Há um recanto no Planeta Terra, uma preciosidade escondida no Ceará, onde a geografia e o espírito se entrelaçam num pacto silencioso. Lá, na Foz do Rio Jaguaribe, entre Fortim e Aracati, a esperança não é uma abstração, mas um evento de precisão cronométrica. Todos os dias, por volta das quatro da tarde, sem jamais falhar, como um amigo leal ou um amor constante, uma brisa fresca e generosa surge do mar. Ela não pede licença, não conhece terceirizações para ventiladores artificiais; é pura, autêntica, essencial. É o Vento Aracati, iniciando sua jornada sagrada do mar para o sertão, carona sublime sobre o leito serpenteante do Jaguaribe.
Este vento é um fenômeno único. Enquanto em milhares de rios o sopro segue o caminho habitual, aqui ele desafia, sobe, invade o continente por mais de 300 quilômetros. A ciência explica que são as barreiras naturais, as terras altas que margeiam o delta, que criam uma calha invisível. Esse canal geográfico é essencial: ele redireciona os ventos nordestinos, fazendo-os soprar no sentido contrário, do mar para a terra, onde se encontram com outras correntes. Desse abraço de massas de ar, nasce o milagre. Desse encontro, nasce o “tempo bom”. E “Aracati”, na sabedoria ancestral do povo, desvela seu significado mais puro: Ara, o “tempo”, o “céu”; e Cati, “bom”, “belo”. Aracati é, portanto, o “Tempo Bom” personificado.
Os moradores tecem suas vidas em torno dessa chegada. “Vou colocar as cadeiras na calçada para pegar o Aracati”, é um convite à pausa, à comunidade, ao reset diário. “Menina, segure o vestido, rapaz, segure a cabeleira, vai chegar o Aracati!” – é o aviso alegre de que uma força benfaseja está prestes a transformar a paisagem e, com ela, os corações. É um recomeço ritualístico, uma promessa que se cumpre a cada entardecer.
E nesse fenômeno geográfico reside uma das mais belas metáforas para a existência humana. Quantas vezes nossa alma enfrenta suas próprias estações de seca? Um calor interno modorrento que paralisa os sonhos, estagna as emoções e recobre tudo com uma poeira fina de desencanto e mágoas antigas. São nessas horas de aridez que mais precisamos aprender com o Aracati. Precisamos, com intenção deliberada, **“botar nossas cadeiras na calçada da alma”**. Nos posicionar para o refresco, criar espaço para que uma força maior possa varrer as pesadas camadas do que já não nos serve, aliviando o coração e clareando os pensamentos.
O Vento Aracati é a materialização da esperança ativa. Ele nos sussurra que nenhum período de calor é permanente. Que sempre, invariavelmente, há uma brisa a caminho, um alívio possível. Ele é a prova de que é cedo demais para abandonar projetos, que ainda podemos tentar, que a estrada da vida pede movimento, não estacionamento. Ele nos sacode a poeira e nos lembra que somos seres em fluxo, únicos e belos em nossa capacidade de renascer.
E então, ecoa a pergunta crucial: **Onde moram os teus Aracatis?**
Eles são os oásis que cultivamos no deserto do cotidiano. Seu Aracati pode ser a noite de carteado com os amigos, onde as risadas são o vento que varre as preocupações. Pode ser a quietude reverente diante de um disco de vinil, onde cada nota é uma partícula de frescor para a alma. Pode ser o caos amoroso da visita dos netos, a alquimia criativa de uma receita testada na cozinha.
Mas talvez um dos mais poderosos Aracatis que a vida nos oferece seja o encontro com pessoas humanas em sua essência mais pura: aquelas de coração amistoso, espírito manso, caráter ético e senso de justiça. Elas são ventos vivos que sopram diretamente sobre a secura da nossa alma. Uma visita a uma pessoa doente, um encontro que resgata um amigo da solidão, é um Aracati de força tremenda. Um pedido de perdão, sincero e desarmado, é uma lufada que limpa o ar pesado entre duas pessoas. Um agradecimento, um reconhecimento, um carinho, uma ternura, um "eu te apoio" – estes são os Aracatis relacionais, os sopros de alma que replicam o milagre cearense no terreno do nosso cotidiano.
Por fim, devemos nos lembrar da sabedoria da própria terra. O Aracati só acontece porque encontra uma barreira natural que o canaliza, que o guia para onde ele é mais necessário. E nós? Precisamos ser os arquitetos de nossas próprias barreiras interiores. Essas barreiras não são muros de isolamento, mas sim diques de direcionamento. Elas são feitas da **vigilância sobre a qualidade de nossos pensamentos**, do **detox consciente das notícias que envenenam**, da **prática diária do autocuidado** que nos desliga e recarrega. São essas barreiras que nos permitem criar as condições para o Aracati acontecer em nós.
Precisamos, com coragem, erguer barreiras contra a erosão do egoísmo, contra a aridez da ingratidão, contra os ventos cortantes da falta de paz e mansidão. Devemos construir diques firmes contra a injustiça, contra a ética flexível, e, sobretudo, contra a escassez de bondade e amor, contra a dureza que sufoca o perdão e a ternura no viver.
Ao construirmos essas barreiras internas, nós cavamos o leito do nosso próprio Rio Jaguaribe. Nós formamos a calha sagrada que irá captar, canalizar e conduzir para o nosso sertão interior todos os ventos de alívio, de beleza e de graça que a vida insiste em nos enviar. Não basta esperar pelo vento. É preciso preparar o terreno para recebê-lo. É preciso criar, ativamente, as condições para que o Aracati, em toda a sua forma divina e humana, possa finalmente soprar.
E quando ele vier, que possamos entender o profundo chamado que ecoa na voz dos poetas. Manuel Bandeira nos ensina a aceitar e a amar o vento que passa, "e deixa sempre alguma coisa". E num anseio que é ao mesmo tempo fuga e busca, Belchior e Fagner, em "Mucuripe", clama: "Ventos, velas, levem-me daqui".
Que esta seja a nossa prece mais íntima: ser levados. Deixar que os Aracatis da vida – os ventos da renovação, da bondade e da beleza – e as velas da nossa própria coragem nos levem daqui. Para longe da estagnação, da aridez e do cansaço. Em direção a um novo tempo, um tempo bom, um Aracati perene da alma, onde possamos, enfim, respirar em paz e seguir viagem. Sendo um tempo bom, um Aracati, para todos que cruzarem conosco seus caminhos.
Obs: Na foto, a praia com a maior parte de areia branca é onde fica Fortim. Na outra, fica Aracati. E percebe-se claramente a barreira natural que a costa Norte faz, produzindo um fenômeno geológico único do Planeta Terra.
Maravilhoso. Benção divina na natureza. 👏👏👏
ResponderExcluirParabéns professor, por publicar crônica tão inspiradora. Me senti em Uiraúna--PB 1980. Após o jantar, os casais em encontro cotidiano, na calçada da nossa casa, com os colegas do BB e vizinhos, a espera do Aracati. Momentos inesquecíveis que levaremos para sempre!
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