"Eu quero a minha vida de volta" (Autor Ricardo de Faria Barros)


- Doutor, não poderei ir na sessão hoje. Acabei de sair do otorrino, estou arrasada, ele disse que na radiografia da face que levei, exame de uma sinusite que tive,  tem um "achado" radiológico  importante", e que ele precisará investigar, trata-se de uma mancha esbranquecida.

A tranquilizei, deixando em aberto a consulta, colocando-me à disposição para atendê-la a qualquer hora e dia que ela se sentisse mais confortável.
Meses depois ela me procurou, após uma bateria de exames e fechamento do diagnóstico de um câncer nos tecidos mole da face.
Começou a falar, e, entre soluços e silêncios, só dizia "eu quero a minha vida de volta".
Quem tem entre os amigos, ou família, alguém que já recebeu o diagnóstico de uma severa doença é testemunha do quão difícil é o enfrentamento deste momento de luto.
Então, pedi-lhe para contar uma história, ela meneou positivamente com a cabeça.
Contei-lhe que certo dia meu notebook, ao ligá-lo, mostrou uma mensagem dizendo que uma atualização crítica havia baixado nele e que eu precisava atualizá-lo, imediatamente.
Aceitei a atualização, e,  para minha surpresa, ela demorou um bom tempo, privando-me do que necessitaria fazer naquele momento.
No começo fiquei super chateado, querendo parar com aquilo. Mas, uma mensagem na tela azul fornecia o percentual de atualização que ia sendo processado. Aquilo me acalmava, mais em dados momentos eu entristecia, pois não saia dos 16%.  Quando quis desligá-lo á força, tirando a bateria, na esperança que ele não mais precisasse atualizar nada, uma mensagem aparece dizendo que mais ou menos assim:
" Acalme-se, vou desligar e me religar sozinho, até toda a carga ser efetivamente baixada no meu sistema operacional, num se aperrei não!".
O termo "Aperrear", no sentido do texto, significa: "tenha calma, isto passa, fique nervoso não!".
Minha cliente esboçou um olhar de quem pergunta: "o que este notebook tem comigo?"
Aí expliquei-lhe. Quando recebemos uma carga muito forte na vida, seja a notícia do desemprego, a morte de um ente querido, o fim de uma relação amorosa, ou o anuncio de uma doença grave, por exemplo, nosso sistema de processamento existencial se atualiza.
E, esta atualização é dolorosa, mas profundamente humana e necessária.
Precisamos passar por ela.  Durante esta etapa, de processamento da carga de dor, culpa, sofrimento e peso no coração, parece que nossa vida se desliga, em alguns momentos. Parece que nada mais faz sentido, as cores não brilham, os aromas não cheiram, as pessoas são distantes, e todas as luas cheias são más.
Nosso sistema de interpretar a vida está enlutado, e precisa de desligamentos para ir acomodando tudo que passou.
Mas, a cada retorno dele, numa manhã qualquer quando nos pegamos contemplando o céu azul novamente, percebemos que avançamos pontos percentuais na digestão da dor.
Pedi que ela escrevesse dez palavras que caraterizassem suas emoções naquele momento, e estas foram as que saíram: arrasada, assustada, decepcionada, exaurida, enraivecida, violentada, angustiada, impotente, entristecida e sozinha.
São as palavras do apagão emocional que o luto provoca. Quem já passou por algum dos lutos acima relatados deve ter sentido alguma destas palavras atuando. Não são palavras fáceis. São daquelas que tornam almas insones. E, dependendo da prumada com as qual se olhe para elas, são todas verdadeiras para quem sofre o luto. Por isso muitas pessoas que querem ajudar, acabam atrapalhando o enlutado, ao negar-lhes o direito á dor, ao momento só deles de sentirem a força da manifestação destas palavras em seus corações.
Elas são a carga que se recebe, após viver a situação difícil. E, nossa psiquê precisa de tempo para acomodar a situação.
Por um momento, parecerá que toda a vida vai gravitar em torno daquilo que ocorreu.  Mudam-se agendas, projetos futuros e rotinas diárias. E aquelas dez palavras parecem que se tornaram redes e presas monstruosas, prendendo e sugando toda a essência do viver.
E as metas, sonhos e objetivos ficam num estado de degradação energética, como se entrassem no modo "pause".
Mas, não "podemos desligar o notebook".  Precisamos beber nosso próprio cálice e continuar desafiando viver, um dia de cada vez.
Disse-lhe que ela acaba de mudar de fase, atingindo a etapa dos que sabem que a vida é finita. Ela me olhou querendo sorrir, mangando de mim, sem entender. Então expliquei-lhe que muita gente vive como se fosse não-morrível, perdendo de aproveitar momentos preciosos, ao hiper valorizar o que não tem valor, ou buscando razões ao léu para ser infeliz.
A fase que ela ingressou, só pessoas perfumadas e sábias, independente de suas idades, alcançam, a de que precisam degustar a vida com sabor, no presente do agora, pois quanto ao amanhã ninguém poderá dizer ao certo nada do que virá a ser.
A que nos concebe como morríveis.  E, por agora sabermos que morreremos (não se enganem, muitos não sabem disto ainda) atingimos uma nova perspectiva e dimensão na degustação do agora.
Tudo passará a ser saboreado de uma forma diferente, e quando a carga estiver processada, os humanos assumem a coragem dos sobreviventes e superam a dor pela qual passaram.
Não serão mais os mesmos, pois se reinventarão, no que sobrou deles mesmos, a partir do luto que viveram, de coisas que lhes foram negadas, ou das expectativas quanto um futuro tornarem-se sombrias.

Faz parte das Etapas do Luto (Elisabeth  Kluber-Ross) atravessar este vale de lágrimas, ou chorar as mil lágrimas, como costumo dizer.
Disse-lhe que não se agoniasse, mais do que o necessário.  Nem que bancasse a forte. Pois haverá dias em que se sentirá pior, como se retroagisse. E noutros um pouco melhor. Que se lembrasse de meu notebook. É a carga processando, desligando e religando o sistema.  Fará parte do processo de adaptação á nova realidade de vida.
Meses depois ela me procura e diz que voltou para aulas de natação.  E que começou a químio. E que se afiliou num grupo de pessoas com sua doença, e com eles não discutem remédios, e sim o que se pode fazer ainda com "o que restou do fim de nossas vidas".
E que tem lutado para não deixar que a doença assuma a vida dela. "Pois que a doença é somente uma parte da vida, mas é nem será toda a minha vida".
Esperançosa, conta-me de um médico-anjo que apareceu na vida dela, dos novos tratamentos, de amigos que fez com a mesma doença, de um músico do Laboratório Sabin que até já sabe do gosto musical dela. Fala das dietas, de almas perfumadas que a inspiram a lutar pela vida, e me confidencia que andou procurando uma peruca mais bonita.
Falou que estará fora no próximo mês, pois irá visitar parentes noutro estado, que estão preocupados com ela, aproveitando para retornar nos lugares de sua infância.
Contente, dei-lhe um abraço. Disse-lhe, que ela atingiu a fase da coragem dos sobreviventes, e que era como se seu notebook voltasse a poder funcionar, após a carga crítica ter sido atualizada.
Assim é a vida. Tem vez que a roda viva gira e muda tudo do lugar, como diz a canção (Roda Viva). Mas, também tem vez que passamos a não mais chorar e com o nosso braço fazer o nosso viver, como também diz uma outra canção (Travessia).
Não há luto fácil pra ninguém que o vive. Nem há receita de bolo, nem de tempo, para o sistema voltar a processar a vida, novamente.
Só há uma constatação clínica, a pulsão-força de eros (vida) é mais forte do que a de pulsão de tânatos-morte (morte).
Temos mais forças de superação do que pensamos ter.
É só não se desligar do sistema, e deixar que a vida corra para a margem, cultivando nela a coragem dos sobreviventes, ao assumir uma posição de luta, compaixão e paciência para consigo mesmo, enquanto o leito do rio do viver não oferece condições de navegabilidade no seu centro.
Um belo dia, de esperança à esperança, de fé em fé, de amizade em amizade, vamos retornando com a embarcação de nosso viver para o leito de nossa vida. Agora com uma embarcação diferente, reinventada e adaptada para águas mexidas, desconhecidas, perigosas, mas não menos bela do que a anterior.
Esse novo barco tem por nome: Estou Aqui. E, enquanto estamos por aqui, podemos deixar um legado de superação, que sirva de exemplo e estímulo para outras pessoas, como resultado de nosso novo projeto de vida, pós coração enlutado.
"Eu quero a minha vida de volta". Não, querida amiga, tu não a terás como antes. Mas, terás outra, grávida de novas possibilidades, ao juntar os cacos do que ainda lhe sobra.
E aí, neste momento, não aquela vida, mas a que se faz como resultado desta reinvenção, volta.
E,  àquele apelo, título desta crônica, ela responde: "eis-me aqui!

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