Sejamos Itaberaba (por Ricardo de Faria Barros)


Acordei cedinho e me despedi de meus pais, após uma breve temporada de isolamento vivida no colo deles.
E como estes dias me fizeram tão bem!

Agora eu começaria a viagem de volta, de Campina Grande-PB para Brasília-DF, percorrendo uns bons 2.200 km, em dois dias de carro.


Saí 5h30 da manhã e, duas horas depois, aquela vontade de fazer xixi apareceu. Eu optei por me alimentar dentro do próprio carro, e não usar os banheiros dos postos, limitando ao máximo meu contato social.

Então, entre as brumas do dia que nascia, já perto de Caruaru, eu parei no acostamento para me aliviar.

Naquele instante reflexivo, eis que contemplo uma moita com belas flores, de um tipo que nunca tinha visto à margem da estrada. Eram de um violeta forte, quase carmim, e muito bonitas. Davam de arbustos pequenos, que formavam uma touceira única.
Pensei em levar uma muda, dado que gosto de jardinar. Então quebrei um galinho dela e a coloquei numa sacola dentro do carro.
Minutos depois, já dirigindo,  que parti, uma sensação de ardor me acomete nas mãos e pulsos. Uma coceira ardida, que nem passando o álcool resolvia.

O incomodo era tão grande que até dificultava a concentração para dirigir. Procurei alguma cidade perto, para comprar um antialérgico, mas tudo ainda estava muito longe.

Aquilo ali deveria ser da família das urtigas, contudo a ardência era pior, mais penetrante, irritativa, e muito chata.

Como o álcool não amainava passei a colocar o gelo que levava,  e a sensação de dor foi amainando aos poucos. Ufa. Uns quinze minutos depois ela cessou e respirei aliviado. Preventivamente, joguei o galho na estrada. Aquilo não era muda de se ter em casa.

Este foi meu primeiro "aprendimento" no retorno. Nem tudo que floresce é bom. E não é verdade?  Como temos coisas que são floridas, exuberantes, e que quando delas nos aproximamos sairemos machucados, elas vão nos agredir, vão nos ferrar!

Nem tudo que floresce te faz bem. Algumas destas coisas vão te machucar, porque elas tem espinhos venenosos, que agridem tudo que nelas tocará.

Perdido em mil pensamentos comecei a ouvir o vento. Tem sensação melhor do que abrir a janela do carro, ao passar por uma região que acabou de receber uma chuva, e sentir aquele vento cantando feliz?

Agora eu descia a Serra dos Ventos, em direção à Garanhuns-PE. Gostei muito de por ali passar. Aquela serra foi adornada com inúmeras torres eólicas que davam um charme adicional à mesma.
E os ventos uivavam, e lavavam minha alma. E levavam até o restinho de ardência das mãos, que propositadamente eu botava ara fora, para serem umidificadas por aquela brisa uivante e refrescante.

Aqueles ventos foram um outro "aprendimento", ventos podem gerar energia. Precisamos ventar sobre nossa alma, para que ela se movimente. Como diz a canção: "Vento, Vela, Vida, leve-me daqui". Os ventos são isto. São possibilidade de sair.
Seja uma pipa, um avião, uma jangada, ou um catavento que puxa água de um poço, onde há vento há esperança de que algo está ocorrendo, ou ocorrerá. Como anuncio de uma chuva benfazeja.
Eu nunca tinha parado para refletir sobre a força dos ventos, o que fiz descendo cuidadosamente uma serra com o seu nome.
É preciso arejar a vida, abrir as janelas do entendimento, tirar os fungos, ácaros e os mofos da rotina, e nisto os ventos são craques.

Já pela tarde, após muitas léguas de direção, avisto ao longe uma construção imponente. E, ao fazer uma curva, é que ela se apresenta completa, toda majestosa. Uauuu!
É a represa de Paulo Afonso, que bela obra de engenharia.  Passo com o carro bem devagarinho sobre o balde do açude, vendo o Velho Chico que escorre pelo canal das turbinas de energia.
É algo tão místico esta travessia sobre a represa que chega a silenciar a mente, elevando-a num estado de prece.

Aqui tive um outro "aprendimento", o do quanto podemos fazer como humanidade, quando esta humanidade se junta num coletivo único, somando conhecimentos, tecnologias e investimentos para realizar algo.  A construção desta Hidrelétrica é um destes fazimento.  Imaginem o quanto de progresso a energia levou, gerada daquele rio represado.
Testemunhar estas grandes obras da engenharia nos apequena o orgulho, liberta-nos de toda arrogância do conhecimento, e nos faz orgulhosos de nossa trajetória civilizatória. E, como precisamos disto!  Desde as Pirâmides do Egito, à chegada na Lua, os grandes feitos da engenharia mundial nos lembram que nos desenvolvemos como humanidade, que superarmos limites, que crescemos. E, em tempos de tanto medo com o que virá desta Pandemia, sai daquela represa mais confiante. Confiante de que encontraremos a cura, a medicação e viveremos um novo renascimento cultural, após tanta devastação que este vírus causou. 

Seguindo viagem, cruzo a ponte de Ibotirama, mais uma vez sobre o Velho Chico, que sob ela corre caudaloso.
De Paulo Afonso não se tem ideia do tamanho deste rio. Uma vez que o cruzamos sobre o balde do sangradouro, bem distante de seu leito original.
Já em Ibotirama-BA, é preciso quase que parar sobre a ponte, de tanta beleza que se ver. Peguei um período em que as chuvas foram generosas nas suas nascentes, e um verdadeiro tsunami de águas desce sobre ele.
E que águas abençoadas são as do Velho Chico. Já tive a honra de vê-las chegando no mar, lá na cidade de Piaçabuçu-AL. Agora só me falta visitar suas nascentes. Que um dia farei. Tomar banho nele já tomei, lá na transposição em Monteiro-PB.
Passando por sobre aquela bela ponte, tive outro "aprendimento".  O de que as águas podem levar vida, caso sejam bem aproveitadas e respeitadas. Que daquelas águas muitos bebem, navegam, criam, regam e se refrescam. Avistei ao longe um barco, com sua carranca típicas, que me lembrava que é preciso afastar os "maus espíritos" do rio. Sim, meus caros amigos, este foi o aprendimento de Ibotirama. Precisamos de "carrancas" que nos protejam.  Que afastem os galhos perigosos que descem pelo leito caudaloso, que sinalizem os bancos de areia ou de pedras, que nos façam continuar avistando à frente, mesmo que a neblina seja forte.  Elevo meu coração e rezo ao Espírito Santo. Ele é minha Carranca do São Francisco. Você deve ter as tuas. Para alguns a Carraca pode ser a poesia, a literatura, uma boa música, ou um moi (ajuntamento) de amigos. Que seja! Mas, sem elas a travessia pelo rio da vida fica muito mais difícil. Quase arriscosa de se naufragar na primeira braça de água vencida. Precisamos de subjetividades imateriais que nos inspirem, que nos façam apreciar uma lua cheia, ou uma folha orvalhada.  Precisamos cultivar esta conexão espiritual maior.

A viagem continua e as surpresas idem. Agora as margens são multicoloridas das flores baldias do sertão da Bahia. Em alguns trechos predominam as amarelas, noutro trepadeiras rosas e violetas, mais à frente são as branquinhas da Jurema, cujo perfume delicia um olfato mais atento  presente ao existir. As flores catingueiras estão em festa, choveu no sertão. E elas sabem que precisam florescer com exuberância e fecundidade, para que novas sementes e frutos sejam possíveis, no curto período de águas do Nordeste. Mais à frente um mandacaru mostra-se todo carregado de suas flores brancas, e um arco-iris compõe a idílica beleza do planalto da Chapada Diamantina. Cruzo a estrada por entre morros, por cima de morros, abaixo de morros, que quase tocam o carro. A Chapada está linda e em festa. Para onde a vista se pruma, é beleza estonteante que se vê. Mas, a atração principal ocorre nas margens da estrada, que são as flores vadias que a emolduram. É como se dirigisse entre canteiros floridos e perfumados. E aqui tenho um outro aprendimento. É preciso aguçar o sentir, o estar presente, para captar toda a essência de alguns momentos que vivemos. Caso contrário, eles passaram despercebidos, ou serão vítimas da maior forma de violência que podemos ter para conosco mesmos, ou para com os outros, que é a indiferença. Como senti o perfume das flores da Jurema? Apurei o olfato, e me deliciei. Como vi que as flores vadias, invadiam as margens da pista, e alguma delas se atrepavam em velhos troncos retorcidos e secos, formando inusitados arranjos e rara beleza? Apurei o olhar.  Creio que a ansiedade e estresse cotidianos nos privam disto. Vamos entrando no modo sobrevivência, no modo piloto automático, e não mais nos capacitamos para poetizar a jornada do viver. Preocupamo-nos com o aquecimento do motor, com o combustível, com o trafego intenso, com ultrapassagens, com as curvas, a chuva e os buracos na estrada, e em chegar logo. E, de tantas preocupações, esquecemos de apreciar o caminho, a flores que perfumam e embelezam nossa travessia. E, transpondo para nossa vida, elas são as pessoas boas e a gratidão pelas coisas que facilitam o nosso existir. As pessoas boas e o sentimento de gratidão são as flores de nossa existência. 

Termino de atravessar a chapada e agora são campos abertos que se descortinam até perder de vista.  O sol se encaminha para a lua, e o céu é tingido de um vermelho vívido. Dirijo no trecho Ipirá-BA a Itaberaba, que será a última parada para abastecimento, antes dos 200 km que faltam até o pernoite em Seabra-BA.
É uma estradinha estadual muito boa, sem curvas, bem conservada e que erguida sobre um planalto. Já estou cansado, após 900 km percorridos.
Olho à minha esquerda e vejo um luz ofuscante vindo em minha direção. Vem de algo estranho, pois que algumas elevações da estrada a encobrem. Fico curioso com aquilo, o que será aquele negócio brilhante lá longe? Pergunto-me.
E vou me aproximando, até que tudo aquilo se descortina ao meu lado. Uaauuu!!!
Do meio do nada, de um enorme planalto, irrompe dois morros de pedra, que no conjunto parecem com o Pão de Açúcar do RJ.
É tanta beleza que pela primeira vez não resisti, e fiz uma parada adicional, sem ser para xixi. Parar ali era necessário, para documentar aqueles dois morros que se fundem numa imagem única, brilhante, que dela brota uma estranha e bela luz.
Contemplo aquela cena admirado. Que coisa mais linda de meu Deus. Quando voltei pra Brasília pedi um help nas redes sociais e o amigos Rubem, Isaac  e Eliézio socorreram-me na inquietação do que seria aquele conjunto rochoso, é a Pedra de Itibiriba, ou Itaberaba, como depois ficou sendo mais conhecida.
Cuja tradução significa a "pedra que brilha".
Uauuu!!!
Eu estava diante de uma raridade, de um fenômeno geológico, de uma formação rochosa, possivelmente recheada de minúsculos cristais que quando o sol neles incidia amplificava e projetava o seu fulgor, sendo visível a mais de 50 km de onde eu a contemplava.
Eu precisava registrar aquele momento para a minha namorada, que é minha Itabereba. E este foi meu último aprendizado. Precisamos parar para nos deixar iluminar pelas Itaberabas em forma de gente. Pessoas que brilham, não o brilho da vaidade, da ostentação ou do árido poder. Mas o brilho dos valores, da mansidão, da paz, da ética, da justiça, da fraternidade, do respeito. Um brilho que alumia as trevas dos tempos presentes. Um brilho que orienta, acalma, influencia positivamente e que nos faz enxergar coisas boas, que nem nós mesmos percebíamos em nosso viver.
Você tem alguma pessoa Itaberaba em tua vida? Aquela que o amor, quando dela sai e se projeta em ti, torna-lhe melhor e mais forte como pessoa, mais apto a encarar e resolver as coisas da vida?
Aquele conjunto rochoso, que ilustra esta crônica, reluz porque não se limitou a ser como qualquer formação rochosa, que só absorvem a luz. Itaberabas devolvem parte da luz recebida, tornando tudo ao seu redor melhor e mais significativo. Dirigi os últimos 250 km, de Ipirá à Seabra, agradecendo a Deus os aprendizados deste primeiro trecho da viagem. E resplandecente com o brilho do olhar que recebi daquele morro. E pensei no quanto podemos polvilhar nossa rocha da existência com pó de cristais, para que parte da luz que recebemos seja devolvida para os outros. Contribuindo para que a luz vença as trevas!  Abençoados os que têm Itaberabas em seu viver. E, mais abençoados ainda, os que adquirem a consciência de que podem iluminar multidões, com o brilhar de sua existência, pautada em valores positivos e na defesa da dignidade humana. 

Agora vou ali contar pra minha Itaberaba o quanto ela ilumina o meu viver!
 

 

 










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