Hoje, acordei com dores de felicidades mal-curadas. Daquelas que o tempo não levou por completo, que ficaram presas nos cantos da memória, empoeiradas, mas vivas. Não doem como feridas abertas; ardem como um frio de outono que passa pela fresta da janela, lembrando que o calor do verão já se foi.
Lembrei de tantas dessas felicidades guardadas – aquelas que vivemos com a pressa de quem acredita que haverá outras tantas, em fila, esperando para serem sentidas. Era uma época em que achávamos que a felicidade era um estado permanente, um território vasto, quase infinito. Éramos tão jovens. Imortais em nossa ingenuidade. E fomos vivendo os dias como quem bebe água, sem sede, sem pressa, sem urgência.
A mesa cheia nos almoços de domingo, os sorrisos que se misturavam ao cheiro de comida caseira, as conversas atravessadas, a risada solta que fazia doer o estômago. Não sabíamos, mas aquilo era raro. Aquilo era felicidade pura, sem filtros, sem receios, sem o peso do tempo. Não soubemos guardar. Não soubemos prestar atenção suficiente.
Achávamos que as mãos que segurávamos estariam sempre lá. Que os abraços estariam sempre disponíveis. Que os olhares seriam eternos. Não sabíamos que o tempo viria, com sua marcha lenta e implacável, para nos mostrar que a maior parte dos dias é de luta, de preocupações, de rotinas apressadas. Só depois entendemos que aquelas felicidades eram exceções; pequenos milagres diários que passamos despercebidos, achando que eram apenas mais um dia comum.
Hoje, essas felicidades mal-curadas doem. E dói porque sabemos que não voltam. Porque sentimos que poderíamos ter vivido com mais intensidade, prestado mais atenção aos detalhes, aos cheiros, às vozes. Talvez se tivéssemos dado mais valor, segurado por mais um segundo, fechado os olhos para sentir mais profundo... talvez durassem um pouco mais.
Mas é isso o que elas fazem: voltam em forma de nostalgia, latejam no peito e lembram que o que foi vivido não pode ser remediado, apenas lembrado. São dores de uma felicidade que foi inteira, mas que, por falta de entendimento, ficou mal-curada. E talvez seja isso que as mantém vivas dentro de nós. Porque o que foi bem vivido, permanece; mas o que foi mal-curado, retorna sempre para doer de novo – e para lembrar que, quando a felicidade vier outra vez, saberemos que não é corriqueira.
Mas essas felicidades mal-curadas têm um propósito. Elas são um convite à gratidão pelo que ainda podemos viver. São um lembrete de que, mesmo que o tempo tenha levado alguns dias felizes, ele ainda nos oferece novas oportunidades de abraçar o que importa. Talvez de uma forma mais discreta, mais espaçada, mas ainda assim possível.
A maturidade nos ensina a identificar essas pequenas alegrias que, em outros tempos, poderiam passar despercebidas. O café quente numa manhã fria, o abraço de um amigo que chega sem avisar, o pôr do sol que pinta o céu de dourado... são esses pequenos milagres que, quando acolhidos com gratidão, preenchem os espaços vazios deixados pelas felicidades que ficaram para trás.
As felicidades mal-curadas são professoras silenciosas, que nos ensinam a amar mais devagar, abraçar mais demorado e agradecer mais intensamente. Porque agora sabemos que o tempo passa, que o vento leva e que as memórias são o que de mais precioso nos resta. E, se não podemos mudar o que já se foi, podemos sim, escolher viver o agora com mais presença, para que, no futuro, as felicidades não sejam apenas mal-curadas, mas bem vividas e eternamente lembradas.
Parabéns, Ricardinho! Você acerta em cheio ao transformar memórias em matéria sensível, com leveza poética e reflexão madura. As cenas de almoços de domingo, risadas soltas e abraços demorados ganham relevo como tesouros cotidianos que só aprendemos a valorizar depois que passam. A metáfora da dor discreta, como um frio que escapa pela fresta, dá forma precisa ao sentimento que percorre a crônica.
ResponderExcluirE, do alto de sua serenidade, você conduz o leitor a um desfecho generoso: as felicidades mal curadas, embora doam, também ensinam. São convites à presença, à gratidão e à urgência de viver com mais atenção. Em vez de lamento, ficam como lembretes de que o tempo não espera. E que o hoje merece ser vivido com a plenitude que o amanhã ainda não garante.
Parabéns fico muito feliz por você, meu melhor professor da minha vida!!
ResponderExcluirRicardim, às vezes me pego pensando: como seria bom se qdo jovem soubesse o que sei hoje. E lendo sua crônica poética, percebi que não adiantaria muito talvez, porquê mesmo na maturidade, deixamos várias vezes de apreciar o bom e belo da vida, como tu me ensinou. Sempre é bom ter quem nos lembre. Parabéns, adorei.
ResponderExcluirMais um pérola escrita por vc! Gratidão !
ResponderExcluirProfe Ricardo, aqui é a Luisa Medeiros, aluna IBMEC matrícula 202503440794. Vejo o desafio de olhar para trás e não achar que o para trás era melhor, mesmo sabendo que a cada minuto o presente vira passado.
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