Entre Siglas e Afetos: Memórias da Agência 2520-8


Há palavras que não morrem. E há pessoas que vivem em nós. 

Ficam gravadas na pele como um carimbo datador, teimando em viver no presente.
O vocabulário que aprendi no Banco do Brasil é um desses baús: ESCAI, 0613, CPR 740, RETAG, CESEC…
Quem nunca habitou o coração de uma agência não imagina a música secreta que cada sigla escondia.
O ESCAI era o primeiro acorde: escrituração dos contratos de financiamento, a roça virando linha contábil.
O 0613 era a chave-mestra para registrar o financiamento agrícola.
A Ficha Cedep amarrava o enredo: conciliava contas internas que saíam de um departamento e repousavam, pacificadas, nas agências.
O DEB 724 inaugurava as manhãs com a posição das contas correntes.
O CPR 740 soprava os números guardados da poupança.
E o XER 601 destrinchava, com rigor de escriba, a contabilidade do crédito rural.

A Partida 0101 era coreografia pura — débitos e créditos girando em torno de um histórico escrito como quem narra pequenas epopeias.
O LIC condensava a doutrina bancária; o CIC, seu pai, guardava o saber dos primórdios.
O BIP, nosso jornal interno, batia o coração mensal da equipe, entre "Histórias não Contadas", inaugurações, e as últimas do BB, e seus triunfos. 

No palco das operações, cada setor era um planeta.
O SETEX, a verdadeira porta da esperança, era onde se processavam os valores depositados, transferidos, aplicados, sacados.
Ali, cada operação carregava uma história de vida — o sonho de um eletrodoméstico, o salário que "caia", a lavoura que ia brotar, a escola do filho, o conserto de um telhado.
O SETIN cuidava dos bastidores, processando papéis. Quase invisível, que só aparecia nas horas que algo dava muito errado. 
A RETAG preparava os papéis que viam dos caixas, embalava-lhes em lotes prontos, como quem fecha cartas de um correio invisível.
O AIA transmitia as captações, e o MVS media produtividade — um espelho frio diante do calor humano de cada atendimento. O Mapa de Voluime de Serviços  (MVS) era uma unanimidade, odiado por todos. kkkk

A Rural tinha cheiro de terra molhada e café passado.
A Plata, sala de visitas do BB, recebia clientes com jeito de casa de conversa.
O Setop operava com as linhas de crédito.  
O DAD e o DCD corrigiam diferenças da COMPE, mesmo as minúsculas, quase invisíveis.
O Compe 30 era maestro do fechamento: resumia o saldo dos cheques e documentos de débito em trânsito de compensação, enquanto boletos e DOCs faziam o mesmo para os créditos.
Os boletins BAL e BAC afinavam a contabilidade da Rural.
O Anexo Extracaixa guardava o que escapava da rotina, e o "bagaço de caixa".
A Ficha de Lote capeava conjuntos de documentos contábeis, como quem costura capítulos inteiros de uma história.
O oitavado — a oitava parte de um A4 — era o nosso post-it de raiz, servindo para pequenas anotações que faziam girar a engrenagem. Em alguns casos, substituia o email.  
E o Carimbo Tanque deixava, no verso dos cheques, as anotações que selavam seu destino.
No centro de tudo, o CESEC — para nós um quase gigante computador - que debulhava tudo que vinha das agências, transformando aquilo em pamonhas e canjicas contábeis.  

Mas ,a agência não era feita apenas de papéis.
Não havia alegria maior do que liberar um financiamento agrícola, sobretudo para pequenos produtores. A expressão deles, de alívio e consuideração, guardo até hoje nas lanternas do meu coração. 
Era quando eu via o papel do BB, ao sentir que o crédito virava colheita, dignidade, futuro.
E não raro, a gratidão vinha em forma de presente: uma galinha viva, uma dúzia de ovos, um quilo de feijão recém-batido.

Ali, na Agência 0520-8, em Remígio-PB, onde fui caixa na década de 80, cada dia tinha rosto, sabor e aromas.
As filas ainda eram por caixa — nada de fila única — e cada cliente tinha seu atendente preferido.
O seu Juvenal, por exemplo, gostava de ser atendido por mim. Seu Gonçalo, era o dono da padaria, e também gostava de minha fila. Era o último a chegar na agência. Com ele, eu sempre me lascava, já perto de fechar meu caixa, porque ele chegava com o dindin embrulhado num saco de pão, com o dinherio todo desarrumado, puído e moedas a rodo. Mas, eu gostava do jeito manso dele. 
Quando o expediente interno terminava, pelas três da tarde, os que moravam em Campina subiam a ladeira para pegar o ônibus, que fazia parada na bodega de Sr. Juvenal. Ali, ele preparava uma vitamina de banana para mim. Era sua forma de agradecer o atendimento. E era o sabor do dia encerrado.
Tinham outros personagens-clientes: o meticuloso Dr. Passos, maior aplicador da agência, que organizava tudo em um simples bloco de papel. O Edmilson, que vendia alho, transformando cheiros fortes em negócio. 
Dona Lurdinha, da farmácia.
O Petrônio, do maior mercadinho.
O Sr. Mizinho, do posto de gasolina.
O Neto Bronzeado, prefeito com nome de sol.
Cada um trazia sua história para dentro do balcão.
E havia o Catão, o caixa mais rápido que já conheci.
Um cigarrão firme entre os dedos, uma comunicação aberta, cheia de humor, e com um dialeto que qualquer cliente entendia. Catão conseguia transformar o "rebucetei" em algo sereno.  
Ele era o rei das filas: a sua dobrava de tamanho e, no fim do dia, raramente dava diferença.
Catão sabia compreender cada cliente como único.
Foi ele quem me ensinou que atendimento é mais do que agilidade: é encontro e presença amiga.
Com ele comecei a aprender  arte de humanizar cada relacionamento, de transformar um simples pagamento de conta de luz, numa breve conversa sobre a vida.

Assim, o retalho do dia se costurava, cheio de afeto, cumplicidade e humor, mostrando que trabalho também é lugar de alegria.

Nos bastidores, éramos seis. 6 corações que cabiam numa Kombi: eu, Catão, Loyola, Jocimá, Severino e Barbosa. Depois, após anos de choramingo com o Funci, veio o Gomes. 
Um grupo pequeno, mas que se completava e se ajudava como se cada expediente fosse um jogo coletivo.
Nosso grande herói era o Marcelo, da agência de Areia, um verdadeiro Shaolin do ESCAI.
Era ele que, com paciência e precisão, nos ajudava a arrumar as diferenças do SCAI. 
Porque ESCAI podia ser a própria sigla de inferno: diferença nele era a chapuletada do capeta: expressão que fazia sentido cada vez que um número teimava em não bater. E, poucos iluminados sabiam os labirintos dos códigos de comando do SCAI, como o Marcelo. 

Em dias de pagamento da prefeitura, a agência se tornava uma festa: um caos animado e produtivo.
Quando era o Funrural, o trabalho virava quase oficina de cidadania — explicando a muitos como transformar velhos papéis, “de embrulhar confetes”, em prova de vida. Ou acolhendo com água, café e biscoito, aqueles que vinham de sitios de madrugada, e estavam pálidos de fome. Amadeu e Bartolomeu eram os encarregados de prover um pequeno cafe para eles, custeado pelos colegas da agência. 
Amadeu e Bartolomeu? Posso dizer que sem eles a agência não funcionava. Amadeu e Bartolomeu eram os vigilantes da agência. Muito simpáticos que, além de cuidarem da segurança, erma conselheiros, informantes, guias de procedimentos do Funrural e relações-públicas da cidade. Se eles dissesse que o cliente tinha uma "vida pregressa boa";  era correr para o abraço e financiar! 
Naquele tempo, os vigilantes do BB eram patrimônio imaterial do banco, especialmente nas pequenas cidades.

Havia também os territórios de processos que nos impactavam. 
O Funci-Movim definia remoções e transferências.
A AUDIT, sinônimo de auditoria, fazia corações dispararem.
O Desed, depois Gepes, era pouso de cursos e reinvenções.
O Pronaf segurava o produtor rural.
O CTRL BAL revelava o saldo do caixa; o CTRL Z encerrava o terminal, como quem baixa a cortina de um palco.
E, ao final, o Espelho, nosso contracheque, refletia em números o suor que nenhuma cifra traduzia.

Mesmo o lazer falava essa língua.
O Satélite, famosa AABB, e a própria AABB eram quintal de futebol, música e riso.
O lendário 001, número do Banco do Brasil, soava como selo de pertencimento a um país inteiro.

Hoje, quando fecho os olhos, não vejo apenas um banco.
Vejo vidas entrelaçadas, amizades que se transformaram em escola de empatia, generosidade e humor.
Cada colega, cada cliente, cada gargalhada e cada desafio contábil foi um convite silencioso para cultivar as forças que a Psicologia Positiva chama de essenciais para o florescimento:
gratidão, pela confiança depositada e pelos presentes inesperados;
propósito, ao perceber que um simples lançamento podia gerar dignidade e futuro;
resiliência, ao enfrentar diferenças de centavos ou sistemas complexos sem perder a serenidade;
amizade e humor, que tornavam o trabalho leve e a vida mais saborosa.

Aprendi que, mais do que números, o que conta é a capacidade de transformar rotina em significado, de perceber que cada atendimento é oportunidade de fazer o bem, de criar vínculos que atravessam décadas.
Essas experiências seguem me ensinando que a verdadeira riqueza está em relacionamentos genuínos, na coragem de recomeçar e no prazer de celebrar as pequenas vitórias cotidianas.
Tudo o que vivemos ali continua a me lembrar que florescer é possível em qualquer tempo, quando escolhemos viver com gratidão, cultivar o bom humor e manter a esperança de que o trabalho, quando é humano, vira poesia para sempre.

E para quem hoje chega ao Banco do Brasil, deixo um recado:
olhe para cada cliente como pessoa inteira, não como um número de conta.
Aproxime-se com curiosidade e respeito; celebre cada pequena conquista do dia — um problema resolvido, um sorriso conquistado, uma dúvida desfeita.
Invista em amizades de equipe, pois são elas que darão sustentação nos momentos de pressão.
Pratique a escuta generosa, que é mais valiosa do que qualquer manual de atendimento.
Busque aprender algo novo a cada expediente, mesmo quando as tarefas parecerem repetitivas; a novidade pode estar em um detalhe, em uma história, em um olhar.
E, sobretudo, mantenha o sentido de propósito vivo: saber por que você faz o que faz é a energia mais poderosa para atravessar anos de trabalho com alegria.

Porque, no fim das contas, o Banco do Brasil não é apenas uma instituição financeira.
É também um território de crescimento humano, onde cada atendimento pode virar um ato de cuidado, e cada meta pode se transformar em oportunidade de desenvolvimento pessoal.
Quem entra hoje tem diante de si a chance de continuar essa história — não apenas guardando cifras, mas plantando esperança e colhendo humanidade.

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Obs: Na foto, da esquerda para a direita, Catão é o de barba. Tem também o Gouveia de camisa branca, e o Arimateia, de camisa listrada vermelha. Tem a Corrinha e a Silvia. Grandes amigos e amigas.  Eles são pessoas que vivem em mim. 

8 comentários:

  1. Ricardim, bom dia! E aos demais que tiverem oportunidade de ler um texto desta espécie, não é apenas um texto, é um acelerador de memórias e emoções, sensações indescritíveis, pois nos levam a anos de convivências e aprendizados, o coração pulsa acelerado e causa euforia e você diz: eu vivi isto e muito mais sonhos e realizações ao longo de tantos anos e tantas agências. Ricardim você é muito bom!!!

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    1. Eita que este incentivo só me faz ir buscar novas recordações. Obrigado.

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  2. Uma verdadeira escola prática de e de trabalho. Parabéns pela memória.

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  3. Meu Deus, quantas hustorias vividas transformadas em memórias do coração. Revivi uma vida nessa mensagem tão sabiamente vivida. Você é diferenciado um baú de lembranças felizes, é como eh bom recordar coisas boas.

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