Arte: Gleriston , Heber , Iolanda e Thiago (Alunos da Nova Faculdade de Contagem-MG) |
Uma horda de prefeitos invade os restaurantes de Brasília, após participarem de uma Marcha reivindicatória pelos seus municípios.
Alfredo, garçom amigo, conta-me que o problema não foi o atendimento deles. Foi o fechamento das contas. Não de todos. Mas, de vários. É que um grupo deles insistia em tirar das contas os uísques que tomaram, ou vinhos da melhor qualidade, substituindo o valor do consumo deles por pratos fictícios de comida. Outros, mais raros e mais éticos, pediam contas separadas das bebidas alcoólicas e das comidas. As bebidas eles pagavam com recursos próprios. As comidas com os da prefeitura, para posterior prestação de contas.
Ele contou que o geral era isso que ouvia: "Coloca aí tudo como comida, a prefeitura não paga bebida, nas ajudas de custo para missão..."
Alfredo então voltava com as NF para "retificá-las". Outros, mais ousados ainda, pediam que ele colocasse nelas um valor bem acima do consumido, dizendo que o reconheceriam, "pela compreensão e apoio", com uma farta gorjeta. Alfredo negava-se a fazer isso, e era hostilizado.
Alfredo, naquela noite de quinta, precisava desabafar. Ele estava se sentindo violentado. E eu também. E você que me lê, idem. Se não somos éticos nas pequenas coisas, como queremos ser nas maiores? Na minha escala de julgamento, quem lesa a "viúva" por uma dose de uísque, fará o mesmo nos contratos de fornecimento, com preços superfaturados para desvio de recursos.
Corta a cena e escuto um apitaço. São carros se acotovelando para abastecerem, mutos ainda com meio tanque de combustível, mas temem o pior e querem completar. Os apitos são gritos para alguns "espertos" que descobriram que se levarem recipientes plásticos de 30, 40 litros, poderão evitar as filas e se apresentarem diretamente nas bombas. E a confusão se estabelece, cada vez que um desses "sabidos", toma o lugar de quem por muito tempo espera seu abastecimento.
Na frente da fila, um prosaico frentista, atendendo a ordens de seu patrão, sobe na placa que anuncia os preços e altera, sem o menor pudor, majorando-a em 100%. O apitaço aumenta. Alguns descem do carro, gritam palavras de ordem. Mas quem os ouve?
Volto pra casa e ligo a TV. O jornal mostra cenas de selvageria, por todo país, nos mercados e postos.
Numa delas, uma senhora sai com o carrinho abarroado de saquinhos de dois quilos de arroz. O repórter pergunta se é para um restaurante. Ela diz, candidamente, que é para seu lar. "Pois, pode faltar".
Produtos faltam nas gôndolas, pela sua compra maciça, para além das necessidades de uma semana.
Todos os entrevistados justificam a atitude de usura consumista: "é o medo!". Mas, quando uma única pessoa leva para casa dez latas de leite, para uma família que consome 5 por semana, alguma outra ficará sem. Este é o principio da anomia e anti-solidariedade social. "Primeiro eu, segundo eu, terceiro eu... e quem vier atrás que fecha a porteira. "
Imaginar que nos países asiáticos, vítimas de calamidades climáticas (tsunamis, terremotos), as pessoas só levam dos mercados que ainda funcionam o que precisarão comer e beber naquela semana, pois se levarem a mais faltará para outros. E não tem policia dizendo isto, não tem cartaz. É uma questão de aprendizado social, de educação cidadã para o coletivo.
Selvageria e barbárie. Tanto no microambiente, o das relações cotidianas com o outro. Desde furar fila, bancar o esperto, ou se apropriar de todo o estoque de arroz, água e até sal, sem se preocupar com as necessidades alheias. Tanto no macroambiente econômico, com espertalhões vendendo um litro de gasolina por R$ 10,00 (cinicamente colocado R% 9,99). Como no contexto institucional político, com líderes que precisavam ser exemplos de cuidado e zelo pelo bem público, torrando nosso dinheiro em seus próprios interesses, confundindo o público com o privado, no que se chama de patrimonialismo.
Uma horda, repleta de atitudes de selvageria e barbárie, é nisso que uma população se transforma quando falta-lhe exemplos virtuosos para seguir na gestão pública, uma educação para valores e práticas éticas de coletivo-vivência, para além de belos discursos a cada eleição.
Como seremos uma verdadeira nação com práticas no nível individual, comercial e pública desta natureza?
Obs: Alfredo existe, mas não com este nome!
Crônica maravilhosa!
ResponderExcluirLya, um comentário incentivador deste, vindo de uma autora de teu naipe, é pra mim um baita de um reconhecimento. Gratidão a ti. Manda o email para eu enviar as versões de meus livros em pdf pra ti.
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