Os dia em que a Terra nos formatou! (Por Ricardo de Faria Barros)

Acordei sobressaltado, após uma semana dormindo, pois que era um sono acumulado de milênios. Durante o qual tive um pesadelo terrível.
Sonhei que o planeta Terra teria formatado o sistema operacional da raça humana, nos devolvendo aos tempos das cavernas.

Banhei o rosto, tentando lavar aquele pesadelo ruim, e botei o tênis para caminhar, levando numa sacola um livro que comprei para o filho do Rangel, que estuda direito.
Na calçada das crianças, uma que dá acesso à uma creche, não havia os costumeiros choros de despedidas das mamães e papais. Nem sons infantis, tão relaxantes.
Dobrando a esquina, não vejo as costumeiras garrafas litrão, de restos de noite do Bar Piauí. Ué, o Piauí fechou ontem, em plena quinta-feira?
Algo estava errado no ar, não sentia aquele clima de “Sextou”. Até os raros caminheiros passavam por mim com expressões taciturnas, diferentes das expressões “sextou”.
E, não avistei cenas que me comovem quando caminho, e que as vejo com frequência, de casais caminhando de mãos dadas, de crianças brincando nas entrequadras. Estava tudo vazio.
Será que seria feriado? Acho que não, em feriados as pessoas circulam.
Passo pelo Líbanus, para deixar um livro para o Rangel, de presente para o filho dele, e está fechado. Ué, já são 10h, e eles começam a preparar o ambiente cedinho, principalmente numa sexta. Voltei pra casa pensativo, será que formataram a raça humana mesmo. Será que estou formatado e não sei?
Uma porta de casa se fecha com a lufada do vento. 
Acordo, e lembro que sonhava sobre o sonho do pesadelo. Sonhei o pesadelo. Respiro apreensivo, não, não era um pesadelo. E nem caminhei a pouco, nem levei livro, nem vi as calçadas vazias, tudo era um sonho. Menos, a realidade surreal e alucinante, de que realmente a Terra nos formatou.
Estamos todos no modo “Format”. Não há mais festas de batizados e casamentos, nem tampouco enterros comunitários. Não há mais as gostosas visitas dos amigos e familiares, para confraternizar com algo, ou simplesmente o nada, só pelo gosto de estarem juntos.
Não há mais as envolventes disputas esportivas, entre as quais os emocionantes Fla x Flu, ou Treze x Campinense. Não há mais pessoas nos templos, em grupos, orando a bom Deus.
Escolas, academias, bares, teatros, cinemas, museus, shoppings, parques, clubes...etc., todos fechados.
E a raça humana, bilhões de pessoas, voltou para a toca. Todos ao mesmo tempo. A fogueira que mantém o povo unido, à beira do calor da toca, é o WIFI.
Crianças que não mais sabiam o valor de se ter uma família, passaram a conviver com os seus de forma intensa.
Pessoas que tinham paraísos em suas vidas, mas que estavam esquecidos, hoje sentem falta deles, como a possibilidade de abraçar quem gosta, e que muitas vezes moram pertinho.
Casais apaixonados não podem se ver mais, e, cada um em sua toca, procura formas de manter a chama acesa, e lidar com a dor da ausência do outro. A pior das solidões, revestida na palavra saudade. E uma das mais cruéis saudades é a da presença do outro que não está ali.
Filhos passaram a ligar mais para seus pais.
Casais, na ausência do que fazer na toca, reaprenderam a conversar entre si, sem brigar, sem buscarem o que o outro tem que não o satisfaz mais. Na toca, não há tempo para pequenez da alma, todos ativa o modo sobrevivência.
E, no modo sobrevivência, não se tem tempo para alimentar rancores, mágoas, ou agressões mútuas, é todos por um, um por todos, caso contrário a toca não sobrevive.
Filhos aprenderam a fazer tarefas domésticas. Pais aprenderam a acompanhar atividades online dos filhos. Aliás, reaprenderam até a convier melhor com eles, inventando mil brincadeiras para entretê-los.
Na toca se reaprende a limpar as gavetas da alma, a passar esperança na alma, a degustar boas 
lembranças do passado.
Se reaprende a dar valor à própria toca, por menor que ela seja, pois que há tantos que no modo "Formatado" tiveram que ser resgatados das ruas para abrigos improvisados.
Na toca, ficamos nus, e podemos finalmente voltar a enxergar a nossa essência.
Na toca, pessoas não valorizadas, reconhecidas ou simplesmente invisíveis foram finalmente percebidas como essenciais. Aquela diarista, que mal podia comer da mesma comida da casa em que trabalha, agora está sendo sentida a sua falta.
Na toca, se aprende a valorizar aqueles que se arriscam a dela saírem, pois que executam atividades essenciais, ao próprio funcionamento dos que se protegem nelas. O caixa de banco e de supermercado, o profissional de saúde, o professor que transmite aulas online da escola, o frentista de posto de combustível, o atendente da farmácia, o motorista do ônibus, o zelador do prédio, o policial, a cuidadora de idosos, o motorista de entrega de comida, os atendentes de call-center, e um monte de outras profissões.
Na toca, reaprendemos a ler, ouvir música, ver lives, jardinar...
Na toca, é preciso agendar o dia. E descobrir as possibilidades que ela possui, com os recursos disponíveis, para que a pessoa não adoeça mentalmente. Sim, o modo “Formatado”, vivido sem objetivos, pode causar doenças mentais, pois que que desliga o sistema de produção, mobilidade e interação humanas.
Este primeiro semestre de 2020 vai entrar para a história. Na idade moderna, é a primeira vez que toda uma população entra em quarentena, e volta à toca.
Creio que tirando as sequelas econômicas, que serão enormes, haverá um aprendizado muito grande para a raça humana, quando sair do modo Formatado.
Que ela pode sobreviver, e bem, a um monte de coisas que foi se plugando ao estilo de vida do ser humano.
Aprenderemos muito nestes dias de toca, que ainda vivemos. O valor do outro, da empatia, da solidariedade, da ajuda de qualquer forma, para que pessoas sobrevivam a este momento Formatado, sem mais os vírus comportamentais e atitudinais que estavam apequenando a humanidade. Aprendemos o valor da simplicidade. Aprendemos a bater palmas para pessoas que mantém as coisas funcionando. Aprendemos o valor de um abraço, tão desejado, e tão difícil de ser dado em tempos de isolamento.  Aprendemos que as pessoas são mais importantes do que as coisas. Aprendemos o valor do agora, pois que sobre o amanhã não temos certeza alguma.
Aprendemos que não fazer nada também é bom. Que não ter uma agenda estressante e cheia de coisinhas pra fazer, lá fora, também é bom. Aprendemos que muito do trabalho já pode ser executado de casa mesmo, o que pode revolucionar o modo de concebê-lo.
Aprendemos a nos reinventar, a focar nas solucionáticas, e buscar inovações para operar neste novo mundo que se descortina.
Aprendemos como era bom quando a campainha tocava, ou quando alguém dizia que vinha nos ver, ou nos chamava para algo.
Não é o que estamos vendo em todo lugar? O melhor da raça humana acontece na toca.
Jovens se oferecendo para ajudar idosos. Filhos descobrindo que ainda têm pais. Profissionais e empresas, de todos os setores, oferecendo seus serviços gratuitamente, no ambiente web, ou tocando músicas das varandas de seus lares, para animar os demais.
Gente se mobilizando para cantar parabéns bem alto, para que aniversariantes escutem do outro lado do corredor. Gente se curando da síndrome da intolerância a Humanos. Gente perdendo a arrogância, orgulho e vaidade, e se aquebrantando em sabedoria e humildade, diante da insegurança com o que ocorre.
Gente se achando, se escutando, se avaliando sobre as escolhas e decisões que fará, ao sair da toca. O modo “Formatar” pode ter sido bruto, mas que levará toda uma geração a se reinventar, tenho certeza disso. E para melhor.
Aquilo que antes importava, pelo qual perdíamos noites de sono, ou que dávamos a vida para conseguir, aprendemos que podemos sobreviver a sua perda.
São os relatos das tocas, mundo afora.
Quando a Terra nos reinicializar ela estará mais limpa, de nossos lixos, e nós estaremos mais limpos, de nossos lixos também, os emocionais.
Acreditem nisto!
E, quando dela sairmos, uma lufada de Brisa Aracati vai restaurar e refrescar o nosso ânimo, fazendo renascer uma profunda vontade de amar e de viver, que ativará mais uma vez a imensa capacidade da humanidade de se reinventar.
Ao redor da fogueira do wifi, dentro da toca, tem uma placa escrita com letras de esperança, com os dizeres:
“Sobreviveremos: isto também passará, e amanhã seremos melhores”.


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Foto: A Caverna das Mãos, na Patagônia Argentina, datação de 9.000 anos. A ‘Cueva de las Manos’ é um Patrimônio Mundial da UNESCO.

2 comentários:

  1. Você mostrou que o Ser Humano tem a capacidade de se reinventar e que a Crise possibilita essa oportunidade apesar daqueles que por ganância pelo poder querem manter todos dentro do casulo dos interesses egoisticos e não humanos. PARABÉNS!!!

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