Com que roupa?

Eu acompanho essas flores tem uns anos. Ela brota da trepadeira que se enrosca nesse jequitibá. Lá pelo fim de setembro, início de outubro. Ela é temperamental, em uma semana explode em flores amarelas e tchau. Em anos passados já perdi de fotografá-la, pois deixei para a semana seguinte. 
Quando entra agosto começo a ficar de olho nela. Dessa vez ela me pregou um susto. Passei na sexta-feira dia 25/09 e nada de flor. Até pensei comigo, será que esse ano ela desistiu de florar?
Na segunda, dia 28 vou dirigindo e quase solto a direção de tamanho espetáculo. Ela se vestiu de flores amarelas no final de semana. Estava linda, linda.
No outro dia trouxe a máquina e a documentei. Nessa semana já não havia mais flores.
Agradeci ao bom Deus as fotos que fiz. Agradeci o gesto que vi minhas amigas fazendo, quando as levei para verem as flores. Elas colheram um pequeno buquê as cheiraram.
Saindo de lá, fiquei matutando, nunc tinha sentido o cheiro daquelas flores. Disfarcei que ainda iria bater umas fotos, parei perto da árvore, e peguei um punhado delas na mão e as sorvi com suavidade. Elas tinham um aroma gostoso, perfume de primavera, perfume de flores vadias.
Lembrei-me de uma cena do filme Gênio Indomável no qual um jovem com um QI altíssimo, mas com uma dificuldade relacional também muito alta, passa a ter sessões obrigatórias com um psiquiatra, por recomendação da delegacia da infância (ele está desajustado socialmente falando).
Durante todas as sessões o rapaz não se deixa analisar, invertendo o jogo e enchendo a cabeça do psiquiatra com uma sabedoria livresca sobre tudo e todos. Numa cena memorável o psiquiatra, cansado de tanta presunção de sabedoria, começa a dialogar sobre a Capela Sistina no Vaticano. E o faz perceber que embora saiba tudo sobre aquela bela obra ele não sabe o cheiro no interior da Capela Sistina. Aí, o rapaz titubeia, aflige-se, inquieta-se, e não responde. Abaixo transcrevo o diálogo emocionante:
“Se eu te perguntar sobre arte, me dirá tudo escrito sobre o tema. Michelangelo, você sabe muito sobre ele: sua obra, aspirações políticas, ele e o papa, tendências sexuais, tudo. Mas não pode falar do cheiro da Capela Sistina. Nunca esteve lá, nem olhou aquele teto lindo. Nunca o viu. Se eu te perguntar sobre mulheres, me dará uma lista das favoritas. Já deve ter transado algumas vezes, mas não sabe o que é acordar ao lado de uma mulher e se sentir realmente feliz. Você é um garoto sofrido. Se perguntar sobre a guerra, vai me citar Shakespeare “Outra vez ao mar, amigos.” Mas não conhece a guerra. Nunca teve a cabeça do seu melhor amigo no colo e viu seu último suspiro pedindo ajuda. Se te perguntar sobre amor, citará um soneto. Mas nunca olhou uma mulher e se sentiu completamente vulnerável. Alguém que o entendesse com um olhar, como se Deus tivesse posto um anjo na Terra só para você, para salvá-lo do inferno. E você sem saber como ser o anjo dela, como amá-la, apoiá-la, estar com ela sempre, em tudo… no câncer. Não sabe o que é dormir sentado num hospital por dois meses, segurando a mão dela, porque os médicos viam em seus olhos que o termo “horário de visitas” não se aplica a você. Não sabe nada de perda, porque ela só ocorre quando você ama algo mais que a si próprio. Duvido que já tenha amado alguém assim. Olho pra você, e não vejo um homem inteligente e confiante. Só um garoto convencido e assustado. Mas você é um gênio, é inegável. Ninguém entenderia sua complexidade.”

Corte a cena e voltamos a minha trepadeira amarela. Eu não sabia o cheiro das flores dela.
Passara por elas já há quatro anos e não sabia.
Só as via, fotografava.
Agora eu sei.
Agora eu cheirei.
Agora somos únicos, formamos uma composição do aroma com meu olfato.
Agora suas flores tem cheiro para mim, na minha memória afetiva olfativa.
Penso que muitas coisas de nosso viver são assim, isoladas racionalmente como se delas se extraíssem apenas conhecimentos cognitivos.
Isolando a emoção, o afeto, o sentimento. Parece que isso é uma fuga. É mais fácil não se envolver, não cheirar as flores.
Ligar à vida no piloto automático e retirar de todas as cenas as emoções nela contida, numa besta pretensão de não sofrer ou se envolver.
É como diz o poeta Toquinho: Quem já passou por essa vida e não viveu,
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu.
Porque a vida só se dá pra quem se deu,
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu.”
Viver é sujar as mãos, envolver-se, gritar, chorar, sorrir, lambuzar-se, e pisar na terra.
Tomar banho de chuva.
Viver é botar emoção em tudo, e explorar o desconhecido permitindo-se voar em busca de novos horizontes.
Viver é sofrer, perder, ganhar, prazer.
Viver é dá marcha ré e voltar pra cheirar umas flores amarelas. Pois, essa experiência será única e só minha; E que por melhor que seja a descrição de seu cheiro, de seu aroma, nada substituirá sentir por mim mesmo.
Viver é entregar-se de corpo e alma. É torcer, vibrar, cantar, dançar, sentir o calor do outro.
Viver é pegar um voo qualquer e ir cheirar o interior da Capela Sistina. Já me disseram que tem cheiro de bolor. Mas de que bolor mesmo? Tenho que ir cheirá-la.
Não adie emoções. Não deixe para depois.
Viva intensamente.
Volte pra bater aquela foto que esqueceu. Coma aquele aperitivo que queria comer.
Ande de pés descalços na chuva caso sinta-se bem.
Faça um monte de coisas que gosta e que sobre elas ninguém tem satisfações a receber.
Brinque, liberte a criança ferida e reprimida que foi “formada” na forma das famílias, escolas, organizações.
Respeitando os direitos dos outros, a ética e a natureza curta-se de montão.
Faça seu próprio aniversário, leve-se para passear, se dê de presente um dia só seu.
Seja sua melhor expressão de você mesmo, autêntico. Verdadeiro. Seja gente.
E gente é assim mesmo, gente é cultura, são subjetividades, é loucura.
Gente é belo por ser assim.
Um dia minha filha mandou-me um link de um vídeo de uma senhora que chorava frente ao policial, pois roubaram sua casa e levaram sua galinha.
Isso mesmo. Sua galinha.
Ela daria todos os bens materiais ao ladrão em troca de ter a galinha novamente.
Aquela era sua galinha de estimação.
Essa senhora me emocionou. Ela é gente.
Ela não se deixou contaminar-se pela indiferença, materialismo, racionalidade que tentam proteger-nos do sentir.
Era a galinha amada dela e pronto.
Às favas para que a achasse ridícula.
Se eu pudesse voltar às cenas de meu viver teria vivido tantas coisas que por pudor, timidez, acomodação, medo não vivi.
Teria prestado mais atenção nos momentos bons, menos nos ruins.
Teria anotado os endereços de meus amigos e não deixado irem sem um abraço.
Teria feito outro vestibular, e para medicina, enquanto discutia com um amigo se nos inscrevíamos no curso de engenharia civil para qual passara.
Agora procuro os pequenos prazeres e os vivo. Como goiabas todos os dias às 15hrs no prédio onde trabalho.
É um ritual. Levanto-me, desço até o estacionamento, tiro uma goiaba, e volto feliz da vida comendo-a.
Agora volto pra tirar fotos de cenas que marquei.
Agora, não solto a cena enquanto não provo com todo o meu ser de todas as emoções dela advindas.
Esse sou eu e pronto.
Sou a minha essência. Se quero ir com camisa xadrez numa quarta feira, qual problema?
Tem muita gente dizendo é por ali, é por “alá”...
Mas é você quem terá que cheirar as flores para que sua vida faça sentido.
Não será o outro quem te dará o sentido.
Portanto, suje as mãos, sorva a vida e deguste sentimentos.

Um comentário:

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores