda estar-se vivo. Mesmo que o casco esteja velho e corroído.”

Torço para que ele reencontre seu parceiro, ou parceira, contudo sei que ele sobreviverá sozinho.

Torço para que eu nunca me acomode às gaiolas de meu viver, em troca de uma pretensa segurança e migalhas afetivas ou materiais. Quero ver o mar, vez por outra, e sempre poder fazer a opção certa, saber a hora de partir, de deixar para trás hábitos arraigados, de recomeçar a morar existencialmente no cajá-manga. De tocar novos projetos e de ousar tocar no infinito. Ao casal de periquitos, torço para que amanhã eles não estejam mais na gaiola e sim na copa do pé de manga. Aos casais de periquitos-humanos torço para que se libertem o quanto antes desta relação a dois doentia, que sufoca a ambos. Ou desta relação pareada, com qualquer prisão doentia seja no trabalho, vida social, amorosa, familiar. Relações de amor e ódio, no qual um alimenta-se da dor do outro. Estes, quando perceberem o quanto esta relação do tipo vampiro-emocional suga o melhor deles, poderá ser tarde demais. Eu e você que lemos este texto, convido a ser agapornis. Vamos em busca de nossos sonhos, mesmo que aves de rapinas possam nos amedrontar e nos fazer sofrer. Vamos viver no nosso cajá-manga, e vez por outra nos permitir entrar em gaiolas. Mesmo que no cajá-manga tenham aves de rapina, ainda assim, será preferível o embate com elas do que viver, no piloto automático, uma medíocre existência para o sempre.

9 comentários:

  1. Isso é lindo demais...verdadeiro demais...se i lá que... ameiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!! Te dou uma abraço forte, amigo cronista.

    ResponderExcluir
  2. que lindo! vc é lindo, pois é muito sensível! bjo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Nordestino lindo e sensível, Ricardim? Sei não...
      Brinadeiras a parte, retornei ao seu texto para satisfazer o meu momento Agapornis, já que o meu pé de açaí está bem ali, me esperando!
      Adelson

      Excluir
    2. Lindo, sensível e o bonitão, das tapiocas claro! rsrsrs

      Excluir
  3. Amigo copiei e compartilhei e dei o devido crédito, que texto sensacional, parabéns!!!

    ResponderExcluir

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores