Partilhar, gesto revolucionário, em tempos tão mesquinhos. (Por Ricardo de Faria Barros)

Acordei cedinho para botar o feijão no fogo.

Certifiquei-me de não ter nenhuma cadeira próxima do balcão da cozinha, para que meu cachorro não queira colaborar no prato. rsrs

Hoje, Dona Rose vem aqui em casa, minha Santa diarista, então é dia de cozinhar para o pessoal do lava jato.

Eles gostam de meu feijão gordo, com carne e ovos.

O pessoal do lava-jato do Antônio está sendo uma das melhores coisas que já me ocorreu, em 2022.

São pessoas batalhadoras, que sabem agradecer o pouco que possuem, pessoas de paz, bondade e cheios da luz de Deus. Quantas das vezes já me sentei com eles, à mesa de café, e saí dali com o coração aquecido.

Sim pessoal, o Antônio teve uma ideia, há muitos anos, de colocar uma mesa de café ao lado de sua Kombi Lava Jato, e nela vão ficando os clientes, amigos e eles próprios. Sempre que o momento permite, que há um vale, eles ali se sentam e proseiam, entre um copo de água, um café, um bolo, ou suco. Antônio e Janete formam um belo casal (Eles estão sentados e juntos numa das fotos), já o Jader, o de camisa mais clara e que está de pé, é uma figura ímpar. Ele fica sempre atento aos que por ali passam. E para eles oferece uma água, um café, ou um pedaço de pão com manteiga, seja a uma profissional de limpeza pública, um morador de rua, ou um motorista de caminhão de entrega. Jáder não deixa ninguém sair dali sem beliscar algo. O Zezinho, este de sorriso farto, que está sentado, é um eletricista dos bons, e gosta de bode.

Zezinho podia ter como sobrenome Conversa Gostosa. Outro dia ele me contou do seu fornecedor de bode, que vem lá das terras de sua parentada, no Piauí. E não é qualquer bode, é bode de sol, uma iguaria.

Se você já foi em Teresina, no acesso ao aeroporto têm vários sendo vendidos à margem da estrada. Então, fiquei animado com a possibilidade de comer algo que sempre desejei, ao voltar de um curso que ministrei por lá, e nunca tinha parado pra comprar, e encomendei 1/4 de bode de sol. Já tinha até me esquecido do fato, dado o tempo que fazia, quando entre um tempero e outro, do feijão, piscou uma mensagem no meu celular.

- "Corra, venha buscar teu bode que ele está sendo muito disputado".

Oxente, deixei Dona Rose pastoreando a panela de pressão e fui lá no lava jato. Há tempos que eu encomendei do Zezinho um quarto de bode de sol. Nem acreditei que chegou.

E, houve até foto da entrega da iguaria, gerando uma felicidade em todos - daquelas de crianças brincantes.

Morri de rir com o Zezinho contando que aquele meu pedaço de bode de sol, quase provoca uma guerra na família dele.

Pois, o cunhado dele ficou de olho no meu bode. Contudo, Zezinho fincou o pé, e não deixou que ele ficasse com ele.

Voltei pra casa sorridente, e com o coração aquecido, e pedi pra Dona Rose documentar a foto do bode, agora aberto do saco. Enorme e belo. A panela do feijão começa a apitar e a cozinha fica incensada com cheiro bom, de comida feita na hora.

Lembro que adquiri esta rotina, de semanalmente fazer um feijão para enriquecer o almoço daquela turminha amada.

Aprendi este lance de cozinhar para alguém, com o Hayton Jurema - colega aposentado que tem um blog maravilhoso e que recomendo que leiam os textos de lá (https://www.blogdohayton.com/). Num de seus textos, eu fiquei sabendo que a sua mãe, Dona Eudócia Jurema, 83 anos, 10 filhos, 22 netos e 24 bisnetos, paraibana e residente em Maceió, quando faz o almoço pra ela, sempre coloca mais arroz na panela, mais carne e água no feijão, e convida os porteiros do prédio para partilharem de sua comida. Ela cozinha pra ela, e pra eles. Todos os dias.  (Na foto, Dona Eudócia está entre o Hayton e sua esposa, a Magdala) 

Partilhar, talvez seja a mais revolucionária experiência humana, em meio a uma sociedade tão não-empática, gananciosa e individualista na qual vivemos.

Recentemente, do nada, o Antônio trouxe para mim, pois soube que eu adoro cachaça, um litro de uma temperada no abacaxi, que o irmão dele faz, lá pras bandas de Cocal, no Piauí. Esta será tomada nos finais de semana, aos poucos, lembrando-me agradecido deste gesto de partilha para comigo.

Desligo a panela, escorro a água, para amassar o feijão e engrossar o caldo, e abro um sorrisão, daqui a pouco será festa, quando por lá eu chegar. E, hoje acertei no sal, atendendo a um pedido do Zezinho que quase morreu de pressão alta, ao comer o último feijão que levei e que tava salgado.

Tenho percebido que minha vida ficou mais alegre, a cada manhã, e que não tomo mais café sozinho. E que vou me interessar pelas histórias de vida deles e aprender muito.

Então, em meu coração, há só gratidão por ter conhecido mais pessoas-luz e que fazem a diferença no meu dia. Ontem, me flagrei comprando coisinhas pra ir tomar café com eles. E foi uma festa. Na ocasião, passou o Emanuel, da Pizza César, que também frequenta o point, e deixou uma pizza divina. Antes de sair, chegou o Marcos, médico acupunturista, e acabei ficando mais um bocadinho. O Marcos atende a Janete, esposa do Antônio, e sem cobrar nada. Mais um gesto revolucionário de partilha. Então é isso. Têm lugares que os anjos de Deus resolvem fazer morada, descansando de tantos corações amargos pelos quais precisam interceder. Ali, naquele local, eles se fazem presente e conosco se divertem. não há conversas sobre mágoas, sobre ressentimentos ou coisas ruins. A conversa gira em torno do lado bom da vida, que pode ser o forro da casa do Antônio que foi colocado... Ou, a alegria de finalmente o Zezinho regularizar o carro dele. Ou o Jáder, falando alto, chamando transeuntes pra boiar conosco, e sendo repreendido para não gritar, ao que todos caem na risada.

São dessas coisas que também é feita uma vida boa.

Obs: O point do Antônio fica na entrequadra da 205-204 na ASA Sul, Brasília, perto da rotatória que dá acesso à Rua dos Restaurantes. Passa por lá, quando estiver por Brasília. Tem sempre uma água geladinha, uma sombra, um café e uma prosa gostosa para te acolher. Sim, e teu carro, se for lavar, sairá como novo de lá. Teu carro e teu ser.

9 comentários:

  1. Ameiiii a leitura! Quando estiver em Brasília, com certeza vou querer dá prosear e sorrir com esses anjos ! Que Deus abençoe a todos !
    P.S.: Quero aprender a desenvolver esse gesto de cozinhar para outras pessoas também!

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    1. Vem sim, passei por lá hoje. E levei umas maçãs pra o lanchinho. Turminha muito amada. Este gesto da Eudócia foi o que me inspirou. A outra fonte de inspiração foi ver que pelo menos num dia eles podem comer algo feito na hora, e com sustância.

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  2. Até os chamados animais irracionais, meu caro Ricardinho, nos dizem com gestos, a todo momento, que o ato de partilhar é a base da sobrevivência dos seres vivos, é o fio que costura uns aos outros, tecendo a colcha de sentimentos que aquece os corações e bota sentido na vida de cada um e de todos.

    Abstraída sua generosa menção à Dona Eudócia, a mãe que Deus me deu e que me ensinou quase tudo o que eu precisava aprender, vejo seu texto extremamente oportuno nesses tempos sombrios em que alguns até partem, repartem, desde que fiquem com a melhor parte.

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    1. Sabe amigo, a história de vida de tua mãe, junto aos invisíveis do prédio onde ela mora é algo muito inspirador e subversivo. A subversão do amor. E teu final do comentário, se me permitir, irei colocar como fecho da crônica, dado

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  3. Crônica do cotidiano bem legal!
    Imagino a satisfação sentida pelo pessoal aí citado. Compartilho com o Caetano, zelador do prédio que fica aqui perto de casa, latinhas de cervejas, após o compartilhamento do líquido com os "malas" dos genros nos finais de semana. De vez em quando o Caetano pesca uns siris de coral e, também, compartilha comigo. Quase diariamente compartilhamos umas bananas com os saguis que pulam de galho em galho das árvores da rua. Como faz bem compartilhar. Pena que existe tanta gente que só compartilha com o próprio bolso.

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    1. Uauuuu,adorei teu relato e fiquei babando com os siris do Caetano. Que gesto lindo o de vocês, o da partilha incondicional.

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  4. Gostaria de saborear esse rango da dona Escócia. Esses dotes culinários nordestino vem de mais ou pai pra filho.

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  5. Bode com farinha, só se for muito bem feito kkkk... já no prato, acrescentamos pimenta e limão, aí desce gostoso... Ótima crônica.

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